7 / 24

Ângelo de Sousa: Árvores

Angelo de Sousa, ARVORES_Fidelidade Arte_Fotos de Bruno Lopes (6).jpg
Filipa Correia de Sousa

 

Estas folhas de plátano   Estas mãos

que o fogo vai torcendo lentamente

— David Mourão Ferreira 

[1] 

 

A quem muito desenha, o traço desponta consciente, trabalhado, seguro, mas muitas vezes, surge de forma imprevista. A quem muito desenha, os gestos sobre o papel, embora atentos, acontecem mediante um exercício de descoberta que se desenrola numa estranha, mas delicada incerteza de não se lhe conhecer o resultado de antemão. Surgem, antes, atendendo a um ponto de partida necessariamente instintivo, venturoso, livre, que não se rege pela premeditação do que ali se vai construir e suceder. As decisões do gesto fluem soltas, autónomas. No aparente acaso, o gesto não se limita, mas move-se, em virtude de um ritmo que lhe é conhecido, sob uma determinada coerência, uma determinada harmonia.

Como quem, inteiramente absorto nos seus pensamentos, esboça linhas e compõe formas numa folha de papel, distraído como um ouvinte que escuta a narração de uma história, este trabalho tácito, ritmado, acontece a partir de um estado de «descontracção» que, segundo Walter Benjamin, ocorre muito raramente [2]. E este estado é extremamente raro porque, mesmo no aparente e imenso silêncio que abafa um tremendo e desconcertante ruído, aquele que «escuta» muito raramente dá trabalho e destreza às mãos enquanto escuta. «Quando o ritmo de trabalho o prende», diz-nos Benjamin, «mais o ouvinte se esquece de si próprio», e mais próximo se encontra de um estado de intensa despreocupação, verdadeira liberdade e profunda desenvoltura do olhar e do gesto. O gesto genuíno, verdadeiro, primordial até, é aquele que nasce através da máxima concentração na mais profunda distracção, isto é, quando o autor se esquece de si mesmo aquando do fazer, do criar. Como um espectador da sua própria mestria. É na aparente dicotomia entre o olhar que é consciente e alheado, entre a concentração e a distracção, o movimento e a descontracção, que se dá a génese do gesto livre, natural, espontâneo, porquanto nascido numa cadência necessária de experimentação. Gestos e traços criadores, linhas e manchas sugestivas de apelos a nomes e significados daquilo que tem lugar no mundo, tal como o conhecemos. No contexto deste raro e mudo exercício do artista, Benjamin cita Paul Valéry:

A observação artística pode atingir uma profundidade quase mística. Os objectos em que ela incide perdem o seu nome: sombra e claridade formam sistemas completamente especiais, representam questões muito próprias, que não estão cativas de nenhuma ciência, que também não emanam de qualquer praxis, mas que recebem a existência e o valor exclusivamente de certos acordos que se estabelecem entre a alma, os olhos e as mãos de quem nasceu para as compreender no seu próprio íntimo e para as criar. [3]

Diz-nos Ângelo de Sousa: «Eu tento manter uma atenção subconsciente ao que estou a desenhar, embora preste atenção, simultânea e conscientemente, a outra tarefa a que possa estar cometido na altura»; (...) «O que interessava, de facto, era que estava a prestar atenção àquilo, mas não era uma atenção consciente, logo crítica, logo a dizer mal, logo a destruir, não. Ia sendo espectador do que ia aparecendo» [4].

Ora, Ângelo de Sousa desenhou árvores. Desenhou muitas e muito diferentes árvores, durante um largo período do seu percurso artístico. Mas estas ditas «árvores» são, segundo nos conta o próprio [5], mais do que o cumprimento tangível sob a forma de desenho de uma ideia pré-determinada, estabelecida como comum e partilhável entre os seres humanos daquilo que é uma árvore. Ângelo de Sousa intitulava-as assim como quem abrevia um assunto ou dá uma alcunha a algo que lhe é conhecido. Mas não se trata aqui de uma exploração de um elemento natural na paisagem, a força e expansão da natureza ou mesmo o lugar que estes elementos ocupam no mundo. Estas ditas árvores desafiam a noção que aprendemos sobre uma determinada forma, mediante «certos acordos» previamente estabelecidos, como afirma Valéry. Num estado de distracção atenta, Ângelo de Sousa desenhou «árvores» sem uma referência ou significação primeiras à natureza. Estas alusões só surgiam à posteriori, afirma, pelo peso no fundo e pela leveza no topo das formas reveladas sobre a folha de papel. Depois de muitos desenhos, que vemos datados e numerados, realizados durante muito tempo, manteve-os sob esta alcunha e, conta-nos, esse grupo de trabalho «já funcionava como uma série, como um processo cronológico de experimentar formas, de praticar ginástica para ver a forma lá e conseguir segui-la, conseguir explorá-la, conseguir inventar». [6]

