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Miguel Soares: Chance Meeting

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José Marmeleira

 

No loop dos mundos da ficção científica

 

Representantes do homo faber na sua mais elevada e nobre condição, os artistas foram sempre sensíveis, embora nem sempre atentos, às condições técnicas e materiais daquilo que faziam, precisamente, enquanto artistas. Toda a história da arte mostra-nos, com maiores ou menores variações, semelhante facto. E, todavia, podemos constatar que os primeiros decénios do século passado representaram uma mudança na relação que passaram a estabelecer com a técnica; mudança essa com importantes significados sociais e políticos, mas, também, estéticos. Não tanto diga-se — ou nem sempre — no interior do próprio fazer artístico, mas no ânimo que o foi guiando. Basta recordar uma série de movimentos ou colectivos que se deixaram seduzir pela imagem fáustica da técnica ou foram solidários com o carácter prometeico (e amiúde violento) que substituiu, na esfera pública, a acção e a palavra. Vários e terríveis acontecimentos históricos viriam, décadas depois, a aplacar tais disposições, mas uma nova relação com a técnica e, por consequência, com a tecnologia emergira. Na verdade, não mais desapareceria, ou a nossa civilização não estivesse já condicionada por uma concepção técnica da acção e, progressivamente, do mundo e do humano[1].

Indo mais longe, encontramo-nos no quadro de uma civilização tecnológica de contornos inéditos e imprevisíveis. A par da hegemonia cibertecnológica (sobre a cultura), começamos, por exemplo, a perceber, embora não a compreender, as consequências da biotecnologia na vida e na noção do que é ser humano. Acresce a essa percepção (que não pode ser independente da mundividência destrutiva do capitalismo) que a história-trágico-científica[2] não é um eufemismo. Com efeito, a ciência não só foi capturada e distorcida por diferentes complexos (ciber-tecnológico, industrial, militar, internético ver Jonathan Crary)[3], como um número relevante dos seus protagonistas contribuiu para o carácter funesto dessa história.

No que concerne aos artistas não é rigoroso falar de uma colaboração efectiva, mas de uma disposição que vai variando entre a tecnofobia e a tecnofilia, exprimindo ora um fascínio de carácter voluntarista, ora um alheamento discreto que pode esconder uma rejeição silenciosas. Onde colocar Miguel Soares, artista português com um percurso iniciado nos anos 1990 e afirmado nos anos 2000, cujo trabalho tem feito, principalmente, da animação 3D — no contexto da instalação e do vídeo, da produção de imagens digitais — um elemento central da sua obra?

No texto de Miguel Wandschneider, para o catálogo da exposição de 2006 na Culturgest (3D Animations and Video Works 19992005), o curador e ex-director da Culturgest menciona o que seria o fascínio do artista pelo imaginário e pela iconografia da ficção científica, pelos ambientes artificiais em que se desenrola a vida nas sociedades tecnologicamente avançadas e pelos desenvolvimentos tecnológicos como factor decisivo da mediação e transformação da nossa experiência social”. Secundando o curador, colocamos a hipótese de que esse fascínio se reflectiria no trabalho de Miguel Soares. Mas de que modo?

Miguel Soares nasceu no início dos anos 70 do século passado, período marcado pela difusão de imaginários visuais provenientes da ficção científica. Este género, considerado menor ou periférico pelos mandarins da literatura, plasmara-se num conjunto de domínios que iam do cinema à televisão, passando pela publicidade, a música pop-rock, a banda desenhada e a imprensa de massas. Basta pensar em certas obras cinematográficas, na presença de certas referências em bandas pop, na reavaliação de autores tão diversos quanto James Graham Ballard, Philip K. Dick ou Isaac Asimov; ou, já no contexto geopolítico e tecnológico, nos projectos da Corrida Espacial que marcaram a Guerra Fria. Robôs, humanoides, naves, teletransporte, marcianos, galáxias, hiperespaço, alienígenas, guerra das estrelas, entre outros vocábulos ou expressões, foram criando um léxico ou, antes, uma constelação escapista, futurista e, por vezes, optimista. Foi essa constelação que inspirou a obra e o percurso de Miguel Soares.

Portanto, em vez de fascínio imoderado, será mais acertado falar de influência, influência que é visual, cultural, estética e conceptual. Numa analogia histórica, podemos evocar a experiência do movimento inglês Independent Group (1952—1955) com as imagens provenientes dos meios de comunicação e da cultura de massas do pós-guerra[4]. Como estes, também Miguel Soares e outros artistas nacionais não foram indiferentes, embora com um atraso de décadas, a uma multiplicidade de imagens que afirmavam uma ideia promissora, ainda que indefinida, de futuro. Portanto, mais do que a técnica ou o progresso tecnológico foi sobretudo um imaginário narrativo, visual, imagético, e, em última análise poético que formou a sensibilidade do artista vencedor do Prémio BESPhoto em 2008.

