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Entrevista a Diana Policarpo e Chus Martínez

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Ana Salazar Herrera

 

The Soul Expanding Ocean #4: Ciguatera, de Diana Policarpo

Causada pela ingestão de peixe contaminado com certos tipos de microalgas marinhas, a ciguatera é uma doença que, já desde a antiguidade e até aos dias de hoje, aflige navegadores e populações litorais. Entre os sintomas, contam-se náuseas, vómitos, diarreia e alucinações, podendo estes durar dias, semanas ou até anos. Não existe cura, e pode ser fatal. A artista Diana Policarpo viajou para as Ilhas Selvagens — um subarquipélago da Madeira localizado no Atlântico Norte, e um dos lugares com maior percentagem de contaminação por ciguatoxinas em todo o planeta — para levar a cabo uma investigação exaustiva. As suas descobertas e colaborações com cientistas e astrobiólogos neste santuário inóspito materializam-se na sua nova instalação multimédia no Ocean Space, em Veneza.

 

 

 

No quadro de um ciclo expositivo que, durante dois anos, dá voz e presença ao Oceano "enquanto repositório de histórias coloniais no qual as narrativas interligam o passado, o presente e os futuros", co-comissionada pela TBA21—Academy e com curadoria de Chus Martínez, Ciguatera é apresentada na proximidade de lerato laka le a phela le a phela le a phela / my love is alive, is alive, is alive, de Dineo Seshee Bopape, separadas pelo altar duplo da antiga igreja. Ao entrar na instalação, a sensação de que o visitante prontamente desfruta é a de mergulhar numa paisagem que faz referência às Selvagens — uma paisagem imersa em som, em luz e na fragrância de pau santo.

Simulando enormes rochas, as duas esculturas também se revelam invólucros de vários ecrãs que albergam a constelação de sete vídeos intitulados Microcosms I — VII, bem como When the Sea Swallows, The Fourth Door e Toxic Blooms I. Da instalação de dez canais, realizada em colaboração com Odete, procede uma combinação de gravações de campo e histórias das memórias humanas e não humanas contadas por microrganismos. A atenção à biodiversidade natural e o relato de histórias centradas na ciguatera criam uma cartografia de histórias coloniais na qual o storytelling meandra pelos sintomas e pelos factos — por exemplo, o pioneirismo dos irmãos Pizzigani, oriundos de Veneza, na documentação e no mapeamento das Selvagens, ou a forma como a ciguatera fazia os colonizadores sofrer. Uma das vozes, como tal, é a da ilha, que assim fala por si mesma.

O enfoque sobre uma toxicidade que atravessa a totalidade de uma cadeia alimentar torna-se então o ponto de partida para uma importante conversa sobre um caminho possível do sarar.

 

A partir da presença, de estar ali, de aprender um pouco mais sobre a flora e a fauna daquele lugar, o passo seguinte é procurar outras práticas do sarar — a artista fala de uma ligação entre o sarar da terra e o sarar de cada ume de nós. Aqui, é essencial não só romper com os dualismos diferenciadores, como a natureza e a cultura, a ciência e a fé, como também frustar o violento impulso de nomear, possuir e colonizar a vida e a natureza. 

 

No Ocean Space, sentadas e à conversa, Diana e Chus explanam a dramaturgia que desenvolveram para albergar uma peça em que "a câmara está mais próxima da boca que relata do que dos olhos que gravam". Com uma paisagem tão análoga à de Marte que chega a ser campo de treino para astronautas, as Ilhas Selvagens tornam-se uma lente através da qual a artista coloca relevantes questões relacionadas com a ciência, com as suas implicações nos processos coloniais e com uma toxicidade à escala interplanetária.

 

 

Ana Salazar Herrera (AS): Quando é que esta peça começou a ser desenvolvida? Sei que esta foi a primeira vez que trabalharam em conjunto; de que forma abordaram os pontos de partida uma da outra quando iniciaram o vosso diálogo?

 

Chus Martínez (CM): Não me lembro do mês exato.

Diana Policarpo (DP): Julho de 2021.

