1 / 12

Gestos silentes. Uma conversa com Vera Mota

6 Ventriloquismo.jpg
Miguel von Hafe Pérez

 

Com um percurso coerente e consolidado essencialmente na escultura, no desenho e na performance, Vera Mota (Santa Maria da Feira, 1982) é uma artista que opera a partir da expansividade que essas disciplinas permitem na construção de momentos expositivos singulares e questionantes da relação do espetador com a obra. A partir do corpo — do seu corpo —, a obra abre-se para um grau de abstração desviante, onde a relação com os materiais, a escala e o modo como cenograficamente se articulam entre si determina um posicionamento crítico perante a história da arte. A cumplicidade reclamada ao espetador é tanto concetual, como física.

Disso mesmo é testemunha a sua última exposição na Galeria Bruno Múrias, que serviu de pretexto para esta troca de ideias. Os indícios estão lá, mas a resolução é indeterminada. Vera Mota articula situações suspensivas que repercutem momentos de ansiedade, perplexidade ou, no extremo oposto, clareza evidente. Como um oximoro, este trabalho suga-nos na evidência (figural ou referencial), para nos afastar em ondas de choque que densificam uma receção ancorada na sua complexidade. Desafiante e instável, como se reclama de tudo a que possamos chamar arte.

 

Miguel von Hafe Pérez (MvHP): Comecemos pelo básico: quando é que tiveste noção de que poderias vir a ser artista e porquê?

 

Vera Mota (VM): Não sei quando soube exactamente o que queria dizer “ser artista”, mas aos treze ou catorze anos, e como acontece em muito casos, uma professora diz-me que tenho talento para o desenho, que sou criativa, e isso aparece como uma possibilidade. Quando ingressei no curso de Arte Plásticas [Escultura na Faculdade de Bela Artes da Universidade do Porto], acho que deixei de pensar que poderia ser outra coisa.

 

MvHP: E porquê Escultura? Não é a escolha mais óbvia.

 

VM: Na altura foi uma escolha difícil, na verdade, porque tinha notas para entrar em Arquitetura e essa era a vontade da minha mãe, mas não me identificava com o que imaginava ser o trabalho de um arquitecto. E achava, ingenuamente, que alguém que dominasse a tridimensionalidade, o espaço e a matéria física, também seria capaz de fazer pintura e o contrário poderia ser mais difícil. Assim, escultura tornou-se a minha primeira opção.

 

MvHP: Paralelamente, vais mantendo uma formação na área da dança, por interesse pessoal ou pressão familiar?

 

VM: Em criança, começo por fazer atletismo, mais tarde, já adolescente, umas aulas de dança que aconteceram por sorte na minha terra, uma aldeia de Santa Maria da Feira (julgo que fui sempre eu a pedir aos meus pais para fazer estas coisas). Só quando vim para o Porto, percebi que se abria um novo mundo de possibilidades e comecei a frequentar todos os dias aulas de dança contemporânea e improvisação, paralelamente aos estudos na Faculdade. Isso acabou por determinar uma consciência muito precoce de que estas duas dimensões se poderiam complementar no meu trabalho, isto é, a integração do corpo para além da estrita criação de objetos.

 

MvHP: Essa dimensão é, então, algo que exploras quando acabas a tua formação académica?

 

VM: Na verdade acontece desde o segundo ano da Faculdade. A investigação e desenvolvimento desta ferramenta (corpo) decorria paralelamente e, no trabalho final desse ano, propus uma ação onde interagia com o barro, e não uma escultura. Era um exercício onde um corpo despido deambulava num tanque de barro, pondo ao serviço da escultura uma ferramenta que era o corpo. Até terminar o curso fui sempre pontuando os projetos com dimensões performativas. Depois, no mestrado a investigação seguiu essa análise da evidência do corpo na prática artística contemporânea. Na altura, o conceito de performatividade era extensivo a muitas áreas, mas o que eu procurava era uma via em que criasse uma certa resistência a essa evidência e participação do corpo, explorando conceitos como o de mimetismo, de informe, o uncanny e de imobilidade também. Portanto, terminado o mestrado, foquei-me precisamente na possibilidade contrária, ou seja, nos materiais, abdicando de qualquer participação explícita. A partir de uma série de desenhos, onde a evidência dos materiais, como a transparência e fluidez da aguarela ou a opacidade de um pastel de óleo, demarcavam singularidades formais, jogava com essas características para indiciar um tipo de ação. Depois, volto a pensar numa participação do corpo, mas numa dimensão diferenciada, como uma espécie de operário, algo funcional onde os gestos são repetidos. A partir daí, sim, desenvolvo uma série de projetos onde a performance ganha uma importância supletiva, onde ponho em cena uma série de materiais e analiso como estes se comportam: a cada material é associado um gesto e esse conjunto de gestos gera uma espécie de partitura. O resultado final é a materialização no espaço dessa partitura.

