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Entrevista a Andreia Santana

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Paula Ferreira

 

Entre 7 de Setembro e 7 de Outubro esteve patente, na galeria Sans Titre, em Paris, a exposição coletiva THE CUP OF WATER THAT GIVES ITSELF TO THIRST — com curadoria de Elise Lammer — a qual abrigava três trabalhos inéditos de Andreia Santana. Com um percurso conhecido dentro e fora de Portugal, Santana vive atualmente em Nova Iorque, cidade a partir da qual trocou correspondência comigo por email. Uma troca prolongada de mensagens que se transformou nesta entrevista.

 

Paula Ferreira (PF): Nesta exposição, você apresentou uma instalação composta por três esculturas. Estas traziam correntes feitas com pequenas argolas metálicas interligadas, que sustentavam esculturas de vidro e água. Eram peças inéditas e eu fiquei me perguntando sobre o que acontece quando uma obra deixa o ateliê para ser mostrada ao público… Como acha que isso afeta a relação que você tem com o seu próprio trabalho?

 

Andreia Santana (AS): Olá Paula. Respondo de Nova Iorque, onde a chuva vem lembrar o último dia da exposição THE CUP OF WATER THAT GIVES ITSELF TO THIRST.  Tenho conversado com pessoas amigas sobre os vários modelos de entrevista feitos a artistas e o mais frequentemente debatido é o balanço ou equilíbrio entre o que partilhar e o que deve ser  mantido íntimo ou não completamente manifestado. Parece-se muito com o fazer artístico. E, nesse caso, chego à tua questão do que é revelado ou de acesso público no meu trabalho, mas, também, à reflexão das políticas de visibilidade que me permitem decidir sobre essa partilha. Confesso que tenho uma relação muito íntima com o meu trabalho, potenciada sempre no acto de concepção mas também através de vários gestos e coreografias de um conviver diário que se vai formando.

Acho que, cada vez mais, essa dimensão pessoal e íntima vai ocupando espaço e se tornando mais evidente. Penso, muitas vezes, nas obras como objectos de substituição ou amuletos — não sei ser esta a expressão certa — ou de conforto, uma extensão de mim com a qual gosto de passar tempo e espaço. Vou encontrando, em vários artistas, comportamentos ou ideias semelhantes. Por exemplo, como mencionei na meu publicação Water Stains, a artista Camile Henrot se refere às suas obras como “cuddling objects” ou, mais recentemente, quando encontrei, nas palavras do artista Curtis Cuffie, que as considera enquanto seres de companhia “My art gives people company. Comforting everybody. It's a very good friend. That's what I hope for.”[1] (“A Minha arte faz companhia às pessoas.conforto a todos. É uma amiga muito boa. É o que desejo”).

resposta via email a 7 de Outubro de 2023

 

PF: No dia da exposição, falámos sobre como as suas esculturas podem ser lidas enquanto objetos de prazer ou, então, como você as vê, objetos de proteção. Na entrevista publicada no livro Water Stains, sobre o seu trabalho, você realça essa visão das esculturas enquanto objetos de proteção e até de um certo acolhimento. Essa leitura sobre elas, ao meu ver, sugere que haja algo contra o que se deve proteger, ou seja, que exista certa violência implícita envolvida. Gostava de ouvir um pouco mais sobre como, ou se relaciona uma ideia de violência (ou algo contra o qual se deve proteger) e a de sexualidade dentro do trabalho.

 

AS: Esta nova série de esculturas que desenvolvi teve como ponto de partida algumas premissas já trabalhadas na instalação Skin Echoes, apresentada no MAAT, por ocasião da exposição colectiva do Prémio Novos Artistas da Fundação EDP, em 2022, e que culminou, posteriormente, com a escrita da minha tese homónima.

A pesquisa foi iniciada exactamente na intersecção entre biologia e identidade e pelo encontro com as crinolinas enquanto mecanismos de modelação e proteção femininos, postos em prática pelos sistemas de moda vigentes em meados do século XIX, e desenvolvidos com base na biomorfologia dos animais e seus exosqueletos. Estava interessada em pensar nestas estratégias de sobrevivência como a camuflagem ou a ecdise, enquanto segundas peles ou cápsulas orgânicas, mas, principalmente, como agentes de defesa e liberdade. Ser livre neste sentido, é estar em protesto sempre, não aceitar sistemas autoritários e contrariar hierarquias. Quando falo em liberdade tem que ver com a ideia de que para as mulheres e pessoas que se identificam com o género feminino, a defesa é uma luta constante.

