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Vera Mota: levar a cabeça aos pés

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Maria Beatriz Marquilhas

Centrado nas políticas do corpo, o trabalho de Vera Mota tem estado ancorado na ideia de obra enquanto paisagem, pictórica ou escultórica, que resulta da acção de um corpo num determinado espaço.

Se esta ideia se tem vindo a concretizar sobretudo através de exercícios performativos em que as composições espaciais resultam de movimentos coreografados pelo corpo da própria artista, em levar a cabeça aos pés, patente na galeria Pedro Cera, o gesto físico de origem corresponde a uma omissão que apenas se adivinha. Tal como "levar as mãos à cabeça", levar a cabeça aos pés é um exercício do corpo que excede o espaço simbólico do corpo. Uma presença vai-se tornando mais pesada e concreta pelo modo como adivinhamos os movimentos que deram forma aos objectos que encontramos no espaço, como um fantasma que habitou demais a casa deserta que assombra.

Se Antecipação (2018), um recipiente circular cheio de pigmento de um azul Klein sob dois arcos suspensos por tiras de couro, nos remete de imediato para um espaço de exercício do corpo, como um ginásio, em outros trabalhos essa alusão é mais conceptual e assente numa lógica de natureza escultórica, como se esses objectos tivessem conquistado uma autonomia material e simbólica face ao corpo que os executou. A obra diferencia-se ainda pela estranheza do azul do pigmento, que convoca uma artificialidade intrusa nas cores térreas e metálicas dos materiais que se harmonizam na sala. 

 

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Sobre uma rampa em mármore esverdeado, repousam quatro miniaturas de uma cabeça humana. Produzidas em gesso e idênticas entre si, parecem resultar de uma produção em série. A posição das cabeças no fundo da rampa, que se seguiria ao movimento descendente de rolar pela superfície, sugere-nos um acto sucessivo de decapitação, de separação da cabeça e do corpo. Nas hierarquias e sujeições do corpo, a cabeça é sempre o elemento que governa, que dita a lei e que acciona o movimento. Não por acaso, é também a fracção anatómica mais desvinculada da sua condição corpórea.  

Três estruturas triangulares em ferro e duas bolas em madeira que repousam no chão poderiam ser os instrumentos de um estranho jogo de regras ainda por inventar. Nesta Construção contínua (2018), a bola alicia a palma da mão, na qual se conjectura o encaixe, e as três estruturas, nas suas proporções humanas e voltadas para o seu centro, parecem criar um espaço de comunicação entre si, um colóquio circular do qual somos excluídos.

Encontro afectuoso (2018) dá título e argumento a um cubo em vidro acrílico sobre o qual repousa, como que em abandono, um largo pedaço de feltro. A fisicalidade própria dos dois objectos, antagónicos nas suas propriedades visuais e tácteis, de consistência e de brilho, cria um confronto que aqui se converte numa ligação de contiguidade afectiva. Se o sólido transparente reflecte e transluz o que o rodeia, sobre ele, o feltro tudo absorve.

Dispersos pela sala num esquema que vamos coreografando, os objectos encontram-se em repouso, como se os seus usos tivessem sido temporariamente interrompidos e aguardassem o regresso de um corpo para serem de novo activados.

Uma caixa (2018) em cobre problematiza a informação que a visão capta e que confronta as nossas ideias pré-definidas acerca do peso, maleabilidade e temperatura dos objectos e o modo como estas resultam numa expectativa corporal que depois pode ser defraudada, ou não, pelo contacto físico com o material. Apesar de posicionada obliquamente, como se tivesse acabado de ser largada no chão, o peso que associamos à coloração manchada do cobre de que é feita dificulta ou condena qualquer leveza e mobilidade próprias do objecto caixa.

Por último, regressamos à cabeça. Cara (2018) é um pedaço de ferro esburacado e aparentemente desgastado colocado na parede à altura média do olhar do espectador e de dimensões análogas às de um rosto humano. Aqui, o exercício metafórico da escultura corresponde à totalidade da sua presença, é uma coisa que está no lugar de outra. A imagem de uma cara e o objecto em ferro permutam-se num mesmo uso simbólico: o de um rosto que nos interpela.

Os corpos são centros de criação que expandem o mundo através dos objectos, ideias e ficções a que vão dando forma e que lhe sobrevivem. Os ódios e paixões que cultivam devem-se sobretudo ao modo como materializam a sua própria desmaterialização. Tudo tem origem num corpo vivo e, no entanto, o corpo é quase sempre uma ausência, um porto de origem agora longínquo. Sempre o terá sido e, no entanto, nunca os corpos orgânicos se quiseram tão fora de si mesmos, investidos de ubiquidade e livres da fisicalidade precária da carne. Em levar a cabeça aos pés, o plano conceptual de Vera Mota parece estar na atribuição de qualidades e disposições humanas aos seus objectos, como o afecto, o jogo ou a comunicação, que identificamos através de subtis analogias. Estáticos nas suas pesadas e diversas materialidades, os trabalhos parecem ter sido interrompidos nos seus movimentos. Habitam um intervalo. O corpo que os deslocou é a ausência desmesurada que se afirma como personagem principal deste acto.

Vera Mota

Galeria Pedro Cera

 

Maria Beatriz Marquilhas

Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

 

 

 

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Vera Mota, Vistas da exposição levar a cabeça aos pés. Galeria Pedro Cera, Lisboa, 2018. Fotografias: Bruno Lopes. Cortesia da artista e galeria Pedro Cera.

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