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Perfil: Diogo da Cruz

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Carolina Quintela

A prática artística de Diogo da Cruz (Lisboa, 1992) baseia-se na investigação e utilização de tecnologias para, de forma crítica e muitas vezes irónica, repensar e reimaginar estruturas fixas da sociedade ocidental. Através de projetos impulsionados por cenários parcialmente fictícios, baseia-se em descobertas científicas referentes a circunstâncias sociopolíticas passadas e ancestrais, presentes e potencialmente futuras. De carácter conceptual, a sua obra questiona e expõe a rigidez dessas mesmas estruturas desdobrando-se sob diversos media, como a performance, a escrita ou o vídeo, ainda que mais recorrentemente através da escultura ou do objeto. Ao conversar com o artista e depois de um olhar mais atento e abrangente sobre o seu trabalho, é possível identificar núcleos de pesquisa que ganham expressão no seu percurso, permeando as suas obras de forma mais ou menos transversal. Ideias como o tempo, a linguagem, a ciência, ou as questões sociais e ambientais adjacentes à mineração em alto mar ganham protagonismo e são indagadas profundamente fazendo de cada obra um projeto complexo e multidisciplinar, munido de abertura e consciência. Com um trajeto que se iniciou nas ciências, da Cruz parece quase prolongar essa herança metodológica de análise e experimentação, desenvolvendo e apresentando o seu trabalho sob um ponto de vista global, recorrendo a diversos suportes para apresentar uma ideia e formular uma hipótese: pesquisa de campo, de laboratório, documental, experimental e estudo de caso. Por outro lado, parece ser a sua inesgotável curiosidade que o faz regressar a alguns projetos para os apresentar de outra forma e sob uma nova ótica, testando novas ativações por parte do espectador.

Para Heidegger, a linguagem, muito mais do que apenas palavras, constitui a estrutura ou o contexto dentro do qual o ser humano existe e habita o mundo, assim como interpreta a sua experiência. Ao introduzir o conceito de linguagem como casa do ser, sugere que é aí que o ser humano encontra a sua morada e o seu lugar como ser-no-mundo. Deste modo, a linguagem não é neutra, mas constituinte da própria compreensão do mundo, influenciando a forma como a realidade é interpretada. Superando-se o entendimento meramente comunicativo e gramatical, não se trata apenas do significado das palavras, mas também da estrutura e do modo como revela ou oculta aspetos da existência e de tudo aquilo que nos rodeia. Para Heidegger, a linguagem desempenha um papel central na compreensão do ser e da existência. Assim sendo, o seu valor não pode ser reduzido apenas à sua utilidade prática, mas entendido como o modo que permite habitar e interpretar o mundo. Em 2017, Diogo da Cruz, faz nascer o projeto WORDCOIN. Ainda que sob uma outra perspetiva aponta igualmente à importância ontológica da linguagem, subvertendo ironicamente a ideia e simbolismo das trocas financeiras pelo valor da palavra e da argumentação. No entanto, já em 2016, publicou The Gravity of Time, um livro e mais tarde uma palestra-performance. Tendo como meio a linguagem, através da palavra escrita e a palavra dita, reúne perspetivas distintas sobre a perceção do tempo, a sua medição e o impacto no comportamento social. Nesse sentido, confirmamos que o valor da linguagem existe a par da subjetividade do pensamento e como motor de autenticidade: as palavras e a sua exposição retórica criam simultâneas esferas de realidade e perceção. É a partir deste momento e como consequência do Programa de Estudos Independentes da Maumaus, em Lisboa, que a performance, assente no diálogo, surge pela primeira vez no seu trabalho a par de uma dimensão social da prática artística que ganhou uma enorme relevância.