Penso que, por um lado, existe um desejo de incorporar (vestir, usar), que se manifesta através de obras de escala mais pequena, pela sua portabilidade e, por outro, uma vontade de ser incorporado, engolido quando desenvolvo projectos ou instalações maiores. Relembro agora os meus primeiros trabalhos quando ainda estudava: um deles era uma “casa ideal”, precariamente erguida com papel de cenário e com abertura suficiente apenas para o meu corpo habitar (réplica de uma oferecida pelo meu pai durante a minha infância e que eu considerava como espaço neutro, de independência) e, o outro, era uma pele de tecido branco que eu vesti e na qual fui escrevendo e tatuando o meu mapa de referências e associações.

Na altura, li os diários de Eva Hesse e lembro-me sempre da entrada que menciona a Simone de Beauvoir e o corpo feminino enquanto objecto que se reitera e posiciona com a consciência de ser ferramenta de oposição e retaliação política e social. E acho que é neste sentido que podemos dizer que o poder é libidinal e evocar visualmente os maravilhosos desenhos da Nancy Spero da série Torture of Women, por exemplo — onde o corpo feminino é representado enquanto si mesmo, simultaneamente com laivos do peso de evocar a mitologia greco-romana através de referências gráficas à Lupa Capitolina e, na minha opinião, menos óbvio mas presente, dentes cortantes que se assemelham a uma serra ou outro qualquer utensílio de corte. A faca é, historicamente, o instrumento de defesa mais usado pelas pessoas que se definem no feminino — não fosse ela um objeto tão doméstico quanto íntimo.

Para continuar com os pensamentos de Spero e como escapar às expectativas de uma sociedade patriarcal, cito que operamos “obliquamente — num território onde o inimigo é ao mesmo tempo proteano e íntimo”[2] e que o corpo no feminino está sempre em processo, nunca se fixa ou define e deve identificar-se como presença continua e em trânsito — “sendo os gestos e os movimentos das formas mais antigas de comunicação humana — mulher guerreira, mulher vitima”[3].

resposta via email a 9 de Outubro de 2023

 

PF: Encontro, no seu trabalho, uma certa ideia de esoterismo — fugindo de uma conotação pejorativa e aproximando esse termo de uma explicação influenciada por Antoine Faivre, que o relaciona a um entendimento cosmológico, ao estudo do incógnito, a uma visão mais “integrada” entre o humano e o não-humano, a cultura e a natureza, entre outros. Desde a manipulação de materiais ambíguos — o vidro, principalmente — à ideia de transmutação, vejo no seu trabalho uma certa manifestação de “algo mais”, de uma procura por uma simbiose entre existências que, hegemonicamente, foram percebidas e colocadas em sistemas binários de separação. Faz sentido colocar o seu trabalho nesse lugar?

 

AS: As versões das obras Wet Toy, Sweaty Chains e Sea Spider, apresentadas em Paris, focavam mais a transparência e a ideia de observatório/laboratório de instrumentos que podem ser interpretados enquanto lentes que manuseamos e vemos através e que incorporam água — imagina que as nossas mãos e dedos detêm o poder de ampliação de uma lente (como uma bola de cristal), como o movimento dos iPhones tenta potenciar. Na exposição colectiva Lighea, na galeria Una, em Itália, a fluidez da água e do toque é trocada por desenhos e volumes inscritos no vidro iridescente que refletem, ainda que semitranslúcidos, a dualidade entre superfícies bidimensionais e tridimensionais.  

Se, na primeira exposição, decidi incluir o elemento água enquanto matéria fluida e, como tal, impossível de medir, encerrado em peças que evocam objectos de prazer suportados por uma malha metálica, que, por sua vez, é influenciada por várias técnicas medievais de fabrico de armaduras. Na exposição mais recente, a transparência do vidro dá lugar à experiência de outro tipo de corpos. A ideia é que os tons iridescentes do vidro moldado representem vultos de formas e corpos híbridos e que se transformem consoante as diferentes intensidades da luz solar do espaço, da mesma maneira que as suas próprias sombras e projecções vão tomando e mudando lugar, envolvendo e desencadeando trocas materiais entre vultos de corpos humanos e não humanos, e desencadeando uma visão do mundo pensada através de uma fluidez interseccional e sensorial.