CM: Mas tu lembras-te. Andava a pensar na Dineo [Seshee Bopape] e no espaço, e é realmente difícil — parece magia. Nunca sei exatamente quem é que vai aparecer até pensar intensamente sobre o assunto. É preciso escolher alguém cujo trabalho te dê a ideia de que vai funcionar bem com o espaço, mas também no conjunto. O que é que acontece quando os artistas não se identificam com as obras umes des outres? Andava a pensar nisso, e de repente lembrei-me do trabalho da Diana. Não consigo exatamente explicar por que razão achei que isto ia funcionar, mas a verdade é que funciona. Correu sempre bem das vezes que segui este género de intuição, uma intuição muito intensa — de pensar e sentir que as obras funcionam em conjunto. Aliás, acaba por ser parte integral daquilo que eu entendo como curadoria. Observa-se muito atentamente os trabalhos dos artistas, e depois há um dia em que passa pela cabeça de uma pessoa juntar duas práticas diferentes. E foi assim que aconteceu. 

 

 

AS: E quando tu recebeste este convite, Diana?

 

DP: Quando recebi este convite, vieram-me duas coisas à cabeça. Primeiro: finalmente, quero imenso trabalhar com a Chus! Respeito-a e admiro-a, e já faz algum tempo que vou acompanhando o trabalho dela. Não tivemos oportunidade de nos conhecermos pessoalmente na altura, quando a Chus me ligou, mas demo-nos muito bem e conversámos sobre o projeto e as ideias-base destas duas peças. E depois, claro, adoro o trabalho da Dineo, pelo que fiquei mesmo muito contente por poder dar início a esta viagem em conjunto. 

 

 

AS: Diana, como é que desenvolveste este interesse pela ciguatera e pelas Selvagens? Queres descrever mais ou menos a investigação que levaste a cabo e como é que mergulhaste neste projeto? Qual é a relação entre este e os teus projetos anteriores?

 

DP: Antes de mais, ter uma comissão que me permitisse trabalhar e pensar com o oceano era muito importante para mim — uma grande oportunidade, porque nunca tinha feito um projeto dedicado a e em colaboração com espécies marinhas e com o oceano, ainda para mais numa localização tão específica como estas ilhas. Porém, já desenvolvi projetos que tratam de histórias relacionadas com lugares muito específicos e com os seus recursos, o seu ecossistema, as suas histórias de fundo, os seus curativos tradicionais, as suas modalidades políticas, etc. Ao longo dos últimos cinco anos, tenho-me concentrado em assuntos muito específicos que implicam uma indagação sobre a saúde, a economia, o capitalismo, o género e relações e permutas inter-espécies. Para mim, a ciguatera era uma constelação temática que decorre da ideia de explorar o psicadélico na natureza e a forma como as alterações climáticas afetam certas partes do globo. Fazer um projeto em Portugal foi um passo bastante importante para mim para examinar um problema efetivo do nosso litoral continental e dos nossos arquipélagos, mas também para conhecer pessoas, fazer amigues e colaborar com gente de diferentes áreas, incluindo o campo científico. Foi esta a minha primeira ideia, e assim me agarrei à temática da ciguatera

 

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Diana Policarpo no estúdio do cenógrafo Rinaldo Rinaldi, trabalho em processo para a exposição Ciguatera no Ocean Space [Chiesa di San Lorenzo, Veneza], Castelfranco Emilia, 2022. Fotografia: Enrico Fiorese. Cortesia TBA21–Academy.

 

 

AS: Nesta obra, conseguimos discernir a presença do tempo profundo, do tempo geológico. Observamos um ecossistema de uma certa antiguidade, pelo que funde o tempo, o futuro, o passado, o presente, configurando um elemento especialmente importante na peça. Vocês veem-no como uma paisagem oceânica que é simultaneamente gravação e repositório destas memórias humanas e não humanas. De que forma é que se identificam com este espaço-tempo geológico, e como é que leem a história, sobretudo a história colonial que se integra nesta paisagem?

