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Greenhouse: Pavilhão de Portugal/ Representação Oficial Portuguesa na 60ª Exposição Internacional de Arte de Veneza — La Biennale di Venezia 2024

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Paula Ferreira

 

Greenhouse: um Ensaio

 

Transpondo o hermetismo do espaço expositivo e a sacralidade da obra de arte, um jardim crioulo, que abriga um arquivo vivo, uma escola e assembleias, reestrutura a participação portuguesa na Bienal de Veneza em sua sexagésima edição, que decorre entre abril e novembro deste ano. Uma concepção transdisciplinar, GREENHOUSE é um projeto idealizado a partir do alinhamento de diferentes áreas do conhecimento artístico, por Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges e Vânia Gala. Dos princípios da transversalidade e da solidariedade radical, a representação nacional elaborada coletivamente entre uma artista visual, uma investigadora e uma coreógrafa oblitera certas hierarquias — entre curador e artista, natureza e cultura, pensamento e prática —, e aponta para aquilo que se pode imaginar como uma proposta artística para o futuro. 

Ancorada na transdisciplinaridade, a estrutura do projeto faz convergir prática, teoria, pedagogia e experimentação em ações que dialogam com o jardim crioulo concebido dentro do salão principal do Palazzo Franchetti. Cultivado pelos princípios da permacultura e da agricultura sintrópica e habitado por espécies botânicas que fazem referência à flora tropical, o jardim assume a forma de escultura e instalação em simultâneo, acolhendo em si as ações que compõem o projeto. Ao ativar-se através do encontro e da partilha, revive metaforicamente o que o poeta e escritor Édouard Glissant denominou “jardim crioulo” — conceito que assume uma dupla função em seu pensamento: por um lado, faz referência às hortas cultivadas por pessoas escravizadas, de maneira clandestina, como meio de subsistência (permeadas por uma diversidade de plantas que se protegiam mutuamente), e, por outro, representa um espaço de diversidade cultural, interconexão e diálogo fundamental à criação da identidade crioula.

Em GREENHOUSE, o jardim crioulo se transforma em um espaço central e de convergência de ideias, ações e presenças. A começar pelo Arquivo Vivo, iniciativa que explora o movimento, o som e a ação: através de uma instalação sonora que o habitará permanentemente, composta a partir de uma peça criada pelas três artistas-curadoras e por transmissões de rádio do projeto The Funambulist — plataforma de investigação que, por meio de podcasts e publicações impressas, se dedica às políticas do espaço e dos corpos; e pela performance Passa Folhas, um “arquivo vivo coreográfico”, criação de Vânia Gala em colaboração e escuta com outros artistas, que explora a ideia das raízes subterrâneas do jardim, que se interligam, misturam e entreajudam como forma de pensar os movimentos dos corpos em cena, e a posição “de cabeça para baixo”, ou “de pernas pro ar”, que articula relações com a cosmologia Kalunga e as suas imagens do mundo ancestral. 

Uma escola também será parte dessa proposta de questionamento da construção epistemológica do espaço expositivo. A partir do pensamento da historiadora militante Sónia Vaz Borges, será criado um programa de ações educativas e workshops, que também terão lugar no jardim crioulo, inspirados pelas experiências de educação militante levadas a cabo pelo Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), entre 1963 e 1972[1]. Enquanto estruturas mantidas nas áreas “libertadas” pelo partido, as escolas militantes formaram programas comprometidos e engajados na luta anti-colonial, os quais se sustentavam sobre três pilares: a formação política, a técnica, e a transformação dos comportamentos individuais e coletivos. Transportar essas ideias para a bienal significa repensar a arte enquanto espaço de aprendizado e conhecimento, concebendo programas que privilegiam o acesso às comunidades marginalizadas pelos sistemas normativos de educação, como as comunidades afro-diaspóricas, as populações migrantes e refugiadas e as pessoas com deficiências visuais e auditivas. Quatro momentos marcam essa vertente de GREENHOUSE: Walking Archives/Arquivos Errantes, Silent Speaking/Conversar com Silêncios, Futuristic Schools/Espaços de Educação Futuros e Grounded Soil/Solo em terra.