Mas voltando ao projeto WORDCOIN, é relevante perceber que numa altura em se discutia sobre a livre expressão e o condicionamento da verdade (e a pós-verdade), o artista propunha, de fundo crítico e sarcástico, a implementação de uma nova moeda que dá valor literal ao discurso. Com a criação do “Banco da Argumentação”, apresentado pela primeira vez no Departamento Cultural da Cidade de Munique, o espectador tornava-se cliente e tinha fantasiosamente a oportunidade de depositar os seus argumentos numa instituição para poupar, investir e negociar as suas palavras, dando a explicitação merecida e objetiva às suas ideias. Por esta altura e motor deste projeto, Diogo da Cruz, assim como tantos outros artistas emergentes deparou-se com a realidade do convencimento, através das suas palavras, para aceder a bolsas de financiamento que o permitissem concretizar as suas obras. WORDCOIN foi apresentado, sob a forma de exposição-performance e dividido em três partes distintas, uma área promocional com vídeos, uma área lounge com sofás insufláveis ​​e águas grátis e por fim uma área de escritório com mobiliário da Kulturreferat (Departamento Cultural da Cidade de Munique). A apresentação iniciava-se com I Wish I Knew How It Would Feel to Be Free de Nina Simone e seguida de uma apresentação do conceito do banco e da sua moeda, refletindo sobre o seu valor, circulação e a mercantilização/capitalização das palavras e do discurso. Neste sentido, para este artista, a linguagem vai muito além do seu valor prático inerente, sendo ferramenta de ação, fonte crítica e criativa, da sua própria revelação, assim como o seu modo de trabalho. A utilização da linguagem, sob todas as suas formas, é manipulada para a criação de realidades alternativas e fictícias.

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Diogo da Cruz, WORDCOIN. Vistas da exposição no Departamento de Cultura da Cidade de Munique, 2016. Fotos: Diogo da Cruz.

Esta ideia de manipulação da realidade, através da linguagem, é a raiz do mito: a narrativa simbólico-imagética que se prolonga e se adapta aos tempos. Este é também um aspeto latente do mundo contemporâneo com a proliferação das notícias falsas, agravada pela circulação da comunicação em nicho. Especialmente online, esta redoma cria a ilusão de concordância e de um impacto que pode não corresponder à verdade. No entanto, essa é uma perceção condicionada à validação de determinado grupo fechado, que para o bem ou para o mal, contribui para uma conformação e padronização de opinião. Wisdom Warriors, 2019 e em constante desenvolvimento, é um coletivo parafictício que idealizou um projeto revolucionário com o objetivo de mudar drasticamente a forma como a sociedade se relaciona com a tecnologia, provocando um abrandamento da sociedade e assim sabotar o “progresso” incessantemente crescente da sociedade ocidental. Este coletivo, que na verdade é apenas constituído por Diogo da Cruz, através de som, vídeo, instalação e performance, encontra primeiramente a sua voz num chat online, no qual os vários elementos do grupo discorrem manifestos escritos, identidades gráficas, simbologias e plano de ação. Acontece que aparentemente parecem ter um grande efeito na sociedade, mas tais reformas, transmitidas ao seu pequeno nicho criativo, foram promulgadas apenas dentro do seu próprio sistema. Esta narrativa fictícia é intencionalmente um espelho distópico dos nossos tempos e procura refletir sobre revoluções anteriores falhadas e movimentos revolucionários atuais. Wisdom Warriors, focado numa revolução social iniciada por um grupo de artistas que nunca aconteceu, desde 2020, desenvolve-se como uma banda de música, em conjunto com Daniel Door e Guida Miranda, abrindo espaço à ideia de que um movimento falhado pode ainda assim ser celebrado.

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Diogo da Cruz, Wisdom Warriors, stills do vídeo, 2019.

Numa outra vertente do seu trabalho e num jogo entre os limites da arte e da ciência, em 2019, num laboratório existente no centro de uma montanha italiana, o Laboratori Nazionali del Gran Sasso (LNGS), acompanha a investigação CRESST (Cryogenic Rare Event Search with Superconducting Thermometers). Esta colaboração internacional de diversos investigadores/físicos tem como objetivo desenvolver o detetor mais sensível e preciso capaz de registar a matéria negra, que pode ser observada pelo seu impacto gravitacional, mas que ainda não foi detetada. A shot in the dark nights of absence, primeiramente apresentado no Museu de Serralves aquando do prémio NOVO BANCO Revelação 2019, no qual Diogo da Cruz foi finalista, é o resultado do trabalho do artista. Uma escultura que reproduz à escala 1:1 o detetor original feito de cobre e um vídeo que acompanha a performatividade dos investigadores na manutenção da enorme câmara de deteção. O registo destes gestos ritualísticos e a absoluta dedicação a esta demanda propicia a reflexão sobre o valor da crença e da própria fé. Este conceito científico mostra-se quase espiritual, assente na sensibilidade adjacente à exploração de zonas onde o conhecimento ainda não chegou: a espera por um milagre ou por um sinal revelador. Em 2023, a instalação voltou a ser apresentada, ainda que algumas alterações, no Departamento de Física – TUM, em Munique. Desta vez a superfície da escultura foi oxidada, decompondo-se a sua formalidade e rigidez. Num gesto de quase explosão da forma, ao ser expandida, as suas estruturas desconstroem-se, apelando assim ao questionamento sobre o que será o futuro destes equipamentos e do conhecimento científico quando as alterações climáticas não permitirem mais o seu financiamento ou até acesso. Como uma espécie de arqueologia, esta memória futura é uma provocação e um alerta.

