Alberto Carneiro: A Natureza em Movimento
“Envolvo-me no devaneio de me ser outro em mim.”
Alberto Carneiro
Abro um dos vários catálogos de Alberto Carneiro disponíveis nas estantes da entrada do Museu. Não sei se o fiz antes ou depois de ver a exposição Alberto Carneiro: A Natureza em Movimento patente até 22 de Fevereiro no Museu Internacional de Escultura Contemporânea em Santo Tirso, com curadoria de Catarina Rosendo. A frase com que inicio este texto é a primeira do texto As Dúvidas da Arte em Mim extraído de Notas para um Diário, escrito em Santiago do Chile em 2006 e presente naquele catálogo que, no entanto, é de uma outra exposição[1]. Penso como tudo está ligado. Como nos movemos por tão diferentes dimensões da geografia e do tempo. Penso a seguir como isto é um lugar comum. Olho em volta e deparo-me com Movimentos da floresta (2006-2014), uma peça dupla, de dimensão considerável, na entrada do Museu, como que a chamar o exterior de forma tensa. Um movimento suspenso. Um movimento em potência travado por uma cunha assumidamente visível, colocada na lateral. Paradas, as peças oferecem-nos a possibilidade ilusória de agarrar um momento, mas são também evidência de instrumentos habilmente manejados, durante quase uma década, percorrendo os veios da matéria, que se adivinha já vir de um longo tempo anterior. Concentração de tempo, acumulação de movimentos, portanto. Palimpsesto. E sou devolvida ao exterior pela maquete Estudo para escultura pública junto à janela.
A ideia de movimento, subjacente à curadoria de Catarina Rosendo, é indissociável de uma outra, uma ideia de fusão entre tempo e matéria, estando corpos (e a natureza) impelidos a nunca permanecer imóveis. Como se a obra de Alberto Carneiro demonstrasse que as árvores, se não andam, certamente se movem, como se move toda a célula viva, como se movem até as pedras e os montes, desde o próprio centro da terra.
Devaneio eu também, então, achando que a reverberação que encontramos nas obras que vemos aplaca os nossos próprios receios de nunca o conseguir expressar. Saber que ficamos muito mais preenchidos pela existência de alguém que criou da forma como Alberto Carneiro criou, por agora basta-nos.
A exposição Alberto Carneiro: A Natureza em Movimento foi um convite do Município de Santo Tirso a Catarina Rosendo para reunir algumas obras da sua colecção pessoal coincidindo com a abertura do Centro de Arte Alberto Carneiro, localizado, a pouca distância do Museu, na Fábrica Santo Thyrso onde aquele Município mantém e expõe as cerca de 10 obras que lhe foram doadas em vida por Alberto Carneiro. Feita com uma pequeníssima percentagem do espólio que coube a Catarina Rosendo, a exposição permite tomar contacto com obras, realizadas em diferentes meios, desde os tempos de escola até ao final da vida de Alberto Carneiro. E neste sentido, a cronologia apresentada, não estando de todo disposta de forma sequencial no espaço, oferece uma panorâmica interessante de várias correntes e meios que o seu tempo de vida presenciou. E o que me parece mais importante nesta mostra é perceber, neste alinhamento do artista com o seu tempo, a busca própria de uma identidade plástica, na afirmação de uma relação com o mundo, de orgânico a cósmico. Por este motivo, senti a falta da referência a datas na folha de sala, referência que ajudaria a posicionar as obras não datadas no percurso de vida do artista, em particular para quem possa conhecer menos a sua obra.