No primeiro, excertos de histórias e memórias de combatentes das lutas de libertação serão rememorados em uma leitura-performance, em que Apolo de Carvalho, Juliana da Penha e Sónia Vaz Borges caminharão pelo jardim, em meio a imagens e objetos de seus arquivos individuais, estabelecendo um espaço que se torna público através da partilha e da conversa. Silent Speaking/Conversar com Silêncios, a segunda ação, se concentra sobre a educação militante em diálogo com formas marginalizadas de comunicação em um workshop-discussão realizado em língua gestual, com materiais em escrita braille. No seminário liderado por Sónia Vaz Borges e Virgílio Varela, Futuristic Schools/Espaços de Educação Futuros, será proposta uma reflexão sobre a educação do futuro, a partir das três bases da educação militante, do Afrofuturismo enquanto estética cultural e da metodologia Dragon Dreaming, inspirada na cultura aborígene australiana. A última iniciativa resguardada pela escola construída por GREENHOUSE reúne um workshop/performance, em colaboração com Aderbal Ashogun, e uma palestra/discussão, com Ruth Wilson Gilmore, que visam meditar sobre as relações entre as lutas libertárias e os direitos da terra.

O programa de ativações se completa através das assembleias, que acontecem em meio às plantas, esculturas-canteiros e jardins verticais que crescem e cultivam o espaço, em permanente transformação. Nomeadas a partir das várias morfologias do jardim, Rizomas, Bolbo, Pólen, Biomas e Quintais convidam artistas, escritores, curadores de outros pavilhões, investigadores e o próprio público a criarem intersecções e redes de pesquisa e reflexão, em discussões que abrangem desde a música e a palavra falada como ferramentas poéticas de resistência e libertação, até ao papel de artistas-curadores e coletivos do “sul global” e das comunidades Afro-Diaspóricas na criação de redes de apoio mútuo.

Em GREENHOUSE, o jardim surge como um contraponto ao objeto fruto do gênio individual, a pedagogia se oferece enquanto uma prática artística, a criação coletiva sugere uma alternativa à individual, o discurso político atravessa o pensamento estético, o espaço expositivo é, simultaneamente, expandido e recriado, a separação entre criadores e público se dissipa, dentre outras instâncias dogmáticas que são superadas, revelando a sua própria obsolescência. Há um inequívoco mérito das proposições levantadas pelo projeto e, ainda, pela escolha deste para levar a produção artística nacional a um dos eventos de maior projeção no campo artístico.

Se, por um lado, essa participação vem para “apresentar (...) o país que somos hoje, com toda a sua riqueza e pluralidade”, como coloca Pedro Adão e Silva, o ex-Ministro da Cultura, em material direcionado aos media, por outro, ela dialoga de maneira contundente com a temática central desta edição do evento que, na chamativa frase “Estrangeiros por Todo Lado”, anuncia a sua (muito contemporânea) preocupação com a intensificação de fluxos migratórios e as políticas estatais que legislam sobre fronteiras e corpos. Resta analisar o que se encontra sublimado pelas entrelinhas da relação entre um projeto desse porte e a realidade material em que a Bienal de Veneza verifica-se.

 

Foreigners Everywhere!

 

“Sem todos esses escritores, teria sido preciso efetuar o retorno “ao País Natal” sem balizas, nem apoios, sem até mesmo esses vaga-lumes esparsos que nas noites azuladas guiam a áspera esperança dos viajantes perdidos.” [2]

 

Quando os escritores Jean Barnabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant escreveram Éloge de la Créolité, em relações dialógicas com as ideias de Aimé Césaire, Édouard Glissant, Frantz Fanon e outros teóricos decoloniais, sugeriram a Arte como o momento primeiro da afirmação identitária crioula, como o seu preâmbulo [3]. Neste livro-manifesto, publicado em 1989 pela editora Gallimard, os seus autores perscrutam o desenvolvimento da literatura Antilhana, apontando paralelismos com a formação do próprio povo martinicano após a colonização francesa — que, a partir de então, passa a ser marcado por uma alteridade. Manifestada através de uma espécie de “filtro” de exterioridade, se revela na escrita Antilhana (ou na sua pré-literatura, como o texto se refere) por meio do mimetismo da escrita francesa (a literatura da metrópole), fato denunciado pelos autores como a “condição terrível (...) de perceber sua arquitetura interior, seu mundo, os instantes de seus dias, seus valores próprios, com o olhar do Outro” [4].

