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Odete: Artifício

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Maria Kruglyak

Artifício de Odete leva o público numa viagem de autodescoberta através da nossa relação com o artificial. No que parece ser apenas o início de um discurso potencialmente revolucionário, Odete une a magia tecnológica contemporânea da Inteligência Artificial (IA) à magia proto-tecnológica medieval da alquimia através de um discurso queer sobre a beleza. Com a IA como força motriz e ferramenta principal da exposição, a artista cria um arco narrativo que nos guia em direção a uma miríade de diferentes leituras da exposição, mantendo o seu objetivo intencionalmente obscurecido de modo a ilustrar as limitações da clareza em questões do artificial relacionadas com beleza e aparência, identidades queer e perceção, construção da história e IA.

Com curadoria de Marta Espiridião, a exposição dividida por dois andares abrange a luz e a escuridão: a parte luminosa que abre a exposição funciona como contextualização, com uma biblioteca de pesquisa da coleção pessoal de Odete. Apresenta livros, zines e PDFs que abrangem tópicos como magia, história trans e queer, plantas, arte e teatro, e é acompanhada por dois computadores, uma impressora e um scanner. No andar de cima, encontra-se a sala escura que se assemelha ao laboratório de um alquimista – aparentemente, as ruínas de um ateliê-casa de "uma sociedade secreta de transexuais, hermafroditas e criaturas andróginas"[1] do século XIX.[2] Ao público são dadas lanternas para explorar uma tapeçaria com imagens e símbolos impressos e bordados, criados com o gerador de imagens de Inteligência Artificial DALL-E.

Ao fundo da sala, sobre uma mesa pouco iluminada, encontramos um enorme e antigo herbário de plantas, histórias e desenhos, também criado com o DALL-E; auscultadores a partir dos quais podemos ouvir Odete a ler uma história sobre uma mulher trans chamada Eleanor Rykener e um demónio que está loucamente apaixonado por ela; e folhas com impressões de fotossíntese de retratos espectrais de pessoas trans do passado gerados por IA, talvez membros dessa sociedade secreta. À medida que descobrimos estas histórias, a cada círculo de luz ou a cada espécime do herbário, uma narrativa central começa a ganhar forma: a história de Eleanor, que parece ser um membro da sociedade secreta, e o demónio. O demónio dá a Eleanor o poder de fazer a transição para mulher, mas logo depois ela parece já não precisar nem querer a sua atenção, o que terá consequências presumivelmente graves para ela. Se desfizermos os nós das narrativas, encontramos inícios de outras histórias entrelaçadas, incluindo a de um alquimista em busca da beleza artificial e da transição para o feminino com recurso a remédios naturais. O alquimista, ao procurar a artificialidade, procura-a no âmbito do natural, quebrando assim a nossa expectativa da oposição entre os dois. De certo modo, a artista é também uma alquimista ao solicitar ao DALL-E que gere imagens do sonho original do alquimista, nomeadamente plantas imaginadas pela IA para embelezamento: plantas para fazer crescer seios, plantas para ter pestanas mais longas, plantas para ter lábios mais cheios ou vermelhos, plantas para ter menos pelos.

A Inteligência Artificial é o que permite à artista entrar no espaço da ficção através de um conjunto de dados do nosso tempo, uma espécie de universalidade onde elementos de diversos lugares são combinados de tal forma que o seu contexto original nos escapa. Espelhando essa erosão do contexto, Odete criou Artifício para ter um excesso de imagens e simbolismo obscuros que são impossíveis de desvendar completamente. Vista desta forma, a IA funciona como o caldeirão de uma bruxa: podemos ter uma ideia do que entra nele: o pedido, o conjunto de dado. Depois a magia acontece; e, por fim, algo inesperado surge, ou seja, não é o que imaginaríamos quando inicialmente misturámos aqueles ingredientes. A obscuridade da IA, a sua combinação de vários elementos sem referência retirados do seu contexto[3], é a obscuridade do caldeirão. Em Artifício, torna-se claro que isto é algo com o qual temos de lidar e aprender a ver de uma forma não tão linear, como a IA parece ser quando escreve frases completas e personalizadas em resposta a solicitações, mas antes como algo não linear, obscuro e incompleto.

Na verdade, símbolos obscuros e narrativas não lineares estão no cerne de Artifício, uma vez que habilmente Odete oferece ao público pistas em vez de respostas claras, permitindo-nos criar o nosso próprio significado a partir das imagens. A narração obscura da narrativa central e a posição auto-arqueológica da audiência ecoa, em certa medida, um modo queer através do qual podemos encontrar-nos tendo de reescrever as nossas próprias histórias quando exploramos a nossa sexualidade e género – andando no escuro às apalpadelas, à procura de sentidos em símbolos e respostas, por vezes claras e por vezes obscuras até temporalidades futuras. Ao mesmo tempo, esta escavação remete para as primeiras experiências com arte e tecnologia dos anos 1950 [4], em que os novos media eram vistos como criadores de novas possibilidades de aquisição de conhecimento pela justaposição acelerada de imagens, texto e símbolos que forçavam a nossa psique a criar significados autónomos, imprevisíveis até mesmo para os artistas por trás das máquinas. Combinando os dois, conceptualmente a exposição dá continuidade à exploração de Donna J. Haraway em A Cyborg Manifesto, do ciborgue enquanto figura queer. Algures entre o humano e a máquina, entre o artificial e o natural, o ciborgue é uma espécie trans, cuja aparência é alcançada com a ajuda da artificialidade. Talvez seja o ciborgue que, ao combinar esses elementos díspares, consegue mostrar-nos como nos sentirmos confortáveis no desconforto do que parece ser claro, mas que é, na realidade, uma combinação de uma panóplia de narrativas, símbolos e significados.