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Diogo da Cruz, a shot in the dark nights of absence. Vistas da exposição no Museu de Serralves, Porto, 2019, e no Departamento de Física da TUM, Munique, 2023. Fotos: Filipe Braga e Constanza Meléndez.

Numa outra vertente do seu trabalho e num jogo entre os limites da arte e da ciência, em 2019, num laboratório existente no centro de uma montanha italiana, o Laboratori Nazionali del Gran Sasso (LNGS), acompanha a investigação CRESST (Cryogenic Rare Event Search with Superconducting Thermometers). Esta colaboração internacional de diversos investigadores/físicos tem como objetivo desenvolver o detetor mais sensível e preciso capaz de registar a matéria negra, que pode ser observada pelo seu impacto gravitacional, mas que ainda não foi detetada. A shot in the dark nights of absence, primeiramente apresentado no Museu de Serralves aquando do prémio NOVO BANCO Revelação 2019, no qual Diogo da Cruz foi finalista, é o resultado do trabalho do artista. Uma escultura que reproduz à escala 1:1 o detetor original feito de cobre e um vídeo que acompanha a performatividade dos investigadores na manutenção da enorme câmara de deteção. O registo destes gestos ritualísticos e a absoluta dedicação a esta demanda propicia a reflexão sobre o valor da crença e da própria fé. Este conceito científico mostra-se quase espiritual, assente na sensibilidade adjacente à exploração de zonas onde o conhecimento ainda não chegou: a espera por um milagre ou por um sinal revelador. Em 2023, a instalação voltou a ser apresentada, ainda que algumas alterações, no Departamento de Física — TUM, em Munique. Desta vez a superfície da escultura foi oxidada, decompondo-se a sua formalidade e rigidez. Num gesto de quase explosão da forma, ao ser expandida, as suas estruturas desconstroem-se, apelando assim ao questionamento sobre o que será o futuro destes equipamentos e do conhecimento científico quando as alterações climáticas não permitirem mais o seu financiamento ou até acesso. Como uma espécie de arqueologia, esta memória futura é uma provocação e um alerta.

A água é um símbolo de transformação, fluidez e renovação que abre espaço ao debate sobre a impermanência, a interconexão e a natureza cíclica da existência. A água conecta ecossistemas, sustenta a vida e molda paisagens, destacando a profunda teia de relações que suportam toda a vida na Terra. Sendo cada um de nós constituído maioritariamente de água e tendo cada um de nós sido gerado nela, podemos admitir que somos na verdade corpos de água, entrelaçados com os rios, lagos e oceanos que nos rodeiam. Ao reconhecermos a nossa própria corporeidade líquida e a interdependência com os sistemas aquáticos do planeta, podemos desenvolver uma nova consciência ecológica que transcende as divisões tradicionais entre sujeito e objeto, humano e não-humano. Astrida Neimanis[1], precursora desta ideia, destaca a importância da água não apenas como recurso natural[2], mas como uma força vital que permeia todos os aspetos da existência. Defende também que a água, sendo condutora, armazena toda a informação nela contida passando-a de um ser vivo para outro. Neste eterno retorno, a água que existe dentro dos corpos atua como um repositório de memória.

Diogo da Cruz, possui uma forte relação com o mar e com o oceano desde criança. Sendo a associação ao passado colonial de Portugal inevitável, através da sua prática artística recupera a água como parte da sua mais recente investigação, tendo como principal foco o fundo do mar. Esse lugar praticamente desconhecido é simultaneamente origem da vida e o pouso das memórias mais atrozes da humanidade. Paralelamente, a mineração da profundeza do oceano é uma ação de crescente especulação financeira para a exploração do solo no qual foram detetados metais necessários à suposta energia verde. Esta nova exploração abusiva, traz à superfície elementos ainda por conhecer.

