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Tiago Madaleno: Um Jardim à Noite

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Eduarda Neves

O jardineiro ideal é a sombra de uma árvore 

 

Desenvolvendo uma prática artística que cruza vários media e disciplinas, Tiago Madaleno apresenta a sua última exposição no Porto, no espaço RAMPA. Este projecto contou com o apoio à criação artística do programa Criatório 2019, da Câmara Municipal do Porto. A exposição é acompanhada de um livro com o mesmo título que inclui textos de Allen S. Weiss, Pedro Pousada e uma conversa entre o artista e Nancy Perloff. Tiago Madaleno expõe regularmente, desde 2013, e em 2017 venceu o prémio Novo Banco Revelação com a obra Clepsidra.

 

Eduarda Neves (EN): Um Jardim à Noite, título da tua mais recente exposição, articula som, vídeo, luz, pintura e texto. Tomas como ponto de partida um jardim que pertenceu a Kurt Schwitters, quando o artista ainda era criança, e que terá sido destruído por crianças vizinhas. Este Jardim à Noite é o teu Merzbau ou o teu jardim paisagístico inglês, que não se rege por normas universais, mas, ao contrário, nele converge, por exemplo, a contemplação estética da natureza e a consciência de que esta pode constituir material para a arte, subtraindo-se ao gosto particular do proprietário de um jardim ou de um jardineiro?

Tiago Madaleno (TM): Um dos maiores desafios do projecto encontrava-se no facto de este se querer situar no limiar entre a possibilidade e a impossibilidade de representação daquele jardim perdido. Ao invés do seu simulacro, pretendi que o foco do trabalho fosse o campo de luta inerente ao gesto criativo: os paradoxos, ambiguidades e desencontros entre a formulação teórica e a concretização prática.

Este campo de luta, comum ao universo da pintura e ao universo dos jardins, encontra-se plasmado na admiração que Kurt Schwitters dizia sentir pela forma como o arquitecto paisagista Harry Pierce, com poucos gestos, conseguia manipular a Natureza, conduzindo-a a uma ideia de composição, enquanto ao mesmo tempo era capaz de sugerir organicidade. Apesar de virem de contextos diferenciados, — o primeiro, um artista de vanguarda, o segundo, um arquitecto paisagista que seguia a tradição do jardim inglês — parecem encontrar-se neste desejo de aproximação a um “vocabulário natural”, nesta obsessão pelo jogo entre forma/informe.

O projecto utiliza o encontro entre estas duas figuras, as suas histórias e contextos, para construir uma ficção que reflecte sobre as ambiguidades e tensões inerentes a esse gesto. É assim que o jardim inglês se torna numa referência. Apesar de surgir como um retorno à Natureza, fruto de uma reacção face ao modelo geométrico do jardim francês, recorre ao imaginário formal da pintura e a uma obsessão com a construção de paisagens para consolidar a sua visão. Este paradoxo materializa-se na figura idealizada do caminhante livre que, apesar de ambicionar maravilhar-se a cada encruzilhada face o inesperado, na verdade, encontra o conforto na imobilidade de um ponto de vista específico que privilegia a beleza ou o pitoresco. Estas contradições entre ambições teóricas e limitações técnicas, entre o desejo do caos e os limites da forma, oferecem grande parte do fascínio que me levou a querer investigar mais estes contextos e neles encontrar pontos comuns.

Porém, apesar de invocar esses universos, não creio que o meu projecto seja uma sugestão de um Merzbau ou de um jardim inglês. Ambos aparecem como espectros, invocações, sendo referidos nos textos que habitam nas paredes, mas o projecto não pode ser tido como a coisa em si. Apesar de também ocupar o espaço de uma forma instalativa, não se encontra na exposição o gesto de acumulação de detritos, nem a obsessão coleccionista de Kurt Schwitters, espinha-dorsal da configuração do Merzbau. O jardim aparece como manifestação de um desejo, como um símbolo.

