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QUADRUM 50 anos, uma fogueira cultural

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Isabel Nogueira

A arte é um lugar aberto

A Galeria Quadrum, em Lisboa, comemora este mês de Novembro 50 anos de vida e, naturalmente, que o número redondo e a sua relevante actividade merecem celebração. Fundada e dirigida até 1995 por Dulce D’Agro (1915-2011), o espaço, incialmente destinado a ser um restaurante de apoio ao complexo dos Coruchéus, revelou-se uma galeria possuidora de uma clara marca autoral. Aliás, na presente exposição destaca-se uma fotografia de grande dimensão da galerista no topo da sala. Após alguma intermitência, em 2010, a Galeria Quadrum passaria a ser dirigida pela Câmara Municipal de Lisboa/EGEAC. Mas, e voltando a situar-nos em 1973, o título da exposição inaugural posicionou imediatamente a galeria e o gosto de Dulce D’Agro: Artistas Modernos Portugueses. E por aqui passaram, efectivamente, dos mais implicativos artistas portugueses da segunda metade do século XX, como Ana Hathertly, Ana Vieira, Álvaro Lapa, António Palolo, Joaquim Rodrigo, Julião Sarmento, Fernando Calhau, Ernesto Melo e Castro, Helena Almeida, Salette Tavares, Eduardo Nery, Nikias Skapinakis, entre muitos outros. A exposição que agora se apresenta, incorporadora de um forte cariz documental — visível, de resto, na própria performance inaugural de António Olaio e António Poppe, que partiu de textos do arquivo da galeria — tem curadoria de Paulo Mendes e debruça-se sobre a galeria e a sua história, sobretudo na época da sua fundação. Podemos afirmar que, desta vez, é a galeria que se expõe no contexto da história da arte em Portugal destes anos, para a qual, a seu modo, também contribuiu.

A entrada no espaço é poética, forte e evocativa, revelando-se das mais inusitadas e melhores peças. Nas fitas que assinalam a passagem para o interior encontra-se projectada a palavra “rotura”. É um excelente começo. Rotura foi o título da acção de Ana Hathterly na Quadrum, em 1977, na qual, e numa prática que repetiu algumas vezes — na exposição Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea (1977), por exemplo —, rasgava grandes pedaços de papel. A performance seria filmada, ficando-nos o seu registo. Rotura seria também o que a Quadrum desejava realizar num Portugal em que o Estado Novo soprava, felizmente, o seu canto do cisne. De entre as galerias mais relevantes que surgiram nos anos 70, a Galeria Quadrum foi das primeiras com um propósito moderno, contribuindo para um pioneirismo ao nível da internacionalização de alguns artistas portugueses. Num país fechado, conservador, antidemocrático, ruralizado e geográfica e culturalmente perifério, não foi pouco. Pelo contrário. Como, de resto, afirmou Rui Mário Gonçalves na sua rubrica “Carta de Lisboa” (Colóquio/Artes, Dezembro de 1973), as galerias, como a Galeria Quadrum, acabavam por mostrar o que de «(…) melhor se produzia no domínio artístico». Certamente.

De facto, num Portugal em que efectivamente não existiam museus de arte moderna e contemporânea, a acção de algumas galerias comerciais foi relevante, desacando-se também a Galeria Diferença (1979, Lisboa) ou a Galeria Módulo: Centro Difusor de Arte (1975, Porto e 1979, Lisboa). Na verdade, o Museu Nacional de Arte Contemporânea/Museu do Chiado, fundado em 1911, depois de diversas vicissitudes, só reabriria ao público em Julho de 1994; o CAC (Centro de Arte Contemporânea) esteve em funcionamento apenas entre 1976 e 1980 no Museu Nacional de Soares do Reis, sob direcção de Fernando Pernes; o CAM (Centro de Arte Moderna/Fundação Calouste Gulbenkian), seria inaugurado só em Julho de 1983; a Fundação/Casa de Serralves surgia em 1987 e Museu de Arte Contemporânea de Serralves apenas em 1999. O meio cultural e artístico português era genericamente adverso e esta adversidade estendia-se, claro, ao ensino artístico ou às publicações sobre arte, destacando-se por estes anos, contudo, as revistas Colóquio/Artes (1971-1996), Revista de Artes Plásticas (editada pela Galeria Alvarez, Porto, 1973-1977), Arte/Opinião (1978-1982) ou Opção (1976-1978). Ernesto de Sousa, precisamente em 1973, descrevia com o seu sentido crítico oportuno e habitual o estado da nação (Lorenti’s, 1973): «Não se passa nada… Isto é que é um país!!! É a província, um abismo… (…) Só futebol, futebol e o fantasma das touradas!!!».

No ano de inauguração da Quadrum, em 1973, existiriam em Portugal cerca de 30 galerias comerciais, principalmente localizadas em Lisboa, mais precisamente 15. Na cidade do Porto existiriam 11 galerias e no restante país cinco. Alguns destes espaços chegaram a ser dirigidas por críticos de arte durante algumas temporadas, como foi o caso da sucursal lisboeta da Galeria Divulgação, dirigida por Fernando Pernes, ou da Galeria Buchholz, dirigida por Rui Mário Gonçalves. Quanto às suas especificidades, todos estes espaços expositivos estavam direccionados para a arte contemporânea, merecendo ainda relevo a Galeria 111, pertencente e na época dirigida por Manuel de Brito, abrindo-se, em 1971, uma extensão na cidade do Porto (Galeria Zen).

A 25 de Abril de 1974, a Revolução determinava o fim de um regime antidemocrático, colonialista, isolado e autoritário, o mais longo da Europa (1926-1974). Os tempos que se seguiram foram difíceis, devido a uma certa fragilidade na história cultural e artística portuguesa, principalmente devido à dificuldade de criação de instituições inovadoras, de lugares, de práticas e de rotinas capazes de constituir um território profícuo de experiências artísticas sedimentadas e continuadas. A galeria Quadrum intensifica, por entre tempos de construção e de reajuste geral, a sua actividade, sempre vocacionada para a modernidade. A título de exemplo, logo em 1976, acolheria a mostra colectiva Alguns Aspectos da Vanguarda Portuguesa, na qual intervieram, entre outros artistas, Ana Vieira, Ângelo de Sousa, António Lagarto, António Sena, Artur Varela, Eurico Gonçalves, Fernando Calhau, Graça Pereira Coutinho, Helena Almeida ou João Moniz. E repare-se no uso nos próprios títulos das exposições de categorias artísticas e críticas definidoras de modernidade: “vanguarda”, “modernos”, etc.

De um modo geral, sabemos que a modernidade artística, no sentido efectivo da categoria do “novo”, normalmente não emerge no âmbito institucional e oficial. Pelo contrário, e como seria expectável, o seu lugar de origem é independente e até, muitas vezes, combativo. Talvez seja a “fogueira cultural” a que Dulce D’Agro se referiu numa entrevista de 1990 e que conferiu — e bem — título a esta exposição. Esta novidade estendeu-se a importantes acções de formação e sensibilização de públicos, com cursos e palestras, por exemplo. Nos anos 80 e parte dos anos 90, a actividade da Galerial Quadrum foi-se igualmente pautando pela procura de novidade e, naturalmente, de novos artistas e propostas. E, actualmente, e num outro contexto, continua a produzir um percurso válido. Esta exposição é, a nosso ver, sobretudo um importante contacto com a história das artes plásticas em Portugal, que importa continuar a investigar, desenvolver e devolver ao público. A arte é um lugar aberto. Uma fogueira para todos e todas.

 

Galeria Quadrum

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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