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Túlia por Luiza Saldanha

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Celina Brás

Porque é que há algo em vez de nada? E vice-versa.

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A obra da minha mãe continua a revelar-se um grande mistério para mim. Parte de um questionamento constante, de reflexão sobre a sua vida e sobre as acções que ela teve de desenvolver. Conheci-a desde o meu momento inicial e com ela vivi num espaço de intimidade, uma proximidade afectiva que não contribui para que eu exerça um olhar distanciado e crítico sobre a sua obra.

Neste testemunho pessoal, apenas quero reafirmar a autenticidade, a intensidade e a convicção do seu exercício de vida.

Cresci num ambiente familiar muito afastado desse que constituiu os últimos vinte anos da vida de Túlia, durante os quais se dedica por inteiro ao empreendimento da sua obra. Obra essa que não se esgota na produção autoral, mas que se inscreve, também, na criação e promoção de condições e meios para o ensino, conhecimento, produção e divulgação. São verdadeiros projetos de missão, coletivos e colaborativos, de ação e intervenção cívica, pedagógica e artística. Atividades que decorrem em simultâneo e, por vezes, se confundem com a própria obra.

 

Período 1930-1959

 

Casou muito nova, com quinze anos apenas, e viveu com uma pessoa que, de certa forma, lhe foi estranha. Foi um casamento imposto, não voluntário.

Não teve uma vida fácil. Encontrava-se interna num colégio quando a foram buscar para um casamento predeterminado. Não teria ainda quinze anos. O meu pai, com vinte anos de diferença, já formado em advocacia, era também o seu encarregado de educação. Primeiro em Bragança, onde em internato ela foi estudar, e depois no Porto, no Colégio interno das Irmãs Doroteias, já isolada da família e amigos.

O marido era uma figura distante, tutelar e autoritária.

Viveram casados onze anos. Inicialmente em Vila Nova de Gaia, onde ele era Secretário da Câmara Municipal e, posteriormente, em Macedo de Cavaleiros, lugar ao qual regressa para exercer a profissão de notário e de advogado.

Ao tomar conhecimento da relação extraconjugal do marido, que, perante a incomodidade social levantada no pequeno meio macedense, se sente pressionado a sair do país com a amante, a minha Mãe encontra a oportunidade para pedir a separação judicial. E penso que foi durante esse processo que refletiu, pela primeira vez, sobre a sua identidade: o desejo de viver a sua vida de forma autónoma, poder ser e poder estar.

Na altura, não havia divórcio, a condição feminina desenrolava-se entre balizas censórias de género, políticas e de moral. 

Existia uma figura jurídica para estes casos: separação de pessoas e bens. Este processo judicial leva, de recurso em recurso, quase doze anos a cumprir e só em 1966 o tribunal lhe concede a inteira autonomia em relação ao marido: a posse dos seus bens e a confirmação da tutela maternal. Decide, entretanto, responsabilizar-se sozinha pela educação das duas filhas e inicia atividades que irão contribuir para a sua independência. Estabelece contactos e, com o objectivo de as filhas acederem futuramente ao ensino universitário, toma decisões. Em 1959, aluga um apartamento em Coimbra e aí reside desde então. Começa a construir, finalmente, o seu espaço de liberdade.

 

Período 1959-1967

 

Enquanto adolescente procuro a minha autonomia e distância familiar. A vida da minha Mãe acompanhará esse meu movimento de afirmação.

Em 1966, inscrevo-me no CAP: Círculo de Artes Plásticas e no CITAC: Círculo de Iniciação Teatral, da Academia de Coimbra. Túlia, com o objectivo de conhecer o irrequieto, contestatário e transgressivo circuito social que eu frequentava, e de, também assim, me proteger, inscreve-se no CAP, onde passa a ser uma associada permanente, atenta e muito curiosa sobre o que se passa no Círculo e na cidade. Este é o seu primeiro contacto com o meio artístico. Não tendo um percurso artístico de formação, começa tardiamente, aos 37 anos, a tomar conhecimento das questões, dos processos e das formas de relação que este novo mundo lhe poderá proporcionar.

Desde os anos sessenta que a arte se refere a outra arte. Encontra caminho na experiência de novos suportes e manifestações, em novas formulações, rupturas, apropriações, discursos, expansões e interações. A Arte encontra-se em processo, ou em ação operativa e performativa, abrangendo todos os campos do humano. As curadoras da exposição, recentemente realizada no CAM: Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, invocam um termo que me parece expressar da melhor forma a experiência relacional mais efetiva na sua obra, ao mesmo tempo que não deixa de ser potencialmente afectiva: "projetos coletivos e colaborativos". A obra de Túlia, de forte expressão autoral é, na sua essência, uma obra relacional e construída em relação com o outro.

