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Great Moments: Eduardo Batarda nos Anos Setenta

CS066601Com as fardas em farrapos, 1979-80, aguarela sobre papel, 75,5 x 105,5 cm.jpg
Vincenzo Di Marino

 

Great Moments, Eduardo Batarda nos Anos Setenta é a mais recente exposição antológica dedicada à obra de Eduardo Batarda (1943, Coimbra). Tendo lugar na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva em colaboração com a Fundação Carmona e Costa, a exposição abrange a produção do artista durante a década de 1970 e representa um novo capítulo que deveria ajudar a perceber a sua complexa pesquisa, um passo adiante na sua “compreensão”.

Em vez disso, a exposição com curadoria de João Mourão e Luís Silva produz talvez o efeito oposto, distorcendo o sentido e provavelmente até criando uma situação mais complicada. Eu sei, pode parecer paradoxal, Great Moments é uma retrospectiva focada em peças produzidas num breve período de tempo e deveria, por isso, dissipar todas as dúvidas, revelar todos os sentidos, mas não é esse o caso…

A abordagem dos visitantes à exposição, especialmente daqueles que não estão familiarizados com a obra de Eduardo Batarda, está perfeitamente concebida de modo a criar um efeito de suspense. O público, seguindo o caminho que conduz ao segundo andar da fundação, sabe que não está num museu clássico: pequenas salas de tectos baixos, tudo sugerindo uma pequena exposição com alguns trabalhos emblemáticos, provavelmente uma “pérola”, mas certamente não uma exposição antológica como aquelas que habitualmente esperamos.

A entrada de Great Moments confirma sem dúvida esta primeira hipótese, com poucas telas bem distantes umas das outras, realizadas no início dos anos '70 (em 70/72, para ser específico). Estes trabalhos ocultam de modo perfeito aquilo que o visitante encontrará nas salas seguintes, obras que, do outro lado, nos aguardam para nos tirarem o fôlego, como um caçador que prepara o ataque.

O que capta a atenção nesta primeira sala são aqueles trabalhos mais “abstractos” que parecem tiras de banda desenhada vazias, marcadas por alguns arranhões. Fazem lembrar dobras num tecido através das quais nada se vislumbra, escondendo o que está por detrás. Por esta altura chegámos a uma encruzilhada e não interessa qual a direcção que tomemos, uma vez que não existe um caminho pré-definido, nenhuma fuga. Caímos agora na armadilha do caçador.

O que nos espera nas salas seguintes é um ataque, através de uma série de imagens meticulosas e muitíssimo detalhadas, cujas formas e cores vibrantes transbordam até à moldura.

Num primeiro olhar, conseguimos talvez reconhecer apenas alguns dos elementos do imaginário visual criados por Batarda: vemos partes de corpos (muitos narizes representados de todas as maneiras possíveis), personagens históricos/artísticos, mapas geográficos, cenas sexuais, quantidades abundantes de texto, animais, vegetais, caveiras.

Uma vez mais há uma armadilha que nos espera. O caos gerado por aquelas imagens parece encontrar uma “explicação” apenas num estado alucinatório. Estas “banda desenhadas” recusaram qualquer narrativa linear típica e composições claras, chegando ao estado da ausência de sentido. Todos os elementos representados não têm uma relação lógica entre si. Embora, como acontece nestas situações problemáticas, demorarmo-nos e abordarmos fisicamente o trabalho possa ajudar a ter uma visão mais clara. Este envolvimento pode ser em parte sugerido pelos espaços do próprio museu.

Na verdade, tanto a escala das salas como a dos trabalhos parece ter sido especificamente concebida para convidar o visitante a aproximar-se, a conhecer os detalhes das obras. O convite é também claramente expresso pelo artista em No chão que nem uma seta, de 1975, numa nota explicativa escrita dentro da obra em que lemos: Isto é uma pintura. E uma pintura de ver ao perto, é por isso que aqui estão as pequenas. Outras vezes, pode dar-se o caso de sermos simplesmente insultados enquanto lemos as palavras nas obras, como acontece com “Testa di cazzo” (o que se pode traduzir literalmente do italiano por “cabeça de pila”. Não têm que agradecer).

Várias linhas de orientação surgem desta análise aprofundada, também sugeridas pelos próprios títulos dos trabalhos. Estes Great Moments criados por Eduardo Batarda revelam um fascínio subjacente pelo absurdo organizado através de imagens perturbadoras e obscenas, com claras referências pornográficas e, por vezes, perversas. Estas cenas, como aquelas representadas em The Hidden Chicken, de 1972, ou Double Act, de 1973, são deliberadamente concebidas para atingir a moral e o “bom gosto” burgueses. Personagens como Otto Dix em Nova Realidade (inspiração germânica) ou: Recuerdo de Otto Dix, de 1975, são, por outro lado, claramente representadas de um modo caricatural, vagamente grotesco, denotando a afiliação pelas margens da escala social.

