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Ana Elena Tejera

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Sara Castelo Branco

 

Los sucesos que llevaron a su olvido

@ Batalha Centro de Cinema

La casa de los animales

@ Solar Galeria de Arte Cinemática

 

 

Envolvendo imagens, sons e corpos que comungam um mesmo horizonte telúrico e animista — as instalações imersivas, sensoriais e rítmicas de Ana Elena Tejera (1990, Panáma) manifestam desejo, misticismo, dor, resistência e intimidade, desenvolvendo-se numa profundidade que, pelo intermédio de elementos documentais e ficcionais, se abisma medularmente sobre as particularidades territoriais e históricas do Panamá. Apresentadas em simultâneo, as duas exposições da artista — Los sucesos que llevaron a su olvido no Batalha Centro de Cinema (Porto) e La casa de los animales na Solar Galeria de Arte Cinemática (Vila do Conde) — comunicam entre si, tendo uma mesma origem baseada num trabalho desenvolvido por Tejera no Panamá entre 2022 e 2023. A circularidade entre as duas exposições revê-se também interiormente na conciliação — ou na potencialização — que fazem com a natureza arquitectónica e histórica dos dois espaços expositivos: se no Cinema Batalha vê-se uma projecção fantasmagórica que reanima um fragmento do mural do Júlio Pomar; na Solar Galeria, parte das projecções são feitas de forma igualmente espectral sobre a textura do granito não polido do edifício.

A história do Panamá tem sido determinada por uma série de acontecimentos geopolíticos incitados pela sua compleição geográfica, que está assente numa configuração estreita e numa localização estratégica. Durante o século XX, o país ficou marcado pela penetração dos Estados Unidos da América em 1989, e a entrega formal do Canal do Panamá no final de 1999, isto é, tudo começou “com o trauma e as mortes da invasão militar e a queda da ditadura militar que perdurava há muito e terminou com a dissolução do enclave militar e a dissolução oficial do Exército do Panamá. Hoje, a soberania deste território coletivo está ainda mantida refém, mas agora por gigantescas empresas transnacionais portuárias e de extração mineira, ou talvez pelo fantasma dos Estados Unidos, que, de uma forma ou de outra, está sempre presente” (Samos 2023)[1]. A prática artística multidisciplinar de Ana Elena Tejera — composta por instalações, fotografias, filmes, peças sonoras e performances — ordena-se aqui através de um ponto de vista duplo: detém como horizonte genérico a história panamense, e, como cenário particular o lago artificial de Gatún, que irrompeu após a construção do Canal do Panamá, fazendo submergir parcialmente algumas cidades habitadas por comunidades de indígenas e de imigrantes da África Central. As exposições Los sucesos que llevaron a su olvido e La casa de los animales trabalham, portanto, sobre um movimento de memória relacionado com o país de origem da artista, que se conecta porém criticamente ao presente através de uma deslinearidade temporal. Neste sentido, as imagens de Tejera mostram corpos que se agitam de modo violento ou que se tocam vagarosamente, ou rituais que indistintam humanos e não-humanos, fazendo regressar o território panamense a uma condição intercorporal e interanimal.

As obras das duas exposições partilham similarmente o modo como exploram a propagação de som pelos espaços expositivos, sendo este constituído por vozes, cantos, tambores e gritos de animais, que desvelam escutas e materialidades sonoras particulares ao invocarem a imaginação do ouvinte face a uma paisagem natural panamense. Mesmo quando não se está perante as peças, estas existem através do som, originando cruzamentos entre si. Esta contaminação é enfatizada por instalações de som como Humedad (2023) no Cinema Batalha e Gritadera (2023) na Solar Galeria, constituídas por transdutores sonoros, colocados em chapas de ferro, onde se encontram fotografias a preto-e-branco que parecem representar o chão da terra, dando uma textura sonora à imagem, enquanto a imagem dá uma textura imagética ao som.