Noutra zona do espaço expositivo do andar de cima está um vídeo de Odete em que a artista fala sobre o processo conceptual na criação da exposição. "Hoje, gostaria de vos falar sobre beleza", começa a artista. No vídeo, Odete aparece como a personificação da beleza, com uma estética irrepreensível: vestido cor-de-rosa claro, maquilhagem suave e o longo cabelo dourado ondulado solto, está sentada em frente a uma tapeçaria de pintura floral tradicional do Alentejo, no que parece ser o seu quarto. No vídeo, Odete liga a beleza à exposição, enquadrando-a como a alquimia dos tempos de hoje, uma vez que a maquilhagem, as operações cosméticas e as terapias hormonais são todas elas miragens da beleza e do género que são particularmente notáveis nas tecnologias de transição, ecoando o caráter andrógino de muitas tradições folclóricas de magia. A alquimia do passado também estava interessada naquilo que vai para além do género através do conceito de Rebis, do qual Odete fala no vídeo. “No fundo, tratava-se da ideia de que a perfeição era literalmente um hermafroditismo alquímico: uma união do sol e da lua, do masculino e do feminino, uma reconciliação entre o espírito e a matéria, uma transcendência de todos os binarismos”.

Equilibrando cuidadosamente tecnologia, discursos queer e feministas, ao postular a beleza, o supostamente não teórico e não político, Odete questiona de forma implícita o significado da beleza a partir de perspectivas feministas e trans. "É interessante pensar que esses são também dois polos que permaneceram essenciais na construção de identidades de género hegemónicas ao longo de séculos: homem (guerra) e mulher (ornamentos)", diz a artista na instalação vídeo. A beleza é assim traduzida para o feminino, mas também para aquilo que aparentemente não tem utilidade. Para além da vida eterna e da beleza, os alquimistas do passado eram também obcecados com o ouro, o material simultaneamente mais inútil e útil, ou seja, aquele que era feminino e masculino, se seguirmos esta divisão de género que Odete utiliza na sua argumentação. O ouro é inútil enquanto metal, uma vez que é um dos metais mais dúcteis, o que significa que é impossível cortar algo com ouro ou caçar com uma arma de ouro. No entanto, como Odete diz, "O ouro sempre me pareceu o metal mais valioso e, portanto, o mais inútil. Algo valioso não deveria ser desperdiçado assim, certo? É útil enquanto moeda, como significante de capital". Nesse sentido, o ouro, assim como os outros objetivos da alquimia, é um símbolo feminino-masculino.

O alquimista pode ter como objetivo criar artificialmente ouro, mas apenas para o derradeiro objetivo de Rebis, ou seja, o hermafroditismo alquímico que ultrapassa os binarismos. Isso é ecoado nas figuras de dois géneros artificialmente criadas pela IA e, portanto, artificialmente sonhadas, com os seus poderes mágicos implícitos, animais queer e símbolos de um passado fictício que compõem a tapeçaria pendurada na sala. E se compartilhássemos esse propósito maior de Rebis, procurando uma realidade inerentemente ciborgue e, portanto, inerentemente queer e trans? Por mais desconfortáveis que nos possamos sentir com a alquimia de hoje, o caldeirão negro da tecnologia artificial, poderá ser esse o caminho a seguir para ultrapassarmos dicotomias – dicotomias de género, mas também de outras coisas como guerra-beleza, útil-inútil, e assim por diante? E qual o papel do nosso medo da IA e de tudo o que é artificial na nossa compreensão do que é ser-se queer? Exposição desconfortável e obscura, Artifício não nos dá respostas claras a essas perguntas. Em vez disso, dá-nos as primeiras ferramentas de que precisamos para embarcar nessa descoberta.

 

 

ODETE

 

Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC

 

 

Maria Kruglyak é investigadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022. Atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução do EN por Gonçalo Gama Pinto.

 

Este texto faz parte da edição #10 impressa da Contemporânea.

 

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Odete: Artifício. Vistas da exposição na Galeria da Boavista, Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC.


 

Notas:

 

[1] Conversa com Odete, 30 de Agosto de 2023.

[2] Texto curatorial de Marta Espiridião.

[3] Segundo Odete, os perigos da IA residem especificamente no facto de ela (AI) retirar o significado e o contexto das coisas — precisamente o que os humanos necessitam para a cura e a compreensão. Conversa com Odete, 30 de Agosto de 2023.

[4] Como, por exemplo, o trabalho de E.A.T. ou Knowledge Box de Ken Isaac (1952).

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