O Museu Internacional de Escultura Contemporânea, tem primordialmente três vertentes programáticas. A primeira é a colecção de esculturas ao ar livre, que desde 1990 se formou a partir dos Simpósios de Escultura propostos ao Município por Alberto Carneiro. O Museu passa a existir oficialmente em 1997 e vê, na segunda década do século XXI, nascer um espaço novo pela dupla de arquitectos Siza Vieira e Souto de Moura. Espaço, tornado sede, que alberga exposições temporárias de vária índole: é a segunda vertente do Museu apoiada por um Serviço Educativo cuja importância numa instituição como esta missão não é demais sublinhar. A terceira vertente constitui-se como garante da colecção doada em vida pelo artista, albergada no Centro agora aberto e que acima se menciona. Reforço que, não sendo única no Vale do Ave, a presença de um museu com vocação contemporânea numa periferia como o interior de Portugal, é um importante factor de educação cultural e familiarização com a arte e a arquitectura contemporâneas, em particular, no caso do MIEC, pela co-habitação com o Museu Municipal Abade Pedrosa cujo espólio arqueológico atrai regularmente, a par de outros públicos, a população estudantil da região por motivos curriculares.
Escrevo este texto com a consciência profunda de nada poder dizer que não se apresente vindo de um lugar onde as interrogações parecem partilhadas. É Alberto Carneiro que escreve “Afinal o que me dizem as palavras sobre o que crio como arte...?” Decalco esta interrogação porque sei que a obra de AC está muito para além do que a exposição mostra, mas, já que o que ela nos mostra, atravessando várias décadas, corresponde a uma pontuação do que se vai passando na história de arte desde os anos sessenta do século passado, pretendo neste pequeno texto, dos momentos dessa pontuação escolhidos pela historiadora/curadora, realçar especialmente três conjuntos de obras: as composições com base em fotografias, os desenhos e maquetes, e algumas esculturas/instalação de formulação mais leve.
Alberto Carneiro foi um artista profundamente atento ao seu tempo. Passa onze anos numa oficina de santeiro, de onde, é fácil presumir, o seu amor pelo entalhe brotou. A biografia de Alberto Carneiro está ligada à geografia periférica de uma parcela do norte português mas contraria a percepção de uma circunscrição provinciana. Alberto Carneiro foi um artista do mundo. A sua obra pontuou o tempo da arte contemporânea, menos como seguimento das correntes em voga do que como exploração de formas expressivas em função da sua própria linguagem, emparelhada com o seu interesse pela filosofia oriental.
Havia na sua pessoa uma agudeza suave. Ouvi muitos relatos de si enquanto professor. Imaginei sempre uma dimensão vagamente performática das suas aulas, lembrando talvez a famosa árvore de Louis Khan sob a qual estudantes e professor insuspeitadamente formaram a primeira escola. Pareceu-me que AC pretenderia que os estudantes entendessem o mundo como coisa aberta e a educação como convite para nele navegar. Mas isto é a minha imaginação. Nunca fui sua aluna mas imagino que a amplitude de ligação ao mundo que a sua obra convoca deveria contaminar também as suas aulas na Faculdade de Arquitectura. Arrisco dizer, com razoável segurança, que é fácil perceber um arquitecto que o tenha tido por professor. Falo deste aspecto da sua biografia porque a partilha poética e a dimensão conceptual do seu trabalho têm, por um lado, uma generosidade invulgar e, por outro, uma conexão e abrangências vivenciais que as aliam à docência.
A leveza flutuante da sua pessoa sempre me impressionou. Talvez a memória mude as coisas se soubermos que o artista já não está entre nós. Não é sequer suficiente aquela máxima, no entanto verdadeira, de que o artista se prolonga na obra que fica. Essa é a sua generosidade para connosco, que aqueles que cuidam da obra ampliam. Cuidar de um arquivo é uma tarefa ingrata particularmente no caso de um artista que deixou uma enorme quantidade de notas, escritos, desenhos e esquemas. Cuidar de um arquivo é uma tarefa de amor. Organizado por Catarina Rosendo, o arquivo foi doado por Aberto Carneiro em 2020 à Fundação Gulbenkian e encontra-se disponível para continuar a gerar estudo. A obra, vastíssima e variada, encontra-se distribuída por múltiplas colecções e virá seguramente a ser organizada em muitas mais exposições.