Ao induzir a reactivação de uma consciência e senciência visceralmente telúricas, as obras presentes nas duas exposições induzem a uma reabilitação do animismo como potencial político de descentramento e de valorização de cosmovisões e de formas não-humanas.  Se, como afirma Elizabeth Povinelli (2016), os animistas são todos aqueles “que veem equivalência entre todas as formas de vida ou aqueles que podem ver vida onde outros veriam apenas a ausência dela” (Povinelli 2016: 18)[2], trata-se também aqui da reabilitação de outras formas de consciência que invocam outras maneiras de sentir, percepcionar, pensar e imaginar. Deste modo, as duas exposições desenvolvem um encontro com instintos expressivos atávicos, que aqui se manifestam por uma fantasmagoria e energia sígnica em latência perceptível, por exemplo, na figura de um homem espectralmente duplicado num vídeo situado na entrada do Batalha, ou, nas projecções sob a água e o chão na Solar.

Los sucesos que llevaron a su olvido e La casa de los animales exploram portanto um modo de sentir e de pensar onde o atavismo surge como uma forma de reactivar reminiscências e o reaparecimento de traços ausentes que, inscrevendo as potencialidades do ancestral e do primitivo, auferem ferramentas de resistência crítica ao passado e ao presente do Panamá. Trata-se assim de reinvindicar e de regenear aquilo que de mais originário foi separado: o que Isabelle Stengers (2012) afirma ser um aprender a habitar novamente o que foi destruído, e a elevar uma experiência que nos “anima”[3].

 

Ana Elena Tejera

Batalha Centro de Cinema

Solar Galeria de Arte Cinemática

 

Sara Castelo Branco [1989, Porto] é doutorada em Arts et Sciences d’Art e Ciências da Comunicação pela Université Paris 1 — Panthéon Sorbonne [Paris] e Universidade Nova de Lisboa [Lisboa], enquanto bolseira da FCT. Investigadora do ICNOVA — Cultura, Mediação e Artes [FCSH-UNL]. Em 

2022, criou o Solarity Prospects — um projecto reflexivo e participativo, composto por uma série de eventos que envolvem plataformas para discussões descentralizadas sobre políticas e dinâmicas ligadas ao sol. Tem vindo a fazer a curadoria de exposições e ciclos de cinema experimental como Back of My Hand [Carpintarias São Lázaro, Lisboa, 2022], Blinding Light [CRIPTA 474, Turim, 2021], To Film With One Hand My Other Hand [Galeria Zé dos Bois, Lisboa, 2021], Under the Ground [Galerias Municipais de Lisboa, Lisboa, 2020] ou Out Off Nature [Arsenal — Institut für Film und Videokunst, Berlim, 2019]. Tem um mestrado em Estudos Artísticos — Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e uma licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura pela Universidade Lusófona do Porto [ULP]. Na área da investigação e da crítica sobre arte contemporânea portuguesa contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas e catálogos.

 

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Ana Elena Tejera. Vistas da instalação Los Sucesos que llevaron a su olvido no Batalha Centro de Cinema, Porto, 2023. Fotos: Filipe Braga. Cortesia de Batalha Centro de Cinema.

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Ana Elena Tejera. Vistas da instalação de La casa de los animales na Solar Galeria de Arte Cinemática, Vila do Conde, 2023. Fotos: João Brites. Cortesia Solar Galeria de Arte Cinemática.

 


Notas:

 

[1] Texto “A Ferida” (2023) de Adrienne Samos publicado na folha-de-sala da exposição La casa de los animales de Ana Elena Tejena na Solar Galeria de Arte Cinemática.

[2] Povinelli, Elizabeth. (2016). Geontologies: A requiem to late liberalism. Durham: Duke University Press. Ver: Souza Júnior, Carlos Roberto Bernardes de. (2022). “Lugar e animismo: geografias do (co)habitar em mundos partilhados ”, In GeoTextos, vol. 18, nº 2, dezembro 2022. C. Júnior 203-227.

[3] Stengers, Isabelle. (2012). “Reclaiming animism.” e-flux. Acesso a 4 de Outubro 2023. https://bit.ly/35e6j9U.

 

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