Penso que o esoterismo cosmológico que mencionas tem que ver com esta manipulação matérica que, actuando quase como camuflagem ou mutualismo — e aqui, novamente falamos em sistemas de defesa mas também de simbiose —, funciona na dissolução dos sistemas binários e hegemónicos.

resposta via email a 11 de Outubro de 2023

 

PF: Falámos também sobre a proximidade que as suas peças têm com o corpo humano. Isso me fez olhar para elas enquanto o resultado de uma dança entre: um corpo (ou o seu corpo, que é aquele que cria os objetos), e os materiais (especificamente o vidro, mas também o metal), que, apesar de aparentemente rígidos, são moldados e acabam por ter um caráter delicado e vulnerável atribuído. Isso não é propriamente uma pergunta, mas gostava de saber qual a sua opinião quando falo sobre as esculturas utilizando esse termo. 

 

AS: Em primeiro lugar, as minhas peças são fantasmas. A relação, às vezes quase directa com o corpo humano, funciona enquanto projecção ou espectro. Existe contacto directo com o meu corpo, claro, enquanto extensão criadora que coreografa gestos dissidentes, mas esta série surge, precisamente, quase como uma captura fotográfica daquele momento de arrastamento de uma imagem. Considero-as “espanta-espíritos”, ou aliás, utilizando o pertinente oposto da tradução do Inglês “dream-catcher”, caçadores de espíritos — pois espantar e caçar não apenas são movimentos contrários, como pressupõem algo em fuga, ou, ainda, algo por existir ou um espaço por ocupar. [4] 

O espaço-lar do ser feminino está sempre assombrado, comunicando uma experiência da casa como transitória, instável e intimamente marcada por questões de género e classe. E estes momentos fantasmagóricos acontecem quando o lar que conhecemos deixa de ser familiar; quando a experiência de estar no tempo linear é interrompida; quando a nossa orientação no mundo fica sem sentido; quando o que estava em ângulo morto se torna visível.

Interessa-me essa ideia da figura do fantasma que interrompe não só o que achamos ser o presente, mas todas as dicotomias entre visibilidade e invisibilidade, vida e morte, materialidade e imaterialidade e que, através deles, conseguimos re-imaginar o futuro.

São objectos-rasteira, refúgios cósmicos, volumes cobertos por véus e substratos invisíveis, onde as suas características são intensificadas e definidas apenas pela imaginação. Ou seja, a sua presença é afirmada através de uma evidência do que está formalmente ausente. Tentar compreender estas figuras fantasmagóricas é assumir que a sua forma instável e incontrolável permite a “visibilidade” para além das grandes narrativas da história, relembrando a existência de outras que foram apagadas,
invisíveis e ignoradas.

resposta via email a 12 de Outubro de 2023

 

 

PF: O seu trabalho envolve um processo de pesquisa que, muitas vezes, se torna quase invisível numa exposição. Acredito que, muitas vezes, os títulos das obras são um caminho de volta a esse processo, ou uma sugestão dessa origem mais teórica. Assim sendo, qual seria a relação entre a linguagem e o seu trabalho?

 

AS: Embora a minha prática artística esteja ligada a um período de pesquisa que antecede a criação propriamente dita, existe uma fase nesse estágio de pré-produção onde a acumulação de informação gráfica e textual é contaminada por impulsos externos, o meu quotidiano, mas principalmente, uma ligação forte com o meu subconsciente. O que me leva a sonhar com algumas das obras antes e depois da sua concepção.

Os títulos vão aparecendo de uma maneira mais fluida e gosto da ideia de retorno a uma referência inicial enquanto gesto que vai quebrando qualquer tipo de linearidade temporal. A ligação do meu trabalho com a linguagem é simbólica — para mim, corpo é linguagem e linguagem é protesto.