 

MvHP: Fazendo agora uma chamada ao teu último projeto apresentado na Galeria Bruno Múrias e que intitulaste Ventriloquismo a dimensão que imediatamente ressalta é a ausência do corpo que, no entanto, é constantemente indiciada de forma elíptica.

 

VM: Nesta exposição, há um corpo que efetivamente não aparece, o corpo biológico, de músculos e ossos, o corpo performativo, o meu; mas há corpo em quase todos os trabalhos, irrompendo de forma mais ou menos evidente, e pode imaginar-se ainda o corpo que, na relação com a sua escala, operou e compôs naquele espaço.

A exposição resolve-se novamente em torno de três instâncias sempre presentes no meu trabalho: o corpo, os materiais e a participação. Ao longo dos anos, estas três camadas foram mudando de posição, estabelecendo diferentes relações entre si, ganhando mais ou menos protagonismo (de trabalhos em que os materiais se assumem como assunto e o corpo participa como mero operário, àqueles em que dessa correspondência e adaptação da presença às necessidades impostas pelos materiais, o corpo se sobrepõe e a dimensão performativa se reafirma). 

Em Ventriloquismo, o corpo reposiciona-se para surgir cristalizado em representações e traços antropomórficos. A exposição acontece num lugar de compromisso entre o figurativo e o abstrato; o escultórico e o cenográfico, eventualmente performativo. As invocações ao corpo que se revelam neste conjunto de trabalhos foram como que submetidas a processos de distorção, transferência, desqualificação (algo já comum em trabalhos anteriores). Faço uso de processos que ora afastam os objetos da possibilidade de serem corpóreos, ora, sendo representações objetivas do corpo — como a fotografia HEAD HAND,— se corrompem ou comprometem em sentido. Trabalhos como Hold, ou Real Feel, são interpretações de representações que são já sínteses de partes do corpo, resultando em ecos ainda menos precisos de um corpo biológico, concretizados por materiais que reclamam também protagonismo. Fold IV, um exercício sobretudo formal, deixa-se informar pelo entorno, e ali, na relação com as outras obras, também ela quer invocar um corpo, dobrado, que pode querer erguer-se ou estender-se sobre o chão. As duas pinturas (Sensações), dois planos de um púrpura profundo, não são mais do que elementos cenográficos, que trazem a matéria da pintura para o lado das outras matérias, — o mármore, o ferro — planos-objeto que ajudam a marcar o ritmo da composição no espaço, que contrapesam os movimentos oscilatórios entre o plano horizontal e vertical, o permanente exercício do salto, da dobra. No espaço, os trabalhos foram coreografados avaliando e compondo o seu peso, a sua participação e lugar que deixam para se darem a sentir. Indicia-se uma espécie de circuito, um modo de participar. Não há evidência, apenas sugestões vagas onde podemos projetar lugares e forças possíveis.

Ventriloquismo remete-nos simultaneamente para um sentimento de familiaridade e estranheza, também nestes trabalhos podemos reconhecer o corpo, enquanto sabemos que não o é totalmente. Há vontade de reconhecer e aceitar, há cumplicidade com o que se encena, como ao vermos o ventriloquista emprestar uma função humana a um objeto, querendo ser cúmplices dessa farsa.

 

5 Ventriloquismo
11 HEAD HAND 2
13 Fold IV
4 Ventriloquismo
2 Ventriloquismo
1 Ventriloquismo
6 Ventriloquismo
7 Hold
8 Real feel
9 Real feel 2
10 Sensations

Vera Mota, "Ventriloquismo", 2021. Vistas da exposição, Galeria Bruno Múrias, Lisboa. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista.

 

MvHP: Nos teus últimos projetos, dir-se-ia que referencias de maneira óbvia e consciente movimentos como o minimalismo ou a process-art, contudo cometes o “pecado” mais repelido, concetual e formalmente, por esse universo referencial que é o da introdução de elementos figurativos. A utilização de estruturas e metodologias como a grelha e a serialidade vê-se disruptivamente desestabilizada por elementos antropomórficos e figurativos.

 

VM: Quando uso grelhas, por exemplo, para ordenar aquilo que o material erra ou desvia, estou a criar uma teia normativa. Ora o desvio que certos materiais reclamam, pode ser equivalente, para mim, à introdução de um elemento figurativo, como acontece no projeto Solid Emotions, de 2019. A figuração oferece a fuga à geometria ou à regra, que me interessa noutros materiais informes. A presença de pequenas cabeças — a minha cabeça —, na sua repetição e dissimilitude, capaz de gerar uma espécie de eco que as esvazia de sentido, tem um efeito desorganizador. Para mim, a figuração introduz desordem, por oposição a algo mais rígido, definido e estruturado como um cubo ou outra forma mais abstrata. Trata-se, então, da introdução de um elemento perturbador, contrário à forma polida, autoevidente e irrepreensível do minimalismo.

