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It's a date: Dana Lok

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Alberta Romano

 

It’s a date é uma nova rubrica da Contemporânea da autoria de Alberta Romano, dedicada a visitas a ateliês de artistas de Lisboa e de todo o mundo, tanto físicas como online.

Episódio 2: Dana Lok

 

Lisboa > Brooklyn, 23 de Setembro, 2020

Recentemente percebi (ou pelo menos suponho que percebi) a diferença entre o MEU tempo e o tempo que o resto do mundo parece “impor” sobre mim. Inicialmente descobri que a diferença entre os dois não tinha fim, e depois compreendi que as acções levadas a cabo de acordo com o meu tempo eram muito mais originais e criativas do que aquelas homologadas pelo tempo dos “outros”. Bem sei que este início pode parecer uma cassete de auto-ajuda, mas sabem uma coisa?, não me interessa. Esta é a primeira consequência do respeito pelo meu tempo individual.

Na antiga Grécia o conceito de “tempo” era expressado de várias maneiras e, por conseguinte, assumia diferentes valores. De entre estas formas encontravam-se Chronos (χρόνος) e Kairos (καιρός). Chronos era o tempo cronológico ou sequencial, por isso dizia respeito à quantidade. Kairos referia-se a um momento oportuno para a acção, por isso era utilizado para descrever a qualidade do tempo. Não surpreende que ao longo dos séculos, com uma sociedade focada na produção, todos os vestígios desta diferença semântica se tenham perdido e que tenhamos preferido fundir os dois conceitos temporais num único, reservando a Kairos o espaço limitado a um fim-de-semana ou ao almejado sonho da reforma.

Eu já sabia que o trabalho de Dana Lok se relacionava com o tempo, mesmo antes de lhe fazer o convite para a nossa visita virtual ao seu ateliê. Na verdade, sei-o desde que vi pela primeira vez um dos seus trabalhos. Os sujeitos das suas pinturas estão de certo modo suspensos numa porção não identificada de tempo e espaço e parecem sempre os guardiões de algo que só será revelado quando aceitarmos perdermo-nos no seu universo.

O Skype toca com a sua habitual música. Dana tem uma fotografia sua no que parece ser um campo interminável de girassóis. De repente, a sua figura aparece, a sorrir, no estúdio. O encontro começou. Ela tem uma grande pintura encostada à parede atrás de si e algumas mais pequenas estão penduradas pelo espaço. É de manhã em Brooklyn enquanto que em Lisboa já passou a hora de almoço.

O Covid-19 está ainda no topo da lista de quebra-gelos de 2020, mas hoje surge de uma forma agradável e estimulante.

“Nesta última primavera os pontos de referência normais para o ritmo da vida evaporaram e o tempo ganhou uma estranha personalidade. Parecia que corria de forma irregular. Os dias passavam como se fossem lama, mas os meses passaram num instante”.

Estas são algumas das palavras que Lok escreveu no press release da sua última exposição na Page (Nova Iorque).

A exposição tem por título One Second Per Second e, depois de me mostrar algumas fotografias, fala-me sobre a reificação de conceitos relacionados com o tempo, sobre os quais ela se focou nesta ocasião.

“O que acontece se complexificarmos o tempo em espaços, situações, objectos que têm uma disposição e tom particulares?”

Vejo algumas imagens da instalação e reparo em duas grandes pinturas Casual Wedge (Front) e Casual Wedge (Back) colocadas frente a frente no espaço da galeria.

Olhando para elas, parece que um único momento foi cristalizado num instante particular de tempo e Dana oferece-nos a possibilidade de vermos tanto a parte de trás como a sua frente.

As outras pinturas mais pequenas captam outras reificações e todas representam perspectivas diferentes da mesma situação. É fascinante pesar o tempo através do seu olhar, e é assim que Chronos e Kairos voltam à minha mente. Quem sabe se ainda tivéssemos dois termos diferentes para distinguir os conceitos de tempo, se não teríamos todos uma ideia mais clara da sua importância.

De repente, ao olhar para as imagens que ela me enviou, uma pintura amarela com um gato fofo capta a minha atenção. É diferente de todas as outras, parece-me tão íntima e não fico surpreendida quando Dana me diz que o esboço para esta pintura foi feito no primeiro dia do confinamento nos EUA.

“Pode seguramente dizer-se que esta representa uma experiência pessoal do tempo, e, sim, adoro gatos!”

Começamos a falar sobre animais e de como eles voltam sempre à sua prática. Podiam ser coelhinhos ou borboletas que através da sua familiaridade querem parecer convidativos para chamar a atenção dos espectadores.

“São uma espécie de porta”, diz Dana, “que nos leva a algo mais complexo, por vezes mais sombrio… certamente com um tom diferente”.

Isso faz-me pensar sobre fofura e como, na maior parte das vezes, pode ser usada como um instrumento para chamar a nossa atenção, como a Disney o faz, por exemplo, e que é movido por um interesse puramente comercial no seu merchandising. A forma como Dana usa a ternura é semelhante, mas o seu objectivo é declarado desde o início pelo modo como joga com luzes e sombras, evocando um cenário desconhecido e misterioso. O elemento que ela utiliza, diferente daqueles oriundos de uma fofura “fraudulenta", declaram imediatamente que um coelhinho não nos levará necessariamente a algo que seja simples de lidar.

“Uma das minhas esperanças é que eles possam ser suficientemente abertos e tomados como ferramentas para pensar sobre outras coisas, por exemplo como a linguagem pode ser usada ou que tipo de dinâmica de poder se joga no acto de observar ou no acto de colocar algo em exposição”.