Um Jardim à Noite invoca esses universos como elementos para a construção de uma proposta alegórica. Quando sugere uma imagem definida apressa-se a negá-la através do ciclo de metamorfose, quando apresenta imaterialidade e vazio, logo o contraria com a presença luminosa e física dos textos inscritos no espaço, quando propõe uma forma esforça-se por manter a possibilidade do informe.

EN: Sim, claro, não me refiro a uma qualquer apropriação directa ou integral do Merzbau nem de um jardim inglês, dado que isso é evidente na tua exposição, mas estou a tentar compreender o que neles te motivou para a construção deste projecto. Digamos que o campo de luta que mencionas como sendo comum aos universos da pintura e do jardim também o é a muitos outros territórios. Quando vi a tua exposição associei-a também ao facto de o Merzbau e o jardim inglês sugerirem uma actividade perceptiva e motriz que se expande no tempo e no espaço. Vou usar uma noção relativamente à qual poderás não encontrar qualquer sentido no âmbito deste projecto mas foi a que me ocorreu enquanto deambulava pela tua exposição: a de mistério.

TM: O que me motivou é um fascínio pela ambiguidade simbólica por detrás do evento e das histórias que o rodeiam. Por exemplo, o encontro entre Harry Pierce e Kurt Schwitters encontra-se repleto de mistério, para utilizar a palavra que invocas. É quase como se Schwitters tivesse experienciado uma espécie de círculo completo, em que, no final da sua vida se confronta com aquilo que poderia ter sido se aquele evento trágico não tivesse acabado por alterar o seu destino.

Diz-se que foi no decorrer da crise epiléptica que Kurt Schwitters teve ao ver o seu jardim ser destruído que, forçado a ficar de cama em recobro durante um período de dois anos, este começou a desenhar e a pintar. Ou seja, a perda do jardim fica também vinculada a uma espécie de mito fundador do artista.

Estas associações e coincidências serviram-me de referência para a criação de uma ficção que organiza o projecto em que Harry Pierce aparece como uma espécie de duplo, de doppelganger, de Kurt Schwitters. Como se fosse a personificação de um desejo reprimido.

EN: Contas o efeito avassalador que a destruição do jardim produziu no corpo de Kurt Schwitters e perguntas se será possível representar um jardim não dominado pela autoridade do gesto humano, que abrace a sensação de vertigem ou o trauma… ou ainda, como pode um jardim incorporar uma ideia de fragilidade, em que a mão do jardineiro surge enfraquecida? A hipótese de incorporar o acontecimento traumático na representação do jardim, permite compreender não só a realidade do acontecimento em si mas também a sua historicidade, ou seja, o que acontece depois e é assumido pelo sujeito, a sua própria história. Em que medida encontramos essa possibilidade objectivada neste teu jardim, seja através do gesto, seja pelas relações que operas entre luz-escuridão, movimento-imobilidade, equilíbrio-desequilíbrio, som-silêncio, matéria-vazio, e que nos aparecem revestidas por palavras, as tuas ervas daninhas que parecem minar todas estas divisões?

TM: Allen S. Weiss, no texto Obituary to the trees of Versailles (2000) reflecte sobre a forma como a preservação de um jardim, através da tentativa de fixação de um elemento vivo e da repetição dos mesmos gestos, associam a sua existência a uma experiência traumática. Como Natureza subjugada à vontade humana, a ferida é subjacente à existência do jardim. Por detrás do silêncio geométrico, rigoroso, dos jardins de Versalhes, oculta-se a presença da devastação provocada pelas várias tempestades que o assolaram ao longo dos tempos, mas também os persistentes gestos de reconstituição da sua forma, que anularam qualquer vestígio de descontrolo.

O que Allen S. Weiss parece evidenciar nesse texto é o vínculo entre trauma e o jardim, entre trauma e o desejo de controlo. Nos jardins do Palácio de Versalhes, o trauma manifesta-se no gesto e não na forma do jardim. Quando coloco essas questões que enuncias, pondero qual a diferença entre Jardim e Natureza se o primeiro não estiver subjugado ao gesto humano. Existe jardim se este não for manifestação de um gesto humano? Como incluir no jardim as ervas que crescem para lá do terreno de cultivo, para lá do desejo do jardineiro? Como tornar esse trauma visível na forma? E como é que essa inclusão do acaso, poderia, paradoxalmente, constituir um abraçar de possibilidades, de um novo estado de potência? É neste paradoxo que subjaz a poesia da estranha sincronia proposta pela imagem de Kurt Schwitters tendo um ataque epiléptico enquanto o seu jardim é destruído. A rendição do espaço à violência encontra-se com a rendição do corpo ao descontrolo.