 

MvHP: Nesse trabalho, com e a partir do corpo, penso em artistas como Ana Mendieta e Eva Hesse, dos anos sessenta e setenta do século passado, ou, mais recentemente, Cindy Sherman. Como é que te relacionas com este lastro histórico que, de forma direta ou indireta, acaba por enformar muita das propostas artísticas contemporâneas?

 

VM: Artistas como Eva Hesse, Robert Morris e principalmente Bruce Nauman, entre tantos outros, foram sempre de alguma forma informando a minha maneira de olhar aquilo que pode ser um corpo na participação nas diversas práticas artísticas. Falaste na Ana Mendieta, por exemplo, e aí o facto de ela evidenciar um corpo muito sensível e simbólico interessa-me menos. Nas minhas performances dava lugar a um corpo menos corpo: abdicando da sua personalidade, da sua sensibilidade, para se tornar um quase autómato, um operário de gestos coreografados correspondentes aos materiais que está a manipular. Quando aparecem referências ao corpo no meu trabalho ele de alguma forma não ganha nem autonomia, nem sensibilidade, ou seja, aquilo que verdadeiramente distingue um corpo na sua evidência subjetiva.

 

MvHP: Interessa-te mais na performance o resultado da ação do que a própria ação?

 

VM: Não hierarquizo as coisas nesse sentido. Se apresento uma ação, essa ação deverá ser capaz de comunicar para além do que o objecto comunicaria. Não me interessa ilustrar algo que um objeto pudesse revelar só por si. Se presenciamos um gesto, vemos esse gesto, como ele acontece, o tempo que dura, a sua amplitude e, por isso, deve constituir-se tão importante quanto o resultado da manipulação de um determinado material. No caso das esculturas, a sua ambiguidade, ainda que representativa, as escalas distorcidas, são pistas para movimentos de transferência que tendem a uma desorganização e desclassificação, eventualmente perturbadoras de uma receção mais unívoca. Há um abdicar das funções e representações convencionalizadas que significam aquilo que é, para se instaurar uma presença silenciada, onde o não-fazer pode ganhar uma importância particular.

 

MvHP: Porém, é inescapável a tentativa de identificação com o teu corpo quando atuas…

 

VM: Para mim é um exercício que parte precisamente dessa consciência problemática, mas que aponta para a desidentificação como matriz essencial da possibilidade de abrir outras vertentes menos centradas em qualquer tipo de sensibilidade e emotividade pessoal.

 

MvHP: Na prossecução de uma obra sabemos que, muitas vezes, existe um trabalho preparatório que pode passar pela escrita de um guião ou pelo acumular de desenhos preparatórios, no teu caso não deixo de imaginar que a criação de determinadas obras referem performances ainda que inexistentes, isto é, acabam por parecer o resultado de uma ação onde a tua intervenção é potencialmente lida nesse culminar, como se estivéssemos a ver por trás do espelho.

 

VM: Sim, a forma ponderada e ajustada de me relacionar com os materiais, acaba por ecoar e propagar modos de atuação que derivam de gestos previstos e calculados; há um conjunto de esquemas, sistemas e modos de operar entranhados na minha prática que emergem sempre. A questão da escala é também determinante, estando completamente associada à possibilidade de manipulação sem interferência, o que me faz preferir uma escala de proximidade com o meu corpo. Por outro lado, o ato de compor, seja no atelier ou no espaço de exposição, tem sempre que ver com a minha medida e modo subjectivo como atribuo um lugar a um elemento (tenho uma tendência talvez obsessiva em compor, que vai para além da minha prática artística, e sinto que esse exercício constante, acaba sempre por se evidenciar). Ter o meu corpo como referência pode ser uma condicionante, mas ao mesmo tempo cria uma espécie de regra ou grelha onde opero e aí há de facto uma aproximação ao minimalismo, na medida em que sou muito consciente de como as peças se distribuem no espaço e nas relações que podem estabelecer entre si.

 

MvHP: Falemos agora desse episódio menos presente, mas não menos importante, a pintura, como no caso da série Sensation, apresentada na Galeria Pedro Oliveira, em 2018. Sinto que, mesmo aí, manténs uma distância particular com aquilo que, convencionalmente, pensamos como sendo pintura.

 

VM: Sim, essas obras foram realizadas com óleo que é uma técnica de pintura, mas é enquanto objectos que querem afirmar-se, ou mesmo como figuras que actuam naquele espaço, estando encostadas a elementos estruturais da galeria e, na sua maior parte, assentes diretamente no chão. A sua escala indicia a vontade e a possibilidade de abarcar o movimento e a ação dentro do alcance do meu corpo, raspando a tinta em movimentos únicos para criar as formas que lá aparecem.