 

CM: Hoje em dia, estamos habituadíssimes a ouvir artistas falar desta fusão do tempo. É uma questão muito importante, uma vez que já há muito que a ciência tenta explicitar a física quântica e o tempo quântico; contudo, são assuntos contraintuitivos, pelo que nos é muito difícil imaginar outra coisa para lá do nosso tempo biológico. Graças às experiências que es artistas criam hoje, estamos finalmente a abrir-nos a tempos que não são só os humanos a experienciar. Os diferentes tempos são experienciados de forma diferente por seres não humanos e pela ficção, mas também por outras formas de vida. E este é um ponto muito importante: na ausência desta discussão, não existe possibilidade de preservação, uma vez que esse é uma das principais questões do problema. Acredito que só somos capazes de preservar durante as nossas vidas, mesmo que digamos o contrário. Mesmo que tentemos ser interseccionais e pensar no futuro, os seres humanos são especialmente limitados no que toca à imaginação do tempo. Portanto, imaginá-lo, experienciá-lo — isto é fundamental para não só pensar o passado enquanto passado mas também para lhe conceder atualidade. E também implica um sentido de responsabilidade perante o colonial, perante o que aconteceu; um sentido de atualidade perante os problemas que criámos. Mesmo que não tenhamos sido os principais agentes, não deixamos de ter alguma corresponsabilidade sobre o sucedido — por via do nosso contexto europeu, por via do nosso pensamento de fundo modernista, por via da nossa ânsia de controlar recursos e criar economias em detrimento das vidas des outres. Trata-se de uma questão fundamental à qual, agora, procuramos não responder, porque as respostas são efetivamente desconfortáveis. Trata-se de uma experiência importante, porque quanto mais nos aproximamos daquele passado mais sentimos a dor daquele passado; mais sentimos que certas coisas são impossíveis e não podem repetir-se. Então, a mudança será possível.

DP: Sim, completamente. Também andava a pensar nesta ideia de investigar rochas, ou a forma como também objetificamos a ideia de uma ilha enquanto entidade que está permanentemente sob ocupação, sob invasão, sob exploração, etc. Porque é algo que se encontra no imaginário e na história, não é? Pensamos sempre que isto simplesmente aterrou aqui, mas eu também aterrei algures. Na realidade, trata-se de algo que se forma, que leva imenso tempo a formar-se, que começa como um vulcão debaixo de água e acaba por se tornar algo mais visível. São a erosão e a transformação que estão na base deste processo. E é uma questão de olhar para uma rocha ou para uma ilha como uma totalidade, juntamente com tudo o que a rodeia e a gera. Foi interessante produzir algo de uma ordem escultórica a partir dessa observação do tempo profundo e da geologia; é como se estivéssemos no oceano quando andamos à volta da instalação. Para mim, também foi significativa a experiência do cartografar, bem como a experiência de observar o que ali se passava, quem ali habitava, que género de vida ali existia. O facto de esta vida tão antiga se encontrar preservada naquele lugar foi algo que me impressionou sobremaneira. É preciso passar algum tempo a tentar compreender que tipos de histórias as ilhas contêm. Materialmente, os fósseis que lá se encontram, e por exemplo novos tipos de bactérias que hoje se descobrem conservadas no sal. E também há a questão de ser um território análogo a Marte e, portanto, um território de particular interesse para investigar, para gastar tempo a filmar, a gravar, à espera, para satisfazer a minha vontade de saber mais sobre estas analogias, e sobre estas formas de observar o oceano a partir do espaço, e sobre escalabilidade, e sobre estas coincidências que agora começamos lentamente a desvendar — ainda há muitos factos por descobrir acerca deste lugar. Igualmente, a obsessão de treinar astronautas naquelas cavernas e de recorrer a um laboratório portátil para estudar bactérias e plantas, para preparar as próximas missões a Marte: o que é que podemos levar connosco para o espaço? Mas estamos na verdade a olhar para coisas que vieram do espaço sideral e aterraram no nosso planeta. É esta a permuta vital e é este o estudo das diferentes formas de vida que trazem ao centro do palco não só os seres humanos mas também todas as outras espécies que habitam este lugar. Diria que é uma escolha deliberada não centralizar o storytelling nos seres humanos, já que também precisamos dessa participação coletiva, dessa energia. Não se trata apenas dos danos causados. A Chus falou há pouco de uma coisa muito importante que está relacionada com isso: é mais uma questão de transformar, de sarar, de examinar esta toxicidade, de examinar estes problemas.