Esta exposição procura as suas respostas através de um jogo cíclico de contrastes oferecidos pela sua forma. Ao relato de uma experiência de perda e descontrolo apresentado pela primeira parte do vídeo sucede-se um conjunto de paisagens tranquilas, que se aproximam da experiência onírica; à experiência absorvente dos sons de floresta intromete-se um corte abrupto para um sapateado ensurdecedor e mecânico; às palavras que surgem luminosas das paredes nega-se a sua visibilidade permanente. Cada final do ciclo, implica um novo recomeço, enunciando nessa mutabilidade uma tensão que parece negar a possibilidade do conforto. Para além disso, invoco a ambiguidade simbólica e política presente nas ervas daninhas através das várias propostas de textos que se apoderam do espaço (Ervas Daninhas, 2020), que jogam com uma ideia de território e de conflito de vontades. Os textos não concordam entre si: uns personificam a experiência delirante do sonho, outros cedem a um apelo de ordem. Várias ideias de jardim manifestam-se de acordo com as diferentes ambições de cada conjunto de ervas.

EN: Alguns jardins deixam viver as ervas daninhas, essa espécie de acaso desordenado, e imprevisto, apesar de algumas delas nascerem ao lado de plantas ou flores cultivadas e serem mais resistentes que estas, concorrendo até com elas; há jardineiros que não lhes impõem o seu gesto, o seu desejo. Há um enorme potencial político nas ervas daninhas. Insistem e persistem, mesmo quando alguns jardineiros anulam as multiplicidades desejantes.

TM: Sim, sem dúvida. Umas das coisas mais fascinantes para mim é o facto de as ervas daninhas não serem sequer uma espécie de planta em concreto. Essa designação é definida pelo desejo do jardineiro. Existe uma correlação com uma ideia de conflito: uma erva daninha é geralmente entendida como o intruso, o não desejado, o que invade o território que não lhe pertence. Elas acabam por estabelecer um paralelismo simbólico com a condição de exilado, que perseguiu Kurt Schwitters durante grande parte da sua vida, quando este se vê forçado a fugir da Alemanha por ser tido como artista degenerado.

EN: Até que ponto os efeitos físicos descritos por Schwitters, na sequência do choque epilético provocado pela destruição do jardim, projectam, na tua exposição, a ideia de que os jardins, como os corpos, constituem espaços performativos para o exercício da imaginação? Ou ainda, se quiseres, em que medida os podemos entender, em si mesmos, como potências narrativas para a criação de um “pensamento que saiba dançar”, se saiba espacializar?

TM: Influenciado pela coincidência de padrões entre o jardim barroco de Versalhes e os movimentos coreográficos protagonizados pela corte de Luís XIV, uma das premissas do projecto era pensar como abordar essa imagem do corpo de Kurt Schwitters a dançar espasmodicamente enquanto o seu jardim era destruído. Se no primeiro caso, se registava a aparente coincidência entre o racionalismo da forma e do movimento, no caso de Kurt Schwitters encontrava-se o oposto: a coincidência no caos. A peça sonora Sapatos vermelhos (2020) é uma tentativa de promover essa fusão simbólica entre Kurt Schwitters e o jardim perdido. A ideia era pensar não num espaço que recebe uma performance, mas num corpo cuja performance o transforma num espaço.