Materializado primeiramente com Wonder where to land, um conjunto de esculturas metálicas que conectam e penetram o espaço expositivo, são na sua aparência homenagens a microalgas unicelulares encontradas na maioria dos ambientes aquáticos. Estas e outras formas escultóricas vão reaparecendo numa sequência de três curtas-metragens de ficção científica que da Cruz desenvolve atualmente em parceria com a artista Fallon Mayanja. Desde 2021 e passando pela residência UmbigoLAB @ ArtWorks, na Póvoa de Varzim e Residência Walk & Talk Açores, em São Miguel, explora, através do vídeo, novas formas de pensar a vida transpondo fronteiras físicas, cronológicas e geográficas. Hydrophilic Bounds e Deep Sea Rising, apresentam uma série de histórias e reflexões poéticas associadas a mitologias marítimas como a lenda afrofuturista da chamada geração Drexciya, preocupações em torno das possíveis consequências da mineração em alto mar, abordando a temática do colonialismo, da extração de recursos naturais e do desenvolvimento tecnológico. Através do diálogo, que atravessa espaço e tempo, propõem a reflexão sobre a omnipresença da água e das suas propriedades como memória e testemunha.

Na sequência da Residência Pivô, que aconteceu no Brasil em 2023, surgirá o último filme desde projeto, desta vez ancorado na relação próxima e integrada com a natureza através de rituais do Candomblé ou das organizações sociais como o Quilombo que são simultaneamente resposta e voz de resistência.

Acompanhar a obra do artista Diogo da Cruz é perceber que a ficção — ou a criação de uma realidade alternativa — é sem dúvida um dos aspetos mais presentes e também mais potentes e cativantes no seu trabalho. Ainda assim, mais do que a ficção por si mesma na sua oposição à realidade, o que da Cruz nos apresenta é ainda uma outra coisa. Nos seus projetos, ao cobrir factos, dados e investigações com um véu de ambiguidade e incerteza, associando apenas algumas verdades, faz surgir a dúvida na perceção do espectador. Essa dúvida e essa confusão é o enlace do seu trabalho e a raiz da sua complexidade, procurando avidamente testemunhar o surgimento de uma mitologia contemporânea, na clivagem entre o conhecido e o muito que falta ainda conhecer. O espectador é convocado e está por sua conta e risco no embate com as múltiplas interfaces que nos apresenta e que questionam o estatuto da verdade e o seu papel legitimador do conhecimento e dos acontecimentos. Esta confusão fértil é regeneradora da autodeterminação e do pensamento crítico individual. Diogo da Cruz, um artista que faz uso de todos os media, estudou escultura nas Belas Artes de Lisboa e concluiu o Diploma na Academia de Belas Artes de Munique, onde se estabilizou (e é professor assistente desde 2018). Parte agora para Berlim e o futuro está em aberto.

 

Diogo da Cruz

 

Carolina Quintela (1991), curadora. É licenciada e mestre em Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e pós-graduada em Curadoria e Programação das Artes pela Universidade Católica Portuguesa. Desde 2015 que se dedica ao desenvolvimento de projetos curatoriais, investigação e produção de textos. É Curadora e Investigadora do MACAM: Museu de Arte Contemporânea Armando Martins.

 

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Diogo da Cruz, Looking up from underneath. Vistas da exposição no Forum Arte Braga onde foi também apresentado o filme Hydrophilic bounds, 2021. Fotos: Adriano Ferreira Borges.

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Diogo da Cruz e Fallon Mayanja, Deep sea rising. Vistas da exposição no festival Walk&Talk, Açores, 2022. Fotos: Mariana Lopes.


Notas:

[1] No livro Hydrofeminism: Or, On Becoming a Body of Water, 2012

[2] Também o escritor, filósofo e ativista indígena brasileiro, Ailton Krenak, defende a ideia da água não como recurso, mas como entidade. No seu livro Futuro Ancestral, sobre a água dos rios, diz-nos: “Nas noites silenciosas ouvimos sua voz e falamos com nosso rio-música. Gostamos de agradecê-lo, porque ele nos dá comida e essa água maravilhosa, amplia nossas visões de mundo e confere sentido à nossa existência. À noite, suas águas correm velozes e rumorosas, o sussurro delas desce pelas pedras e forma corredeiras que fazem música e, nessa hora, a pedra e a água nos implicam de maneira tão maravilhosa que nos permitem conjugar o nós: nós-rio, nós-montanhas, nós-terra. Nos sentimos tão profundamente imersos nesses seres que nos permitimos sair de nossos corpos, dessa mesmice da antropomorfia, e experimentar outras formas de existir. Por exemplo, ser água e viver essa incrível potência que ela tem de tomar diferentes caminhos.”

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