O que ela diz torna-se ainda mais claro quando olhamos para a sua última exposição, Words Without Skin apresentada na Clima, em Milão. Para essa exposição, Dana colocou em foco (literal e metaforicamente) metáforas, procurando aceitar a sua mecânica de modo a mostrar “o que acontece quando conceitos abstractos se ancoram em formas materiais numa escala humana”.

Algumas das pinturas que fez para essa ocasião representam afirmações escritas no meio da tela. Algumas são perfeitamente visíveis enquanto outras estão parcialmente apagadas. A cada uma ela deu uma solidez particular.

Uma vez mais, o seu trabalho fez-me pensar sobre algo tão actual como o uso exagerado de instruções práticas. Costumávamos encontrá-las sobretudo em livros e DVDs, criadas para dar conselhos sobre uma actividade em particular. Hoje em dia têm a forma de posts de Instagram e por isso são vistas em todo o lado. O seu defeito não é serem omnipresentes, mas sim o seu efeito extraordinariamente distractor e o facto de retirarem qualquer tipo de conteúdo daquilo que é suposto “ensinarem”.

Existe sempre um mundo de camadas, significados e possibilidade por trás da superfície da aparência. Tal como sugere desde o início da nossa conversa a pintura enorme (Trapdoor, 2019), encostada a uma parede do seu ateliê.

Uma pequena porção do nosso meio envolvente parece ter acabado de se erguer. Oferece orgulhosamente o seu melhor lado para aquilo que parece ser o centro de um palco. Infelizmente, não o conseguimos ver, mas tenho a certeza de que o público gosta. No entanto, as luzes que invadem o palco e o nosso ponto de vista preferencial permitem-nos vislumbrar o profundo vazio que esta fina fatia da realidade parece ter deixado para trás. Numas escadas sem fim a nossa imaginação desce como os degraus. Apesar do tom, é terrivelmente claro aonde as escadas podem ir dar, mas é nossa a escolha de seguir aquela direcção ou ficar apenas com o conhecimento da sua existência.

A nossa conversa está a chegar ao fim, mas não consigo deixar de dizer a Dana algo um pouco tolo, mas que faz os meus olhos brilhar.

“Sabes que algumas das tuas pinturas lembram-me o Spyro the Dragon da PlayStation 1?”. Ela ri-se. Infelizmente, não conhece o Spyro, por isso demoramos uns poucos minutos para corrigir isto.

Depois diz: “Acho que conscientemente não pensei sobre como é que os videojogos são construídos. Quero dizer, o que é que acontece com aquelas peças que mostram este tipo de deslocamento de imagens… é exactamente a mesma coisa, certo? No caso dos videojogos pega-se numa imagem que tem montes de informações sobre uma superfície e depois extrapola-se a partir dela para criar um objecto tridimensional… não é assim?” E é extraordinariamente interessante que ela consiga ver esta semelhança com os seus trabalhos.

A minha associação foi bem fácil. Para mim, este tipo de videojogos representava uma descoberta contínua feita ao longo de novos mundos e novas personagens (algumas vezes amigáveis, outras não) que eram a única forma de combater e alcançar novas personagens e entrar em novos mundos.

De certo modo, é também isso que eu acho que pode acontecer ao olhar atentamente para as pinturas da Dana, seguindo os seus coelhos fofinhos ou descendo aquelas escadas sombrias.

O Skype terminou. Sinto-me assoberbada pela quantidade de possíveis mundos que os seus trabalhos abrem à frente dos meus olhos, mas por agora acho que vou só confirmar se é possível fazer o download do Spyro da Playstation 1 para o meu Mac.

 

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Caixa-Mistério

A Caixa-Mistério é composta por links, dispostos de forma aleatória e que transportam o leitor para alguns dos assuntos falados durante a visita. A forma como estão apresentados não é apenas uma maneira nostálgica de recordar o suspense mágico que pertencia a estruturas do início da internet, mas oculta também a esperança de suscitar a curiosidade dos leitores um pouco mais do que as clássicas notas de rodapé.

 

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Dana Lok é uma artista que vive e trabalha em Brooklyn, Nova Iorque. Teve exposições individuais na Page (NYC), Nova Iorque; Clima, Milão; Bianca D’Alessandro, Copenhaga; e Chewday’s, Londres. Participou em exposições colectivas no Chateau Shatto, Los Angeles; Halsey McKay, East Hampton, Nova Iorque, Miguel Abreu Gallery, Nova Iorque. Em 2018, recebeu a Bolsa para Artistas Emergentes da Rema Hort Mann Foundation. Lok tem um Mestrado em Belas-Artes da Universidade de Columbia (2015) e uma licenciatura da Carnegie Mellon University (2011). É representada pela galeria Clima .

 

Alberta Romano é historiadora e curadora de arte contemporânea, nascida em 1991 em Pescara. Actualmente é curadora da Kunsthalle Lissabon. Desde 2017, tem trabalhado com a Fundação CRC em Cuneo, coordenando as aquisições para a sua colecção de arte contemporânea. Depois de se formar em História da Arte na La Sapienza em Roma e com um Mestrado em Culturas Visuais e Práticas Curatoriais da Academia de Belas Artes de Brera em Milão, frequentou o programa curatorial CAMPO16 na Fundação Sandretto Re Rebaudengo em Turim. Escreveu para publicações como Artforum, Flash Art, Contemporânea, Kabul Magazine e outras revistas.

 

Tradução do EN por Gonçalo Gama Pinto.

Imagens: Virtual Studio Visit (Capa); Causal Wedge (Back), 2020, óleo s/ tela, 56 x 62"; Parasol, 2020, óleo s/ tela, 56 x 62''; Language Device (All Examples), 2019, óleo s/ tela, 18 x 14”; Trapdoor, 2019, óleo s/ tela, 42 x 48”; Ateliê da artista (2). Todas as imagens cortesia da artista.

 

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