 

 

AS: Chus, no conjunto dos projetos de que foste curadora à frente do The Current II, onde é que situas o trabalho da Diana? Já falaste um pouco sobre as ligações com a Dineo, mas gostavas agora de alargar o escopo da conversa?

 

CM: Aquilo de que gosto particularmente na Diana é que ela consegue conjugar a investigação artística com uma certa fisicalidade e plasticidade. Na minha ótica, são poucos es artistas que são capazes disso. As pessoas olham para isto como uma contradição: quando ume artista produz uma peça, ficam com a ideia de que a investigação como que a contorna ou configura uma subtração da obra; mas é muito difícil fazer da investigação a substância da obra. Acho muito importante fazer as coisas desta forma, porque as ideias também são de uma ordem física, de certo modo, ou também partem de algo de uma natureza física; são transportadas para as nossas cabeças, e depois retornam a outra coisa de um carácter físico. Creio que veremos cada vez mais disto ao longo dos próximos dez anos. E é algo que, na verdade, não estamos a ver nesta bienal — como será o futuro desta prática. Acho que a Diana está efetivamente a conseguir tocar no assunto, porque o que ela faz tem tudo que ver com a produção de experiências reais e com a fusão possível de todas estas dimensões, ao invés de separar, ou de fazer peças, ou de fazer subtrações, ou de fazer correlações — antes, efetivamente, pretende misturar e combinar, bem como entender, tudo e qualquer coisa como material para uma prática artística. Nesse sentido, tem sido uma parte muito importante, porque a Taloi Havini começou com uma peça sonora incrível, e depois a Isabel Lewis introduziu a ideia de coreografia e movimento, e a Dineo Seshee Bopape trouxe a ideia do sonho e do espiritual. A Diana verteu tudo isto para a colaboração científica, mas, de seguida, transportou esta colaboração para as rochas, integrando-a numa forma plástica. E isto leva-nos aos anos oitenta, época em que o plástico era de uma importância impressiva: o tátil, o visual, a questão da forma, a composição, a questão das linguagens que se usam numa prática artística. Nesse sentido, acaba por rematar excecionalmente tudo o resto.

 

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Diana Policarpo, The Soul Expanding Ocean #4: Ciguatera, Ocean Space, Veneza, 2022. Fotografia: Matteo De Fin. Commissionado por TBA21–Academy. Co-produzido por TBA21–Academy e Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em colaboração com o Instituto Gulbenkian Ciência.

 

AS: O Ocean Space é uma magnífica igreja que foi recentemente renovada. A minha pergunta é a seguinte: como é que lidaste com a escala e o legado histórico do espaço? Ao experienciar esta instalação, consegue-se perceber que o som foi cuidadosamente elaborado e que a luz foi pensada a fundo. O visitante mergulha totalmente nesta experiência, neste universo que faz referência às Ilhas Selvagens. Como é que concebeste a experiência do visitante?

 

CM: É muito importante para mim que o visitante se consiga relacionar com o espaço. O som é um elemento especialmente importante na produção de uma relação. Costumamos pensar que nos relacionamos através da visão e do toque, mas também é o caso com a dimensão sónica. Trata-se de arquitetar e elaborar o som, de o ter em consciência. Normalmente, as igrejas são criadas para a voz humana — a voz do padre que fala para uma comunidade, um coro que entoa louvores divinos — pelo que é muito importante levar esse design primário do espaço em conta no design total. Foi difícil, e exigiu bastante observação; doutra forma, o espaço ia expulsar-te, porque este espaço não está ali para competir senão com o espaço em si. Criou-se o espaço pelo espaço. Não se trata de um espaço expositivo, pelo que requer alguma ponderação e muitas conversas. A minha maior qualidade será porventura o acompanhamento do artista nesse diálogo, falar sobre e olhar para todos os cenários e especular com todas as possibilidades, para tentarmos antever a experiência do observador e depois, quando se concretiza, percebermos se estamos a fazer as coisas bem. 