 

MvHP: Verso e reverso, aí o percurso era ditado por uma vontade explícita de conduzir o espetador…

 

VM: Quando penso nas exposições penso, tal como referi anteriormente, na manipulação ou gestão de um circuito que tem que ver com uma tendência cenográfica assumida. Nas pinturas que mencionaste, o facto de elas serem vistas de frente pode remeter-nos para o dispositivo de um palco que se coloca na frente do espetador. Na exposição atual, as duas pinturas monocromáticas expostas são uma espécie de contrapeso para o resto da exposição, no sentido de quebrar e comprometer um silêncio que pudesse estar ali a acontecer e estabelecer um ritmo onde acontecem vários reenvios do olhar, do chão para as paredes, de experiências diferenciadas, conforme o posicionamento no tal circuito proposto.

 

MvHP: Mais uma vez, esse teu conhecimento do palco enquanto plataforma de trabalho pode ser aqui mencionado como propulsor de modos de atuação na disposição e montagem das exposições.

 

VM: Sim, sinto que é quando monto as exposições que de alguma maneira os trabalhos se fecham, num sentido de uma conclusão propositiva. Mas creio que isto acontece com muitos artistas, nomeadamente aqueles que inevitavelmente têm de trabalhar com o espaço. Para mim, frequentemente, o momento de erguer uma exposição opera transformações e faz acontecer os trabalhos de modos que não pude prever. É nos interstícios das relações entre as peças que elas ganham uma espessura mais densa, onde pode surgir uma ideia que elas por si não contêm. Interessa-me potenciar isso, o que irrompe dos espaços vazios nas exposições, e que não pude antecipar. Nos espectáculos de ventriloquismo aceitamos que as funções de um corpo se transferem para uma entidade inerte. Aqui podem deduzir-se as qualidades de significação em reenvios permanentes, percorrendo e adensando o que está entre as obras.

MvHP: Trabalhando a partir de uma discursividade que se estrutura a partir do corpo, é natural que o teu campo de ação se tenha debatido com os desenvolvimentos vertiginosos que as práticas e teorias feministas foram sendo alvo nas últimas décadas. Como é que te posicionas neste contexto?

VM: Hoje, o feminismo tornou-se um campo de discussão cada vez mais vasto, complexo e abrangente: um conjunto de intersecções entre questões de género, cor ou classes sociais, em todas as combinações possíveis. Enquanto indivíduo, procuro estar atenta a discursos das mais diversas vozes sobre esta problemática, ter um olhar crítico e agir ativamente. No entanto, no meu trabalho estas não são as questões prioritárias. Quero acreditar que afirmar aquilo que quero afirmar, na minha prática artística, deve constituir uma forma de contrariar qualquer tipo de constrangimento indevido que se possa impor a um corpo. Fazer e ser de acordo com aquilo que acreditamos e procuramos, pelo direito que temos a isso, seja qual for a forma manifesta.

 

Vera Mota

Galeria Bruno Múrias

Outros artigos sobre Vera Mota

Miguel von Hafe Pérez. Curador independente. Iniciou a sua actividade na Fundação de Serralves, em 1989. Exerceu, posteriormente, o cargo de director da Fundação Cupertino de Miranda, entre 1995 e 1998 e foi responsável pela área de artes plásticas e arquitectura da Capital Europeia da Cultura, em 2001. Comissariou o pavilhão de Portugal para a Bienal de São Paulo, em 2002. Dirigiu o projecto Anamnese, um arquivo sobre arte contemporânea portuguesa para a Fundação Ilídio Pinho. Entre 2003 e 2006 fez parte da mesa curatorial do Centre d'art Santa Mònica em Barcelona. Entre 2009 e 2015 foi director do Centro Galego de Arte Contemporánea, em Santiago de Compostela, Espanha. Actualmente, assume a curadoria de vários projectos expositivos.

 












21 queda, evento, composição, figura I 2013
22 queda, evento, composição, figura II 2013
23 queda, evento, composição, figura II 2013
24 queda, evento, composição, figura IV 01

Vera Mota, "Queda, Evento, Composição", Figura I, 2013. Performance. Mosteiro São Bento da Vitória, TNSJ / Performance. Appleton Square / Performance. Marvão.


15 abc 01
16 abc 02
17 S: titulo 2012

Vera Mota, a, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o, p, q, r, s, t, u, v, w, x, y, z. 2012. Couro e grafite sobre a parede. 130 x 1000 cm. S/ Titulo, 2012. Aguarela sobre papel. 75 x 110 cm. Cortesia da artista.



Voltar ao topo