Outro aspecto importante é o facto de a história de Túlia não estar alheia a dois momentos fulcrais no movimento das ideias político-sociais que perpassam nas décadas de sessenta e setenta, em Portugal e na Europa, e, em particular, no ambiente social e académico de Coimbra. Tinha sido assim já em 1962, durante as greves académicas de 1969 e seria, mais uma vez, em 1974. Testemunhei essas mudanças e a forma como a minha mãe as viveu, nelas participou e comigo as debateu. Emergiram novas configurações e posicionamentos sociais (não só de esfera ideológica, mas sobretudo de pensamento crítico) que projectaram outras possibilidades de vida em comunidade, em prol de uma sociedade mais justa, liberatória e participativa.

 

Período 1967-1988

 

A ligação de Túlia ao CAPC, cuja afirmação como centro de formação, criação, produção e divulgação artísticas, deve muito à sua contribuição e presença quotidianas, nas vertentes da criação artística, nas de direção, gestão e programação e no âmbito da pedagogia (integrou o Conselho Artístico a partir de 1969, a direção e o corpo docente a partir de 1974 e foi sócia fundadora do CAPC aquando da sua autonomia da estrutura associativa da Academia de Coimbra), será permanente e até ao fim da sua vida.

É neste "círculo" que irá pôr em prática as suas convicções e criatividade durante os restantes vinte anos de vida.

Em meados nos anos sessenta, o CAP inicia um novo ciclo de actividades. Desliga-se das técnicas de aprendizagem tradicionais associadas à pintura, ao desenho e à cerâmica, até então orientadas por Waldemar da Costa, e, pela iniciativa da nova direcção, aproxima-se de práticas artísticas contemporâneas. Surge, assim, uma atmosfera muito participativa, de crítica social e de afirmação na diferença mas, também, de amizade e cumplicidade.

A vinda de Túlia para o Círculo coincide com este período em que se começa a fazer uso de todos os meios e métodos experimentais, numa exploração de possibilidades transversais e múltiplas, num processo paralelo com os novos posicionamentos internacionais e que parece ser único e exemplar no meio artístico português.

Era um meio formativo muito aberto à experimentação, conduzido por jovens professores ligados à Escola de Belas Artes do Porto: Nuno Barreto, João Dixo, Júlio Bragança, Ângelo de Sousa e, mais tarde, Alberto Carneiro. As viagens de estudo, então organizadas anualmente pelo CAP a cidades e museus na Europa e outras, por sua própria iniciativa  (Paris, Londres, Madrid, Amsterdão, Bruxelas, Madrid, Berlim), proporcionaram-lhe contacto direto com as obras históricas e as correntes contemporâneas, complementadas pelas aulas teóricas e de ateliê que os novos orientadores trouxeram para o Círculo. Para alguns dos seus associados, entre os quais a minha Mãe, o CAP tornou-se residência artística em permanência, campo e laboratório para todas as experiências e projetos. É esse espírito que ela potencia e que, ainda hoje, marca a sua história e as memórias a ele associadas.

O "Círculo", na Castro Matoso nº 18, foi, durante as décadas de setenta e oitenta, o ponto de encontro, de formação, de intersecção e de confronto de artistas, críticos, ensaístas e amadores, nacionais e internacionais, de várias gerações e tendências artísticas.

A história do CAP/CAPC está, em meu entender, ainda mal documentada e com muito por descobrir, escrever, analisar e refletir, pese embora terem surgido ultimamente alguns trabalhos académicos dedicados.

O que a Arte tem de revolucionário é a sua valência potenciadora e libertadora para transformar a Vida. Gradativamente, tornou-se dependente de um sistema mercantil, com o qual por vezes se funde e confunde. Cada vez mais e numa clara evidência: entre a pura monetarização, por um lado, e as chamadas indústrias culturais, sobre-vivendo pelo espetáculo.

A missão pedagógica de Túlia, enquanto artista e membro activo da comunidade, não se compraz com programas culturais estratégicos de pura promoção e visibilidade, mas sim com projetos e acções inclusivas onde o aspecto humano se inscreve e revela no tempo. Para ela é necessário reivindicar a autonomia da cultura e é necessário defendê-la como um direito: um direito à vida e um direito de vida. O que configura uma ação política.