 

 

AS: E também temos os incensos de sálvia e pau santo, que por acaso foram adicionados por ambas as artistas, como que telepaticamente.

 

CM: Sim, inacreditável. Foram adicionados pelas duas artistas, que se interessam muito por essas práticas, e acho que foi um acrescento excecional. O olfativo que retorna à função do espaço em si. Fantástico, mas foi algo que aconteceu depois.

DP: Foi muito interessante, a primeira ocasião em que tive acesso a um conjunto de imagens e arquivos deste espaço, porque, visualmente, é muito impactante. É uma igreja com uma história muito intensa, mas interessou-me especialmente a ideia de compor alguma coisa para uma igreja. Nunca tinha tido a oportunidade de trabalhar com esta acústica, por exemplo, mas também era uma questão de fazer algo visual, algo compreendido na escala do espaço — é muito importante colaborar com e não contrariar estes elementos. Este foi um fator especialmente relevante, porque o trabalho site-specific leva muito tempo. Estudar o espaço e trabalhar com vários modelos 3D foi-me particularmente útil para adequar esculturalmente a peça, para sentir que funcionava na escala do espaço. Depois, da primeira vez que estive aqui fisicamente, consegui apreender a energia do espaço. O meu lado do altar duplo está ligado ao lugar onde as mulheres se reuniam para a missa e para a sua vida social, que foi algo que me interessou desde o início. Já que estava a escrever esta ficção científica, que fala destes recolectores e destes mergulhadores, desta sociedade de mulheres que vivem neste planeta aquático, quis muito construir algo do zero e juntar os dois universos. Igualmente, as ideias de espiritualidade, magia e ritual estão muito presentes no meu trabalho. Como é que se trabalha com estas duas coisas sem que elas colidam uma com a outra? Depois, claro, a luminosidade e a acústica da igreja foram muito importantes, porque, para mim, estes dois fatores, com efeito, ativam e animam muitas coisas diferentes numa instalação. O processo de composição, em colaboração com a Odete, foi muito intenso; já tínhamos feito música e arte em conjunto, mas o trabalho que levámos a cabo no estúdio, bem como a parte de vir para aqui esculpi-lo no espaço, de criar uma peça multicanal e trabalhar com o reverb, foi fantástico — e isso foi uma coisa que fiz pela primeira vez. A primeira coisa que se sente quando se entra aqui é a forma como o som viaja, como a construção do circuito nos solicita que o contornemos e tenhamos contacto com os filmes. E também a forma como a luz contribui para a experiência. Será isto Marte? Será isto a ilha? Que horas são aqui? A luz está programada em ciclo para que se perceba uma alteração, embora esta ocorra muito lentamente. A perceção também está envolvida nessa experiência sensorial.

 

 

AS: Gostava de falar sobre a noção de sarar. Falaram de heranças familiares de ervas medicinais, bem como de uma ligação entre o sarar da terra e o sarar de nós própries. Achei bonito; e depois também temos a maneira como a artista recua para deixar a terra falar por si mesma, o que configura uma forma de cuidar desta paisagem. Para tal, é preciso que a artista exista em especial harmonia, visto que não deixa de ser o meio através do qual a terra fala. Querem falar sobre este sarar e sobre o gesto de trazer novas personagens ao palco?

 

CM: Acho-o um elemento fundamental, porque, de forma inconsciente, somos versades na prática da separação. Na base da modernidade tem-se a capacidade de separar o real da linguagem, o julgamento da coisa que se está a julgar. Para conseguirmos agir, tem de haver uma separação entre o humano e o meio no qual o humano age. A pouco e pouco, temos vindo a ultrapassar esta separação no sentido daquilo a que hoje podemos chamar não-binarismo. Contudo, o pensamento binário, o pensamento dialético está dentro de nós — problema e solução, veneno e antiveneno. Sarar é reconciliar; é aceitar que no real se encontra uma coexistência de contrários. Creio que os artistas procurem esta coexistência não só porque querem criar um mundo sem violência, o que é muito importante — uma aspiração e ambição que todos nós devíamos ter — mas também porque o sarar contém a possibilidade de agregar as contradições do real e de tentar viver com elas da forma mais prática. O sarar é uma prática. As situações que se apoiam na prática são importantes para compreender e essenciais para o futuro. Acho que é precisamente por isso que está tão em voga.