Para A Natureza do Movimento, Catarina Rosendo escolheu dos tempos de escola de AC um bronze de dimensão razoável, Envolvimento (1966). Como um corpo que se debate, é uma peça portentosa, equidistante das linguagens plásticas do tempo de um Portugal ainda em ditadura em que os artistas procuravam aceder às novas formulações plásticas que se sabia singravam por esse mundo fora.
E no entanto, nos anos 60 estava já Alberto Carneiro consciente da importância da dimensão experiencial do seu trabalho.
A performance registada em fotografia, na obra de AC, ultrapassa o persistente problema da precedência entre ambas (fotografia/actuação) porque a presença do corpo é um acto íntimo de si com o entorno, e o que é dado a ver é muitíssimo mais do que o seu registo. A obra de facto concretiza-se na composição finalmente formada pelas fotografias, texto e diagramas. A sombra, a paisagem, a palavra, a escultura, tornam-se uma coisa só. O artista está presente na imagem, sombra ou corpo; nos diagramas, cartografias ou desenhos; no texto, na voz que ecoa nas palavras impressas mas também na palavra enquanto imagem; a paisagem está presente, fotografada ou transformada em escultura. O fotógrafo deslocaliza o olhar do artista para trás dele próprio permitindo-nos assitir, em diferido, a um momento de uma relação com a natureza que sabemos ter tido lugar mas cuja leitura é ampliada por camadas de plasticidade e de outros significantes, com uma liberdade e acuidade visual consideráveis. Estes conjuntos são para mim o ponto alto desta exposição: Arte corpo Corpo arte (1976-78), A floresta (1978), Ele mesmo mandala em si (1978).
Ele próprio, como se falasse de um outro, diz do artista que se procura na “fadiga da confusão entre o dentro e o fora”. Quando o exterior é muito mais do que um espaço físico, a questão do exterior/interior torna-se coisa mental na qual o próprio corpo não poderia ser uma entidade autónoma. O corpo faz parte do seu entorno e o entorno só é cognoscível na eliminação do limite com o corpo que o concebe. Esta ideia de corpo que concebe está sempre presente na obra de Alberto Carneiro. É como se a cabeça, as mãos, o corpo inteiro fizessem a escultura e como se a escultura não pudesse existir sem a acção daquele conjunto a que chamamos corpo. Penso nos primórdios da obra de Richard Serra (apesar do facto das suas obras não poderem ser mais diferentes...) quando a sua mão teima em agarrar a matéria, quando as suas listas de verbos nos indicam que a disciplina da escultura não é simplesmente um conjunto de operações técnico-conceptuais, que podem mesmo ser deslocalizadas para um qualquer agente que para isso demonstre competência, mas que depende acima de tudo da implicação do corpo do artista, uma implicação de gestos e volições.
O que esta exposição nos mostra é que a obra de Alberto Carneiro não se cinge à sua forma de expressão, técnica e conceptual, mais reconhecível, das referências à natureza e ao meio arbóreo, do trabalho da madeira e das composições e instalações com vimes, folhas e espelhos. Nesta exposição é-nos dado a ver um conjunto de obras representativo das várias formas que o artista explorou, da fotografia combinada com texto e diagramas, à pintura com pétalas das flores do seu jardim, aos desenhos que realizou incansavelmente ao longo da vida.
E este é, para mim, o outro ponto alto desta exposição.
A produção de Alberto Carneiro é imparável até ao final da sua vida. Quando o corpo se torna inapelavelmente exigente, progessivamente débil, ele desenha sempre. O seu braço é fluxo através do qual a terra, a memória, a vida, passam para o papel.