Sabemos que uma árvore é tronco, é copa, frondosa ou despida, folhas que com o tempo se metamorfoseiam em várias cores, ramos e raízes. É água, é ar, é respiração, é leveza e solidez, sombra e claridade, som e silêncio. Pode dar abrigo e pode ser abrigo. É madeira que arde numa fogueira, ou uma casa que se ergue, um navio que se constrói, uma urna que declara um fim. No limite, a árvore simboliza matéria terrena e espiritualidade, vida e morte, passado, presente e futuro. Por isso descrevemos a nossa «árvore genealógica» falando de todos aqueles que vieram antes de nós e que nos deram um lugar no mundo. Há quem decore árvores, no inverno, para celebrar a vida. Quando crianças, subimos às árvores para descobrir novas aventuras e desafiarmo-nos a tomar certos riscos. Elas são um reflexo de uma pulsão vital, manifestada nos ramos que se adensam sobre nós, ao encontro do céu, e nas raízes que se alargam e se estendem sob nós, desafiando o nosso controlo e os limites que lhes impomos. E não deixa de ser curioso pensar em como as propriedades da matéria de uma árvore se constituem, enfim, como páginas de um livro ou de um caderno, folhas de papel marcadas por incomensuráveis histórias ou por infinitos desenhos, produtos da imaginação e da criação, que visam dar sentido ao mundo e dar a conhecer a sua substância. E Ângelo de Sousa desenhou, compulsivamente, estes elementos sobre papel, desafiando todas estas noções acima descritas, propondo novos encontros, novas ligações, novas reflexões, por meio dessas tais «árvores».

Desde uma representatividade mais realista até aos vários trajectos da abstracção, por meio da linha, da mancha, da cor e da própria composição, estas árvores manifestam-se das mais diferenciadas formas.

Algumas são quase resultado de garatujas, desenhos rápidos, muito simples, muito delicados. Outras são robustas, contrastantes através de traços largos, grossos, aplicados com força e vigor, compondo manchas escuras e transfiguradas sobre o branco do papel. Os traços torcem-se, contorcem-se, revolvem-se em tranças de linhas. São cabelos presos, são nós, são cordas, redes, teias em movimento. Agrupados em diferentes grupos, mais pequenos ou mais extensos, em diferentes salas e sob a proposta de diferentes níveis de aproximação e afastamento dos espectadores, os desenhos exigem atenção e tempo. Todas aparentam ser figuras autónomas, mas ganham uma tremenda força quando juntas, precisamente como uma floresta. Algumas aparentam representar copas abundantes e copas descarnadas, onde os ramos se multiplicam nas mais diferentes direcções. Árvores que são estruturas rígidas, sólidas como ossos, esqueletos e alçados de estruturas, ou muito serpenteantes, muito ondulantes, quase mostrando vísceras. Mas é este «quase» qualquer coisa que não reconhecemos imediatamente que nos deixa intrigados, e que desfaz o conceito prévio que até ali se estabeleceu acerca de como é uma árvore. Aqui não há uma morfologia exacta. Abre-se, ao invés, a hipótese de uma árvore poder ser uma folha, uma flor, uma rocha, uma mão, quedas de água, labaredas de fogo, um rasto de fumo, uma nuvem, uma borboleta. Na abstracção das formas, podemos até vislumbrar as linhas das nossas mãos, esses sulcos misteriosos, que aqui não nos levam ao encontro de premonições de um futuro determinado, mas que nos conduzem através de mapas enigmáticos, sem ponto de partida nem de fim, mapas de descoberta, semelhantes àqueles que os ramos delineiam e projectam, em sombras dançantes no encontro em contraluz com as superfícies, sob a luz amena do sol. E o nosso olhar prende-se candidamente nestas linhas e formas que dançam sob vibrações e ritmos distintos, tal como o olhar do filósofo que desde o início dos tempos observou, fascinado, a dança ardente do fogo de uma lareira, como nos diz José Gil:

