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It's a date: Alice dos Reis

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Alberta Romano

 

It’s a date é uma nova rubrica da Contemporânea da autoria de Alberta Romano, dedicada a visitas a ateliês de artistas de Lisboa e de todo o mundo, tanto físicas como online.

 

Episódio 4: Alice dos Reis

 

Pescara > Lisboa, 28 de Janeiro de 2021

 

Ilha Espacial

“Era uma vez uma criança chamada Enola. Enola cresceu numa pequena ilha no meio do oceano e o seu passatempo favorito era olhar para o céu enquanto sonhava que se tornava astronauta. Para sorte sua, a família trabalhava há gerações com o “céu”. Os seus avós tinham trabalhado no aeroporto da ilha e os pais dirigiam a base de lançamento espacial da cidade. Foi fácil para Enola receber uma boa educação, o que lhe permitiu tornar-se rapidamente num dos mais ambiciosos comandantes espaciais entre os seus pares. Foi cedo que partiu para sua primeira viagem ao espaço. Voou sobre o oceano e a Terra, navegando entre planetas e galáxias. Enola estava extraordinariamente feliz, rodeado, finalmente, por aquele espaço exterior que observava enquanto crescia.

Na sua viagem, plantou uma bandeira em todos os lugares que visitou. Construiu também várias estações de controlo, cada uma equipada com uma máquina de venda para comida, combustível e mapas do espaço. Quando se sentia nostálgico, deixava alguns mapas pequenos da sua ilha juntamente com os das galáxias, para que qualquer astronauta que quisesse descobrir um novo lugar soubesse aonde ir.

Passados cinco longos anos de viagem, Enola decidiu regressar a casa e finalmente abraçar os seus pais outra vez. A viagem foi longa, mas não demorou até perceber que as coisas estavam muito diferentes daquilo que se lembrava. Percebeu logo que nada mais era como dantes e que o tempo no espaço tinha passado muito mais rapidamente do que na Terra. A sua adorada ilha tinha desaparecido pelo menos 50 anos antes do seu regresso, juntamente com todos os seus habitantes. Enola descobriu que, muitos anos antes, quando todos os jovens da ilha foram para o espaço, a restante população mais velha foi forçada a mudar-se para ilhas mais povoadas.

Subitamente, Enola percebeu que talvez não pudesse mais rever os seus pais e que todos os mapas que tinha deixado no espaço seriam inúteis. E sabia também que nunca mais poderia voltar a pisar a sua ilha adorada. Depois de alguns anos de total abandono a ilha começou gradualmente a desaparecer por baixo do mar e, cercada por peixes, alforrecas e algas, sentiu por fim que nunca mais voltaria a ser esquecida pelos seus habitantes." 

“Alberta, escreve-me uma história, por favor.”

 

Isto foi uma das últimas coisas que a Alice dos Reis me disse antes da nossa conversa por Skype chegar ao fim. Literalmente, não consegui resistir ao seu convite antes de começar este novo episódio de “It’s a date”.

Aqui estamos novamente. Quase um ano depois da primeira, Lisboa depara-se com uma segunda vaga de Covid-19. Desta vez não vou esperar até que as coisas melhorem, por isso apanhei o primeiro voo para a minha cidade. Pode parecer ridículo, mas quanto mais esta pandemia dura mais fácil parece ser encontrar o lado positivo desta situação. Acho que deve ser uma forma de lidar com tudo isto. Sem dúvida, um aspecto positivo que a Covid me trouxe foi uma consciência da importância da minha casa no processo de me conhecer melhor. Já tinha tido uma amostra dela no passado, mas nunca tinha percebido que, para me reencontrar com a minhas as paixões e inclinações mais naturais, teria de as redescobrir aqui mesmo. Claro que agora que percebi isto, faz todo o sentido.

Seja como for, eu devia ter feito esta visita à Alice em pessoa, mas o Skype parece ser a melhor banda sonora para esta rubrica, por isso aqui estamos.

Toca o Skype.

“Olá, querida!”

“Olá linda”

A actual situação pandémica deixa-nos sem palavras durante poucos minutos, por isso passamos logo para um tema mais confortável: comida. Ligeiramente envergonhada, a Alice confessa que tinha acabado de fazer uma pasta com queijo vegan (isto é o que se passa com italianos: as pessoas têm sempre medo de nos confessar os seus hábitos ou experiências culinárias. Acho que é só porque adoramos qualquer oportunidade de nos fazermos chocados… por isso, continuem).