Conta-se que uma epidemia de dança que aconteceu em Estrasburgo no séc. XVI terminou quando os enfermos, que não conseguiam parar de dançar, foram levados até um santuário dedicado a São Vito e nos seus pés ensanguentados foram colocados sapatos vermelhos. Esta história ironicamente encontra o seu reflexo invertido na história d’ Os Sapatinhos Vermelhos, de Hans Christian Andersen, onde os sapatos aparecem como o castigo para a vaidade e a desobediência, obrigando a menina protagonista da história a dançar infinitamente, sem conseguir parar. Esta situação limite, leva-a num acto de aflição, a pedir a um carrasco que lhe corte os pés. Apesar de resoluções diferentes, ambas as histórias estipulam uma associação entre a dança e o desespero que me serviu de referência para o desenvolvimento do projecto.

Sapatos vermelhos utiliza excertos de sapateado, que improvisei no interior do Merzbarn (o último projecto de Kurt Schwitters), para compor uma peça sonora que acompanha essa metamorfose do corpo. Através da manipulação digital, esses sons produzidos pelo corpo vão sendo transformados numa sugestão de paisagem florestal nocturnaMesmo na sua aparente ausência, o corpo acaba por persistir omnipresente durante todo o ciclo da exposição em todos os fragmentos de som. Na sua performance reside o potencial narrativo que permite a criação de um espaço.

EN: Em que medida este teu último trabalho dá continuidade a uma espécie de convocação simbólica do corpo, às suas marcas, nas quais podemos encontrar uma potência maior que a sua imediata presença física no espaço?

TM: Um Jardim à Noite continua uma exploração que tenho vindo a desenvolver nas minhas últimas exposições em que um dado evento performativo se apresenta sob a forma de uma instalação. A presença do corpo manifesta-se nas propriedades simbólicas dos meios invocados e não através da sua existência física no espaço.

Nesta exposição, por exemplo, o corpo aparece na peça sonora, como já referi, no gesto que pinta os textos nas paredes, na voz que se manifesta nas legendas da primeira parte do vídeo ou na respiração da silhueta que vai conduzindo o brilho das árvores na segunda parte. É nesses vestígios de presença, que metamorfoseiam o corpo segundo as diversas linguagens, que encontro o potencial narrativo que recupera e reconstrói o evento, que o transformam num símbolo.

EN: Na instalação que nos propões, a concepção espacial, o vídeo, o texto escrito e a peça sonora parecem-me funcionar como vectores estruturantes. No entanto, até que ponto a espacialização do som e a tinta fotoluminescente convocam as dimensões temporais desta exposição?

TM: Toda a exposição se configura como um ciclo que alimenta as propriedades da tinta fotoluminescente. Mais do que brilhar no escuro, interessou-me o facto deste material necessitar de um período de tempo para carregar as suas propriedades luminosas, de maneira a poder emitir luz quando esta desaparece do espaço. Esta necessidade aproxima este material de uma entidade orgânica: tal como uma planta esta tinta precisa de ser alimentada com luz, possui um tempo de duração de vida, que corresponde ao seu tempo de luminância, e necessita da existência de um ciclo. Desta forma, o material estabelece simbolicamente uma ponte entre o universo da pintura e o da jardinagem.

Estas características contribuíram para a definição da estrutura da exposição, transformando-a num todo sincronizado. Se é notório que texto, som e espaço estabelecem um diálogo na sala grande, por outro lado é o vídeo Silhueta de um estranho (2020) que determina o apagar ou acender das luzes através da intensidade luminosa da sua projecção. São as propriedades materiais das várias linguagens invocadas (som, vídeo, pintura, texto), que vão estipulando os diversos jogos simbólicos ou até os diversos tempos, propostos pela exposição. Por exemplo, é a luz da projecção de vídeo que “rega” o texto pintado no chão permitindo que este se ilumine. Através do diálogo e contaminação dos diferentes meios, a exposição constrói para si um tempo próprio de vida e morte, como um jardim que não precisa de jardineiro.

 

Tiago Madaleno

RAMPA

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria cruza os domínios da arte, filosofia e política. 

 

A autora escreve segundo a antiga ortografia. 

 

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Tiago Madaleno: Um Jardim à Noite. Vistas gerais da exposição no espaço Rampa, Porto, 2020. Fotos: cortesia do artista e Rampa.

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