O olhar enfeitiça-se com o ritmo da passagem das labaredas, surgidas de um calmo ecrã de luz e libertando-se no ar, impacientes. O ar que nos envolve é então isto? Um entrecruzar de infinitas correntes, de infinitas formas de movimento que não seguem nenhuma lei, que sobem, encurvam-se, dobram-se, viram-se e partem-se acelerando e desacelerando, aparecendo e desaparecendo. É isto o ar que respiramos, esta turbulência sem fim? Sob a transparência imóvel do ar, o olhar descobre o movimento impetuoso do sopro. O ar é ânimo, nele vibra o sopro do mundo. A vida do mundo. [7]

 

Ângelo de Sousa representou estas vibrações, estas tensões e libertações, como cordas infinitas em agitação, estes movimentos que não determinam nenhuma forma na sua exactidão, que ocupam o espaço e que não são imediatamente reconhecíveis, justamente graças à sua essência primeira. Na distracção consciente de quem está à escuta aquando da execução de uma tarefa, e através do movimento descontraído do olhar e do gesto sobre as coisas, o artista elaborou formas plenas de energia, de potência e de força, autossuficientes quando as sentia cumpridas, e às quais chamou, num acto de extrema humildade, «árvores». Alcunha para algo que era um jogo de descoberta e invenção, de abertura de infinitas possibilidades de sugestão e reconhecimento. E esta força latente, de algo que não sabemos bem o que representa, mas que pressentimos como muito próximo e familiar, sente-se particular e intensamente numa das salas desta exposição. Pode dizer-se que estamos diante de um arvoredo, de uma floresta inflamada de cores. Estas são árvores às quais subimos, troncos irregulares que tacteamos e ramos debaixo dos quais sentimos frescura na pele. São folhas de plátano que guardamos num livro, são mãos a tentar tocar o céu, são nuvens próximas da terra, são sombras que se prolongam, são ventos bravios, são penhascos, são fogo que torce e ar que anima.

Na sua versatilidade morfológica, as «árvores» de Ângelo de Sousa são, acima de tudo, o reencontro com o mundo e com a vida que nele subsiste e se expande. E este reencontro advém de uma tradução exímia da realidade como ela é, isto é, como esta se faz sentir, e sob que possibilidades se transmuta ao olhar destreinado do espectador. Ângelo de Sousa mostra-nos, com uma mestria e franqueza extraordinárias, que ela está aí, passageira, mutável, livre, mesmo debaixo dos nossos olhos, à espera de ser descoberta.

 

Ângelo de Sousa

Culturgest

Fidelidade

 

Filipa Correia de Sousa (Lisboa, 1992) é curadora independente, ensaísta e co-directora do espaço UPPERCUT, em Lisboa. Mestre em Filosofia-Estética pela FCSH: Universidade Nova de Lisboa, pós-graduada em Filosofia Geral pela FCSH: Universidade Nova de Lisboa e licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 






Ângelo de Sousa: Árvores. Vistas (pormenores) da exposição na Fidelidade Arte. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Cultugest/Fundação Caixa Geral de Depósitos.

 

 

 


[1] David Mourão Ferreira, Poema “Nada/Natal” pertencente à obra “Cancioneiro de Natal [1960-1995]” in Obra Poética [1948-1995], introdução de Eduardo Prado Coelho, Assírio & Alvim – Porto Editora, Lisboa, 2019, p. 327.

[2] Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, tradução de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2012, p. 34.

[3] Ibidem, pp. 49-50.

[4] Palavras de Ângelo de Sousa em conversa com Nuno Faria, “Quando já não vejo mais nada... acabou o desenho”, in Transcrições e orquestrações – Desenhos de Ângelo de Sousa, Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, 2003-2004, p. 82.

[5] Ibidem, p. 79.

[6] Ibidem. (sublinhado nosso)

[7] José Gil, Poderes da Pintura, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2015, pp. 60-61.

 

Voltar ao topo