Em pouco tempo começamos a falar sobre o seu vídeo mais recente, projecto que a levou aos Açores. Para quem não conhece, o arquipélago dos Açores é composto por nove ilhas vulcânicas localizadas a cerca de 1.400 km a oeste de Lisboa e de Portugal Continental, 1.500 km a noroeste de Marrocos, e 1.930 km a sudeste da Terra Nova, Canadá. Os Açores não estão nada próximos de Portugal, literalmente flutuam no meio do oceano. A propósito, a Alice foi lá para filmar em Novembro de 2020 mas o seu projecto é o resultado de um processo muito longo, por isso decidi perguntar-lhe mais sobre a ideia e como é que ela se concretizou.

 

Alice: Em 2018 estava a terminar o meu mestrado em Amesterdão e acho que foi nessa altura que comecei a aprender mais sobre este projecto de construção de uma base de lançamento espacial em Portugal que, para ser precisa, seria a primeira base de lançamento espacial europeia. A ideia era construir um lançador low-cost para pequenos foguetões e satélites que teriam apenas fins comerciais… como companhias de telecomunicação, por exemplo.

 

Alberta: Como é que descobriste isso?

 

Alice: A primeira vez que ouvi falar da base de lançamento espacial não foi pelos media portugueses, porque não se tem falado de todo sobre isso na imprensa nacional, mas sim numa conversa do Rory Rowan no e-flux que se chamava Beyond Colonial Futurism [Para Além do Futurismo Colonial]. Os media portugueses não falavam praticamente sobre o assunto, mas a ideia já era bem específica. Eles sabiam que a base ia ser construída na ilha de Santa Maria no arquipélago dos Açores. E foi basicamente assim que acabei por lá ir parar…

 

Alberta: Ah, uau… e há alguma razão em especial para terem escolhido essa ilha?

 

Alice: Santa Maria tem uma história extraordinariamente interessante.

Nos anos 1940, os EUA construíram um aeroporto enorme na ilha. Tinha sido concebido para garantir um posto para o reabastecimento de todos os aviões que viessem dos EUA ou do Canadá antes de chegarem à Europa. Nos anos 1970, quando os aviões de alto alcance começaram a conseguir fazer toda a travessia sem paragens, o aeroporto tornou-se desnecessário. Actualmente é utilizado sobretudo para o tráfego interno português. O que é interessante é que os habitantes ainda estão muito ligados à ideia do aeroporto e de como, por sua causa, a economia de antigamente era próspera, com muitas pessoas a visitar a ilha, muitos empregos e bem-estar.

É por isso que algumas pessoas vêem na construção da base espacial uma nova oportunidade para o seu futuro. Está em curso uma discussão muito viva sobre o assunto, metade da população acha mesmo que vai ser uma oportunidade incrível para a ilha. Na verdade, diziam que o facto de eu lá ir fazer um filme já era uma primeira prova da sua teoria.

 

Alberta: Ah, uau, claro! Isso é incrível.

 

Alice: Sim, mas a outra metade da população acha que vai ser problemático para a ecologia da ilha. Santa Maria é uma ilha singular do ponto de vista geológico e paleontológico e a base espacial vai ser construída numa área protegida.

 

Alberta: Já há muita coisa em jogo.

 

Alice: Sim, sem dúvida.

 

Continuamos a falar sobre esta ideia de conquista do espaço como se fosse algo livre, pronto a ser tomado por nós, basicamente o que Elon Musk toma por garantido em todos os seus discursos. A Alice também me explicou que Rory Rowan (o tipo que falou no canal do e-flux) disse que, quando participou numa das apresentações da base de lançamento espacial portuguesa, ouviu pessoas a recordar o poder das antigas campanhas coloniais portuguesas para ganhar o apoio de investidores. É impressionante notar que esta mentalidade de opressão continua a ser aplicada a novos projectos.

Esta pesquisa resultará sobretudo numa curta-metragem que a Alice mostrará durante o festival de artes Walk&Talk no Verão, uma vez que foi uma das vencedoras da Open Call do Programa de Residências para 2019/2020.