Neste sentido, não posso deixar de evocar o exemplo do movimento Poema/Processo, no Brasil, em plena ditadura, influenciado pelo livro Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e, consequentemente, posto em prática por Augusto Boal, que extrapola o limite da linguagem e do poema através da sua performatividade 'frente poético'. As palavras deixam de ser abstractas para se tornarem tácteis, consumidas e de livre acesso. O corpo poético, como o fantasma, está sempre em trânsito e, voltando às palavras de Nancy Spero, “the body is a symbol or a hieroglyph, an extension of language” [5] (“o corpo é um símbolo ou um hieróglifo, uma extensão da linguagem“), reconhecendo a mudança na configuração do mesmo em direcção a novas possibilidades de acção, que o declaram não só território político mas, principalmente, um centro de resistência.

resposta via email a 13 de Outubro de 2023

 

PF: Nesta troca de “correspondência”, percebo que o tempo parece agir enquanto uma ferramenta de reflexão e amadurecimento sobre o próprio trabalho… Entretanto, ele também parece ser uma entidade por si só, quando pensamos as suas esculturas e instalações como, bem disse, “fantasmas” ou ainda, como eu colocaria: “memórias de fantasmas”. No seu trabalho, vejo o tempo a se confundir — o passado (por exemplo, nas esculturas que trazem elementos que remetem a uma iconografia pré-colombiana) e o futuro (quando o trabalho assume uma estética mais alienígena) parecem se encontrar. O que pensa sobre isso?

 

AS: Sim, concordo. Preciso sempre de alguma distância depois de terminar as minhas obras, e é esse tempo que vai permitir não só uma maior reflexão mas também o espaço para que outras ideias, que já estavam incluídas na sua génese mas não tão visíveis, possam surgir. Nesse sentido, existe essa ideia da possibilidade ou vontade de sobreposição de tempos históricos — como movimento que alberga horizontalmente todos os eventos, recusando a prática hegemónica das grandes narrativas da História, que sempre operaram de forma linear, unilateral e hierárquica.

resposta via email a 30 de Outubro de 2023

 

PF: Observo, igualmente, que, de certa forma, as suas esculturas e instalações têm uma forte potencialidade em “habitar” o espaço. Talvez isso se relacione, como foi dito, com a ideia de casa, de lugar de conforto ou da esfera doméstica, mas talvez seja também uma “vontade própria” dos objetos reivindicarem espaços para si. Acha que, de alguma forma, eles têm essa espécie de vida própria?

 

AS: Quero acreditar que sim. São vontades uníssonas que penso terem que ver com uma ideia de uma transcorporalidade que poderá ser alcançada por meio de intercâmbios materiais entre a natureza, os corpos humanos, os corpos animais e o mundo material mais amplo. Enquanto pensava sobre como se poderia formar uma noção de corporalidade para além da ideia de identidade — como uma experiência plural, comunal, ou um género de deslocamento corporal — deparei-me com as palavras de Mckenzie Wark, “o corpo encarna em forma coletiva”. [6] A meu ver, esta noção de deslocamento ou transcorporalidade acontece também quando pensamos na lacuna entre os corpos e a imagem que esses corpos fazem enquanto projecção de si mesmos, e voltando a recorrer às palavras de Wark “there are two different kinds of pressure: on being embodied and being a subject.” (“Existem dois tipos de “pressão”: ser incorporado ou ser um sujeito“.). [7]

resposta via email a 31 de Outubro de 2023

 

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

Paula Ferreira escreve em português do Brasil.

 

As respostas de Andreia Santana não seguem o novo acordo ortográfico. 

 

 



 

Andreia Santana, THE CUP OF WATER THAT GIVES ITSELF TO THIRST . Vistas da exposição na galeria Sans Titre, Paris, 2023. Imagens cortesia da artista.


Notas:

 

[1] Cuffie, Curtis. 1998. Ed. Scott Portnoy, Robert Snowden, Ciarán Finlayson. Blank Forms. 2023

[2] Spero, Nancy. Artist’s Statement, 1984 (comentários da artista durante a sua participação no colóquio “Art + Anarchism : Crossing the Political Line”).

[3] Spero, Nancy. Artist’s Statement, December 29, 1987

[4] (Nota da artista) Há aqui uma imagem importante, que se relaciona: a da obra “Househunting”, de Mina Loy, que vi recentemente na exposição de Judy Chicago, no New Museum, em Nova Iorque.

[5] Siegel, Jeanne, “Nancy Spero: Woman as Protagonist,” Arts Magazine 62. 1987

[6] Wark, Mckenzie. Technology as Gender and other Embodied Phenomenologies. 2022.

[7] https://weirdeconomies.com/contributions/technology-as-gender-and-other-embodied-phenomenologies-interview-with-mckenzie-wark

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