Reconhecemo-nos nas Obras de Arte mas sempre de uma maneira diferente. Túlia coloca-nos perante essa experiência: a inscrição de si (do ser). Esta expressão autoral de natureza autobiográfica, performativa e de afirmação de si, de ser-aí, é um aspecto característico da sua obra, o qual as curadores Liliana Coutinho e Rita Fabiana tão bem fizeram surgir na exposição organizada pelo CAM. Geraldine Gourbe, num texto seu incluído no catálogo, deixa uma interrogação pressentida: ‘como desprender-se de si própria?’ ou "Porque é que há algo em vez de nada? E vice-versa". Esta condição auto-referencial, de questionamento de si e do sentido da vida, é, também, evidenciado como um propósito na sua prática pedagógica e na manifesta inscrição das relações e afectos no seu percurso artístico.

A sua convicção no poder e no carácter transformador da arte acaba por ser o fio condutor de todo um processo de afirmação e vontade humana.

Demonstrando como a autenticidade da vida pode emergir do nada da incerteza e da injustiça. Estas características perduram na memória de tantas pessoas que a conheceram; companheiros, amigos, artistas ou alunos.

Cito, livremente, as palavras de um Amigo, Ernesto de Sousa, escritas em 1986, aquando da sua exposição Travelling na Galeria Quadrum: "Não me interessa. Só o que interessa é esclarecer as coisas, para um saber absoluto. De qualquer maneira, não te poderia dizer senão: Sê Outro, Outra, a Diferença. Do lado da loucura...  como ferida jamais suturada, incomodidade jamais sossegada: estar no mal-estar...’. Assim, ‘...Então tudo, até a Alegria. será possível...".

 

1988-2015

 

Passaram vinte e seis anos até ser realizada esta exposição em Portugal — houve outras mostras pontuais, decisivas para a recente emergência da sua obra, mas não com este carácter de antologia — e dou aqui testemunho do desejo e satisfação que a minha Mãe teria tido ao ver a sua obra, assim, em contacto outra vez com o público e com os seus amigos.

Sempre mantive a expetativa, que esta mostra fosse realizada no CAM: Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Aconteceu agora realizada de forma tão generosa, competente e plena de sentido, sendo colocada, assim, à fruição e compreensão dos públicos, por iniciativa de Isabel Carlos, com a dedicação de toda a sua equipa. Foi realizada numa instituição de referência para a Túlia, pois o CAP/CAPC contou sempre com o apoio da Fundação para a prossecução das suas atividades. Foi exemplar, em todos os sentidos.

Uma exposição difícil, mas ao mesmo tempo desafiadora, pois quem nela trabalhou teve de partir praticamente do nada, do quase desconhecimento da obra. Com a escassez documental, própria da época, muita documentação encontra-se em parte incerta, nomeadamente a que fixei em fotografia (1975-1988) e a que sempre atribuí, na altura, conscienciosamente a devida importância de registo. Só com o contributo amável de todos os que trouxeram obras, documentos, testemunho e presença, houve meios para ir tão longe.

Não sendo uma exposição exaustiva (foi mostrada apenas uma parte da sua obra) a investigação das curadoras, a colaboração escolhida e a edição do magnífico catálogo, conduziram a uma compreensão bastante aproximada do caráter e do contexto em que a sua obra se produziu. Complementada ainda com a itinerância da exposição (até final de Março de 2015) a um dos lugares de incidência e afeição de Túlia, desde o início da sua fundação pelos amigos Wolf Vostell e Mercedes Guardado, o Museo Vostell Malpartida, na Extremadura Espanhola.

Resgata-se assim esta obra entre tantas, de artistas que ainda esperam o seu tempo merecido, obras que nos confortam na nossa história comum e no reconhecimento da nossa singularidade.

Fico grata a todos, instituições e pessoas, que generosamente contribuíram para este momento tão particular de transmissão e reconhecimento de um legado que, acredito, continuará a significar no tempo.

Luiza Saldanha

 

A partir de uma conversa com Celina Brás e a propósito da exposição Túlia Saldanha no CAM, em 2014. Este texto foi previamente publicado, na edição experimental da revista Contemporânea, versão digital, a 10 de fevereiro de 2015.

 


Imagens: Túlia Saldanha: uma hora vi. Vistas gerais da exposição no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, Bragança, 2020-2021. Cortesia de Luiza Saldanha e CACGM.

 

Notas:

[1] La scène performative portugaise pendant et après la dictature: une cartographie des genres, Géraldine Gourbe, Ecole Supérieure d’Art d’Annecy.

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