A sua ideia é fazer um filme que se situe algures entre a ficção especulativa e o documentário experimental, passado num futuro próximo em que a base espacial já tenha sido construída. Seria a história de duas pessoas que se vêem como família e que têm diferentes posições no que diz respeito à construção da base. A Alice confessou-me que também quer dar ao filme uma espécie de “onda teen” e agora fico ainda mais excitada para vê-lo, especialmente porque durante esta conversa ela falou na Lizzie McGuire e na Hannah Montana. Duas vezes.

Vendo o seu pequeno vídeo Stan Rehearsal - Ensaio para Plataforma de Lançamento (2020), sobre um tópico semelhante e gravado durante a primeira vaga da pandemia, tenho a certeza de que este segundo filme sobre a base espacial será épico. Stan Rehearsal é um pequeno filme de ficção especulativa passado no dia em que o primeiro foguetão é lançado da base. Usando o lançamento como pano de fundo, um grupo de jovens teenagers filmam-se, uns aos outros, enquanto dançam ao som de pop coreano.

 

Alice: Uma das coisas divertidas sobre este vídeo é que, não podendo viajar para o filmar, tive de fazê-lo a partir de Lisboa… quero dizer, a equipa estava nos Açores e criou um substituto para mim, eu estava dentro de um telefone num suporte e eles andavam às voltas com o suporte para coordenar tudo e falar com os miúdos. Foi tão divertido!

 

Alberta: Isso já podia ser o início de um outro filme de ficção-científica.

 

O que é muitas vezes recorrente nos trabalhos da Alice é esta ambiguidade, livre de qualquer julgamento moral e que permite ao espectador tomar qualquer uma das posições de forma muito natural. Estou certa de que isto requer algum tipo de talento, porque não dar nada por garantido é, sem dúvida, uma forma eficaz de estimular o pensamento crítico.

Enquanto me concentro nesta ideia, percebo que estou a pensar em Undercurrent (2019), um pequeno filme de ficção científica que a Alice fez recentemente e que faz parte, actualmente, do programa da 5ª Bienal de Design de Istambul. O filme é sobre uma bióloga marinha que está a mapear uma das áreas mais profundas do Oceano Atlântico Norte, cujo “projecto depende da utilização polémica de biotecnologia em desenvolvimento, e que trabalha directamente com uma espécie de krill que vive a baixa profundidade. Ao longo de meses de observação e comunicação, a bióloga desenvolve uma relação de amizade e parentesco com um cardume de krills, enquanto observa os seus movimentos através de nano-câmaras incorporadas nos seus corpos e eles se deslocam lentamente por zonas mais profundas do oceano. À medida que o fim do seu projecto se aproxima, a bióloga depara-se com questões éticas sobre a sua relação com o não-humano e os sistemas que medeiam o seu contacto com humanos.

Fica agora claro que a biotecnologia, a transformação do nosso meio envolvente, e uma boa dose de empatia humana representam alguns dos tópicos mais recorrentes na obra da Alice. A nossa conversa chega ao fim, mas ainda quero perguntar-lhe mais sobre o projecto que apresentou na galeria Lehmann + Silva, no Porto, chamado Malva field, submerged (2020) que não consegui visitar.

 

Alice: Sim, toda a exposição anda à volta de uma epidemia de E.coli…

 

Alberta: — cara de espanto —

 

Alice: Sim, fi-lo antes do Covid… eu sei… mas é baseado numa história real, numa história pessoal. O ano passado o meu corpo combateu a E.coli e eu estava constantemente a tomar antibióticos. Nada parecia capaz de resolver a coisa e, passado algum tempo, descobri que a E.coli está presente em muitas outras coisas e senti-me, de certo modo, conectada… Percebi, por isso, que talvez tivesse de aprender a viver com esta bactéria em vez de lutar contra ela. Pensei então na minha avó que também tinha apanhado a bactéria e lembro-me de ela uma vez sugerir que eu tomasse um banho com extracto de malva.

Foi assim que cheguei à história na qual se baseia a exposição na Lehmann + Silva. Nesta história, um surto de E.coli no oceano está a fazer com que muitas pessoas adoeçam. Então, reúne-se um grupo de mulheres biotecnólogas para encontrar uma solução que controle este surto e, depois de algumas experiências, decidem fazer plantações de flores de malva de bioengenharia no fundo do oceano, e em breve o ecossistema encontra o seu equilíbrio e a epidemia desaparece.