Certamente que no universo de Miguel Soares as novas tecnologias (manifestas no uso do computador e das animações 3D) têm um lugar central, mas, por si só, não são objecto de uma abordagem apologética ou de um elogio comparável àquele que caracterizou certas vanguardas dos inícios do século XX. Miguel Soares não tem o ânimo de um futurista italiano ou russo ou, permitam-me o salto temporal e conceptual, de um Sterlac. Mesmo se ainda confia na evolução e na presença do vídeo enquanto medium no campo da arte, isso não o torna um tecnófilo. Na verdade, considera que o uso dos novos media (digitais), nomeadamente em Portugal, tende a ser instrumental, pouco criativo e não estético. Passemos-lhe a palavra: “Não creio que a maioria dos artistas seja entusiasta dos novos media. Se considerarmos que os novos media são os que surgiram nos últimos 30 anos, por exemplo, diria que talvez a maioria dos artistas usa esses novos media como veículo para divulgar os seus trabalhos, através da internet por exemplo, mas não tanto como suporte dos trabalhos numa exposição, onde continuam a predominar os meios mais tradicionais. E se olharmos para uma pintura feita em 2023 facilmente a remetemos para um dos diversos movimentos artísticos do século XX, mesmo que a pintura trate de um ‘assunto’ de agora. Isso não acontece por exemplo com o vídeo, que ainda está em evolução. É fácil distinguir um vídeo de 1990 de um vídeo de 2020”.

 


 

A atenção sensível de Miguel Soares às potencialidades artísticas e estéticas do vídeo é indissociável do trabalho do artista com a animação 3D, ferramenta que viria a distinguir a sua obra a partir dos finais dos anos 90. Antes, contudo, é importante referir a influência da iconografia dos jogos de computador em trabalhos como Your Mission is a failure de 1996 e Barney Oline de 1997. “A relação com os jogos manifestou-se essencialmente entre 1996 e 1998”, comenta Miguel Soares. “E por duas razões. Primeiro com Your Mission is a failure, pela capacidade que adquiri de capturar vídeo a partir dos jogos. Podia jogar de forma não convencional, sair da personagem, e controlar a câmara, modificar e remisturar. E depois com Barney Oline pelo surgimento dos jogos online, que permitiam para a interacção com pessoas em qualquer parte do mundo, através de diálogo e acções”. O artista deixa, entretanto, uma nota: “Há um mal-entendido, que é geral, em relação ao meu trabalho em 3D, que nada tem que ver com jogos. O 3D é uma tecnologia usada em jogos, mas também em animação, cinema, arquitectura, design, simulações militares.  Considero-a uma ferramenta de arte maior porque inclui em si todas as formas de arte anteriores. Dentro do 3D podes ter desenho, pintura, escultura, fotografia, cinema, música, gravura, performance, design”.

É com o recurso ao 3D digital que o artista produzirá uma série de animações que nos remetem para cenários distópicos ou apocalípticos. A influência do imaginário, experimentada nos anos 70, maturar-se-ia numa consciência política e poética de que o futuro traria fantasmas e monstros. Não são criaturas extra-terrestres esses seres, mas declinações da hubris do próprio homo faber. Esta visão atravessa os vídeos Time for Space de 2000, SpaceJunk beta 1.0 de 2001, H2O de 2004, Time Zones de 2003 ou Place in Time, de 2005. Não estamos diante de jogos de computador, mas de imagens em movimento que, sedutoras na sua animação, vão introduzindo uma sensação de desconforto e de temor. Qualquer vestígio de uma componente lúdica ou familiar desaparece num minimalismo frio e impassível do qual o humano parece evacuado. A presença da tecnologia (espacial, militar) não é exaltada ou admirada, antes observada numa melancolia que os sons tornam distante, indiscernível. Sem ironia ou humor, as imagens assombram-nos com as suas luzes e cores, com a sua música e os seus silêncios.