Uma outra linha que podemos seguir nestas aguarelas é a atitude irónica que liga toda a produção de Batarda na década de 1970. Tal como os cartoons satíricos, obras como Great Moments in Self-Expression (Ecole Bolognaise), de 1973 — que dá título à exposição — e Salade aux artistes-peintres, de 1972, pretendem ser uma paródia pública de expressões artísticas e da cultura geral da época, e não apenas do contexto português. Em conformidade com os acontecimentos que ocorriam no mundo durante os mesmos anos, começando pelos movimentos de dissidência na América no final da década de 1960, estes trabalhos de Eduardo Batarda revelam uma questão aberta aos modelos políticos, sociais e culturais bem como a todas as formas constituídas de poder. No entanto, esta atitude não parece ter como objectivo definir o palco para novas estruturas, mas assume-se antes como uma forma de revolta sem qualquer lógica programada. É difícil não ver estes trabalhos como uma primeira expressão de uma alma punk.

O caminho que a banda desenhada italiana tomou por volta da mesma época (finais da década de '70 / início de '80) surge-me naturalmente à memória enquanto paralelo. O que me ocorre imediatamente são as revistas Cannibale e depois a Frigidaire que reuniam todas as experimentações técnicas e narrativas levadas a cabo pelos grandes autores italianos de banda-desenhada daqueles anos. Olhando para os trabalhos de Batarda, torna-se evidente a semelhança com Andrea Pazienza e Tanino Liberatore, especialmente se prestarmos atenção às suas mais emblemáticas personagens, respectivamente Ranxerox[1] e Zanardi[2]. A forma como criavam banda desenhada era perturbadora, “sacrílega”, repleta de violência gráfica e uma boa quantidade de pornografia. São a expressão perfeita de uma contracultura deliberadamente transgressora, que evidencia a exasperação de uma geração revoltada e destrutiva.

À semelhança de Great Moments de Batarda, estas banda desenhadas são fragmentadas e incrivelmente detalhadas. Não seguem nenhuma tendência em particular, pelo contrário misturam-nas todas. Rejeitando o sentido objectivo, a realidade que emerge é extremamente desconexa, organizada em muitos níveis em que se torna impossível satisfazer aquele desejo humano de total compreensão.

A atitude contemporânea das obras de Eduardo Batarda surge aqui precisamente neste desejo de manifestar todos os sentidos, do primeiro ao último, sem que nada fique esquecido. O resultado é este imaginário visual esquizofrénico, que não deverá ser nada mais do que a perspectiva de Batarda sobre a realidade. Tentar olhar com a nossa lente contemporânea, racional e objectiva torna-se fútil. E procurar aquela cobiçada normalidade dentro destes “momentos” seria simplesmente absurdo.

Por estes motivos, o trabalho dos dois curadores, João Mourão e Luís Silva, foi absolutamente notável. A desierarquização das suas vozes foi um gesto deliberado, (como podemos ler na conversa com o artista, publicada no catálogo), recuando um pouco e deixando aberta a porta às múltiplas narrativas impostas pelas obras de Batarda. Palavras como “sentido” e “razão” parecem desmoronar-se perante as obras nesta exposição, bem como a fé depositada na objectividade científica a que tanto nos habituámos nos últimos tempos.

Quando penso sobre isso, a complexa realidade retratada por Batarda convence-me de que ele é o homem sonhado e sobre o qual canta Ivan Graziani. Ele seria aquele que vê “o fogo na colina”, enquanto todos os outros nada mais vêem do que “os faróis dos tractores que debulham nos campos.”[3]

 

Eduardo Batarda

Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva 

Fundação Carmona e Costa

Enzo Di Marino [Vincenzo Di Marino] é um curador Italiano, sediado em Nápoles. Em 2018, co-fundou o projecto curatorial Bite The Saurus. Colaborou com a Fundação Prada, Milão; Museu Madre, Nápoles, entre outras. Em 2019-2020 foi curador assistente no MAAT.

 

Tradução do inglês por Gonçalo Gama Pinto.

 



 


Notas:

[1] Tanino Liberatore, Ranx. Re/incarnazioni, 2018, Comicon Edizioni, Naples.

[2] Andrea Pazienza, Tutto Zanardi, 2018, Cocoino Press, Rome.

[3] Ivan Graziani, Fuoco sulla collina, 1979, album: Agnese dolce Agnese.


 

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