Há na exposição diferentes formas expressivas neste meio. Alguns desenhos, na sua feição quase abstracta escapam à definição naturalista que os títulos poderiam indicar. São desenhos de traço livre, evocativos, variados na sua formulação e anos de realização. Há a intensidade do carvão representando tempestades (2010) ou a leveza da caneta, como no conjunto de desenhos dos anos 60 que quase parecem gravuras de uma estranha anatomia. Há desenhos como se fossem projectos utópicos para lugares imaginários. Formam estes últimos, a par das várias maquetes, um conjunto indicativo da vontade de agir sobre o mundo através da escultura, sem nunca perder a liberdade de imaginar os lugares que o corpo habitaria sob uma outra física que não a da gravidade. Este desenhos e as maquetes presentes na exposição, permitem perceber como o seu pensamento plástico é simultaneamente profundamente racional e imaginativo, definitivamente desacreditando a dualidade antagónica com que o senso comum divide racionalidade e fantasia. As maquetes e os desenhos projectuais aludem a escalas que não só se correspondem como se equivalem — os montes na paisagem, regos e veios na escultura, linhas fluidas nos desenhos.
Os desenhos de final de vida, quando o seu corpo já frágil não desiste de continuar a abrir o espaço que desenhar permite, são páginas de cadernos onde habitam formas soltas, pedaços de paisagens de uma (quase) puerilidade comovente, Paisagens imaginadas sobre recordações de paisagens com uma imagem do teu ser imaginante – Caderno 5 (2012, exposto em Serralves em 2013).
O último destaque que gostaria de fazer diz respeito às esculturas/instalação em que o artista trabalhou galhos de pouca espessura, como se procurasse chegar ao esqueleto das árvores, uma anatomia frágil mas orgulhosa. São peças variadas, de parede ou chão, encostam-se verticais ou entrelaçam-se pousadas. Recusam a sobranceria de um dispositivo (display) que as eleve. Oferecem-se a um vento que já se desvaneceu, Movimentos de árvores (2014). E fazem aparecer a água como se os diferentes mundos físicos realmente se entrecuzassem, Evocação da água, em várias versões e datas nos anos 90.
O que passa do mundo orgânico para as esculturas de Alberto Carneiro não é só a matéria, é uma espécie de memória ancestral que podemos retraçar nos gestos que as moldaram. O seu corpo em acção sobre a superfície do granito ou da madeira é uma espécie de tomada de pulso ao movimento mais vasto da própria existência de todas as coisas. A sua obra não é realmente mística, ou pelo menos não pretende existir numa dimensão desafectada do mundo fisico. A sua obra é antes profundamente conectada com o real, com uma realidade que, embrenhada em todas as coisas, nos devolve um sentido de continuidade cruelmente finita.
Nem seria preciso dizer que ficamos com uma muito maior noção de que somos natureza, e natureza em movimento; e, como ela, passamos por esta cadeia de eventos cósmicos que nos engolem e nos concretizam enquanto seres. Ou como diria Alberto Carneiro ‘somos árvore’.
Museu Internacional de Escultura Contemporânea
Gabriela Vaz-Pinheiro é formada em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, possui o Doutoramento por projecto pelo Chelsea College. Leccionou na Central St. Martins College of Art & Design, em Londres, entre 1998 e 2006. Os seus interesses dividem-se pela prática artística, o ensino da arte, e também a investigação e escrita críticas. O seu trabalho artístico reflecte sobre questões identitárias e contextuais, como forma de interrogar a própria noção de indivíduo, entre narrativas pessoais e sociais. Tem realizado trabalho curatorial com várias colecções institucionais e também em contextos expositivos alternativos, tendo sido responsável pelo Programa de Arte e Arquitectura de Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura. Possui actividade editorial regular em que se incluem algumas publicações de artista. Ensina, desde 2004, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, onde é Membro Integrado do i2ads, Instituto de Investigação em Arte Design e Sociedade.
Alberto Carneiro: A Natureza em Movimento. Vistas da exposição no MIEC. Cortesia de MIEC, Museu Internacional de Escultura. Santo Tirso, 2021-2022.
[1] Alberto Carneiro, Paisagens Interiores, Museu Municipal Abade Pedrosa, Santo Tirso, Dez 2006-Fev 2007.