 

Podia continuar a ouvir a Alice a falar dos seus trabalhos para sempre. Parece que me estão a contar um conto de fadas. Além disso, escutar histórias que têm como ponto de partida experiências pessoais faz-me pensar noutra questão que gostava de abordar aqui.

Lembro-me bem de que, quando frequentei a Academia de Belas Artes, alguns professores definiam a maior parte dos trabalhos produzidos por mulheres como “demasiado diarísticos”, como se o facto de desenvolverem um tópico que tinha origem em experiências pessoais fosse o suficiente para os julgar negativamente. Estas são lições que, se absorvidas durante uma fase de aprendizagem, nos podem convencer, e durante algum tempo o “demasiado diarístico” era para mim um factor de discriminação enquanto avaliava obras de arte, não tenho problema em admiti-lo agora.

Levei algum tempo a perceber que não havia nada de absolutamente errado com isso. Na verdade, são mais os aspectos positivos nessa abordagem do que negativos. Ser levado para uma nova pesquisa por causa de uma experiência pessoal dá-nos uma análise muito mais exaustiva de um tema escolhido, não só porque o conhecemos de perto mas especialmente porque podemos relacionar-nos facilmente com ele e é, assim, mais eficaz junto de um hipotético público.

Agora não vou dizer que isto é um claro exemplo de masculinidade tóxica na nossa sociedade, mas foi seguramente uma razão para facilmente pôr de lado uma boa parte das obras de arte (na sua maioria criadas por mulheres), apenas porque foram acusadas de serem demasiado pessoais, e por isso com pouco interesse para outros. No fim, contudo, elas acabam por ser exactamente o oposto.

Seja como for, agora o tempo está mesmo a chegar ao fim e é aí, enquanto falamos de livros de ficção científica, que a Alice me pede: “Alberta, escreve-me uma história, por favor.”

 

1_See You Later Space Island 1
2_See You Later Space Island 2
3_Stan Rehearsal
4_Undercurrent
5_Malva Field, Submerged - Foto de Dinis Santos

 

Caixa-Mistério

A Caixa-Mistério é composta por links, dispostos de forma aleatória no fundo da página, que o levarão a coisas sobre as quais conversámos durante a visita. A forma como são apresentados não é apenas uma maneira nostálgica de recordar o suspense mágico que pertencia a estruturas do início da internet, mas oculta também a esperança de suscitar a curiosidade dos leitores um pouco mais do que as clássicas notas de rodapé.

 

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Alice dos Reis é uma artista que vive e trabalha entre Lisboa e Amesterdão. Tem um Mestrado em Belas Artes pelo Sandberg Institut em Amesterdão e expôs, realizou leituras e publicou regularmente em galerias, instituições e festivais de cinema incluindo o EYE Film Museum (AmsterdÃO), 5ª Bienal de Design de Istambul, Display (Praga), Museu de Arte Contemporânea de Serralves (Porto), Seventh Gallery (Melbourne), Galerie InSitu (Paris) e Gallery Lehmann + Silva (Porto). Os seus filmes foram exibidos em plataformas como Vdrome e o Museum of the Moving Image (NY). Dirige, em conjunto com Pedro Neves Marques, a editora literária de poesia Pântano. Em 2020 recebeu a bolsa Mondriaan para Artistas Emergentes.

 

Alberta Romano é historiadora de arte e curadora de arte contemporânea, nascida em 1991 em Pescara. Actualmente é curadora da Kunsthalle Lissabon. Desde 2017, tem trabalhado com a Fundação CRC em Cuneo, coordenando as aquisições para a sua colecção de arte contemporânea.

Depois de se formar em História de Arte na La Sapienza em Roma e com um Mestrado em Culturas Visuais e Práticas Curatoriais da Academia de Belas Artes de Brera em Milão, frequentou o programa curatorial CAMPO16 na Fundação Sandretto Re Rebaudengo em Turim. Escreveu para publicações como Artforum, Flash Art, Contemporânea, Kabul Magazine e outras revistas.

 

Tradução do EN por Gonçalo Gama Pinto.


 

Alice dos Reis, imagens 1 e 2: See You Later Space Island; imagem 3: Stan Rehearsal;  imagem 4: Undercurrent; imagem 5: Malva Field, Submerged. Vista da exposição na Galeria Lehmann Silva, Porto. Foto de Dinis Santos. Cortesia da artista.

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