Não é possível, portanto, atribuir ao artista um fascínio hipotético pela tecnologia. Esse sentimento não aparece, pelo menos se interpretado enquanto entusiasmos ideológicos ou inclinação fáustica. Dito isto, a curadora Adelaide Ginga parece ver em alguns dos trabalhos de Miguel Soares “uma proposta filosófica de um futuro não distópico, que nos traz uma narrativa existencialista estendida aos robôs, com uma visão positiva e poética de uma época vindoura de efectivo alcance dos valores elementares: liberdade, igualdade e fraternidade”[5]
 

Parece evidente que, nestes termos, a tecnologia libertaria o homem do peso do labor. A posição de Miguel Soares é ambivalente, incerta e cautelosa. “Creio que sou como a maioria das pessoas, uns dias optimista, outros dias pessimista. Acontece que a esmagadora maioria das narrativas sobre robôs são distópicas, e é difícil não o ser. Houve uma tentativa da minha parte de ser menos distópico na exposição Luzazul”. Com efeito, em boa parte das obras desta exposição, o universo de ficção científica caro a Miguel Soares parece transformado, dirigindo-nos numa direcção menos austera. Vemos robôs, objectos, seres em mutação (sem identidade ou forma estáveis) ou entidades não humanas em paisagens ou em actividades que poderíamos considerar humanas. Seja como for, a visão menos distópica de Miguel Soares nestes trabalhos não visa propriamente uma defesa do não-humano, antes propõe uma fabulação que lhe permite trabalhar com as imagens e imaginar outros mundos, experiências que devem ser entendidas no contexto da sua relação longeva com a ficção científica. Tal não obscurece a consciência crítica que o formou. Autores como H. G. Wells, Huxley, Orwell, Burgess (A Clockwork Orange), Philip K. Dick, Bradbury, Thomas Moore ou Mary Shelley nunca permanecem distantes da sua relação com as imagens e a produção artística.

Com alguma justeza e rigor, podemos colocar o trabalho de Miguel Soares num lugar intermédio. Reflecte tanto uma distância informada sobre a tecnologia, como um desejo de conceber obras que possam transcender e problematizar uma posição indubitável sobre os efeitos da tecnologia na vida, no trabalho e no que é ser humano, sem que tal implique uma superação da humanidade, a obsolescência do humano. Os trabalhos que apresenta na exposição Chance Meeting são disso exemplares. Em MetaTouch (2023) e Encounters (2023), contemplamos o que parecem seres alienígenas em movimento. Nesta última animação, o artista juntou imagens reais e virtuais: em ruas e noutros espaços da cidade, observamos errâncias de esferas de metal líquido que sabemos não serem reais. Nada têm de ameaçador, como não têm as de MetaTouch que sempre que se tocam são teletransportadas para outra paisagem. Já em ChronoCube (2023), somos colocados diante da vertigem de um abismo em movimento. A animação em loop “mergulha” o espectador no interior de paisagens que podiam ser ruínas de um mundo extinto. Caímos numa mise en abyme. “Podemos ver este trabalho como uma ilusão óptica, um pouco como um trabalho de Op Art mas em animação. A sensação de temor talvez venha em parte do som, daí ser bom comparar a versão exterior, sem som, com a interior, sonorizada. Espero que o desconforto inicial se dissipe e que se perceba que é apenas um jogo com regras pré-estabelecidas, e que nada de inesperado ou mau irá acontecer”. Mas é esse temor, o de cair num abismo interminável que hipnotiza o espectador, deixando-o num estado físico e psicológico tão estranho quanto familiar. Afinal já estamos todos dentro daquele loop, o de uma mundivisão económica destrutiva. Sem fim à vista.


Miguel Soares

Rialto6

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon (suplemento do jornal Público), Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

Revisão de Madalena Tamen, supervisionada pela editora.

 



 

Miguel Soares, Chance Meeting, vistas gerais da exposição no Rialto6, Lisboa, 2023. Obras: MetaTouch, Encounters, ChronoCube. Fotos: Vasco Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6.

 


Notas:

[1] Nunca é demais a propósito desse condicionamento mencionar o ritmo e o rumo da modernização e o facto de esta nos aparecer como indistinta das acelerações provocadas pelo capitalismo.

[2] MARTINS, Hermínio (2011;173-261), Experimentum Humanum – Civilização tecnológica e condição humana, Lisboa, Relógio D’Água.

[3] CRARY, Jonathan (2023), Terra Queimda, Antígona, Lisboa.

[4] BOIS, Yve-Alain; BUCHLOH, Benjamin; ALAN, FOSTER Hal; Krauss, ROSALIND (2004) Art Since 1999, pags. 385-390, Thames & Hudson.

[5] GINGA, Adelaide (2018), “O Pioneirismo Futurista de Miguel Soares – À conversa com o artista, In Luzazul ; MNAC — Documenta, Lisboa.


 

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