DP: Em cada obra minha, procuro sempre deixar presente como podemos abordar práticas anticapitalistas, anti-imperialistas e antirracistas e políticas do cuidar, no quadro de uma abordagem mais-do-que-humana. A ideia é tentar conjugar modalidades do cuidar e do sarar, ou formas de meditação e ritual, em lugares particularmente afetados pela violência, a título de exemplo, ou pela poluição, pela extração ou por substâncias tóxicas. E também podemos pensar sobre as diferentes formas de toxicidade a nível planetário — como o patriarcado. Como podemos descobrir estas diferentes modalidades do sarar e aplicá-las ao que nos foi imposto e que se encastoou na nossa sociedade? Obviamente, o realismo especulativo, o feminismo interseccional e a ficção científica trazem em si estas questões e novas possibilidades de imaginar novos futuros com base neste género de mecanismos e ferramentas, que se tratam não apenas de modos de resistência mas também de formas de considerar estas políticas do cuidar e da não-violência. De certa maneira, há determinadas coisas que me são ancestrais, como a questão de trabalhar com plantas medicinais, por exemplo, e de ter crescido com a vivência de cerimónias de uma vertente espiritual e não puramente religiosa, com práticas que derivam de tradições pagãs e populares, incluindo os curativos, cantos de trabalho e práticas medicinais de comunidades femininas enquanto forma de trabalho comunal. É importante para mim manter tudo isto nos meus diferentes projetos. A abordagem do tema geral da contaminação pode ser uma forma de agir e de criar uma constelação de discussões e questões em torno desta potencialidade do sarar e do cuidar, que configura um esforço comunitário e não a existência alienada e individual que a nossa sociedade e os nossos governos, a nível mundial, esperam que tenhamos. A principal potencialidade da ficção científica, para mim, é a capacidade de articular o discurso da ciência, da terra, do ativismo, do debate, mas também do sonho e da potencialidade de sonhar um futuro que apresente um cenário diferente ou diferentes cenários possíveis. A questão é: como materializar esta escrita experimental, esta filmagem experimental e este género de composição na produção ou construção de mundos? Como é que estamos a olhar para o sarar e para a magia em contraposição com a ciência, que é profundamente mercantilizada e artificial?

Não se trata da natureza contra a artificialidade; pelo contrário, existem diferentes linguagens que articulam todos estes processos.

A ideia de descentralizar o humano nesta narrativa não implica removê-lo dela; antes, é uma questão de conceder visibilidade a outras formas de vida, a outras formas de viver, e de com elas colaborar, ao invés de centralizar o papel do humano nestes problemas ecológicos. Estamos ligades a tudo na Natureza.

 

 

 

The Ocean Space, Veneza

 

 

Diana Policarpo

 

 

Chus Martínez

 

 

 

 

Ana Salazar Herrera [1990] é curadora no Ludwig Forum for International Art, Aachen, escritora e iniciadora da para-instituição Museum for the Displaced. Explora subjetividades nómadas, poli-linguísticas e transculturais, propondo questionamentos inventivos de mapeamentos geopolíticos hegemónicos. De 2016 a 2020, foi Curadora Assistente de Exposições no NTU Centre for Contemporary Art Singapore. Participou no Shanghai Curators Lab [2018], no programa de mentoria Project Anywhere [2020-21], e foi curadora-em-residência [2021-22] no Künstlerhaus Schloss Balmoral, Alemanha. Ana tem um mestrado em Práticas Curatoriais da School of Visual Arts, Nova Iorque, e uma licenciatura em Piano da Escola Superior de Música de Lisboa.

 

Tradução do EN: Diogo Montenegro

 

 

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Diana Policarpo, imagens de viagem às Ilhas Selvagens. Cortesia da artista.

 

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