Em Éloge de la Créolité, é a profunda poética da escrita que se revela capaz de ilustrar os mecanismos através dos quais a colonização não se restringe à dominação política e econômica dos povos colonizados, estabelecendo também uma relação de dominação cultural — criando “estrangeiros à própria consciência”, “deportados de si mesmos”. Superar essa dicotomia, romper com a expressão mimética, encontrar a si mesmo e afirmar uma identidade é tarefa realizada através da expressão artística, executada com o respaldo daqueles que vieram antes, que ensaiaram uma literatura Antilhana, ainda que permeada de exterioridade, os “vaga-lumes esparsos” que guiam uma “áspera esperança”. Apesar do manifesto ser inequivocamente válido para perceber diferentes processos históricos experienciados por outros povos colonizados, importa ressaltar que as proposições de seus autores não procuraram reivindicar um “universalismo da diferença”, mas perscrutar especificamente a criação da identidade crioula. O Outro, enquanto antítese do sujeito universal, é uma construção colonial — criar, portanto, um “universalismo da diferença” seria operar na mesma lógica dominadora.

No livro, Jean Barnabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant afirmam o princípio de não resistir às multiplicidades que constituem a identidade crioula, tal qual “o jardim crioulo não resiste às formas dos inhames que o habitam [5]”. GREENHOUSE parece se nutrir da mesma imagem poderosa: a de raízes que, sob o solo, constroem redes vitais de entreajuda e protegem umas às outras. É na multiplicidade dos agentes que dão vida ao projeto, na sua ramificação em diferentes vertentes do trabalho artístico e na vivacidade com que desafia as epistemologias do meio que parece ensaiar [6] novos futuros, que se projetam a partir de uma prática engajada em repensar modos de produção, reprodução e valorização de conhecimentos. Na noite não tão azulada da contemporaneidade, são essas propostas também “vaga-lumes esparsos”.

 

Greenhouse


 

 

Nota da autora:

 

 

“Um exercício decolonial é imaginar formas diferentes de exposição e representação, é fazer exercícios de especulação fictícia. Não se permitir esse exercício é admitir que o mundo é imutável. Criar utopias emancipatórias dentro da tradição daqueles que os/as dominados/as alimentaram desde sempre permite agir e tornar possível o que todos acreditam impossível.” [7]

 

Alcançar os futuros iluminados por esses vaga-lumes é, entretanto, um trabalho que não se realiza apenas internamente. Para além da importância daquilo a que Françoise Vergès chama de “utopias emancipatórias”, há um horizonte de estruturas que precisam ser desmanteladas — nomeá-las é um início possível para esse longo processo. Em uma passagem presente em seu último livro publicado, Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta, a cientista política descreve como há certos discursos, reproduzidos inclusive por instituições culturais, que encerram os grupos e sonhos anti-coloniais no passado, mascarando as colonizações em curso hoje e a emergência de processos verdadeiramente decoloniais. A ilusão que esse argumento perpetua é facilmente percebida quando tomamos como exemplo a Bienal de Veneza.

Projetando um posicionamento alinhado às aspirações decoloniais da contemporaneidade, nesta edição um espaço fundamental se abre a projetos cuja força disruptiva faz com que há não muito tempo atrás fossem inimagináveis, como GREENHOUSE mas também outros, dentre a participação brasileira, que leva a artista indígena Glicéria Tupinambá, com curadoria de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana e com a renomeação do pavilhão para Pavilhão Hãhãwpuá, e a representação da Espanha pela artista peruana Sandra Gamarra. É paradoxal, no entanto, que a mesma instituição seja responsável por invalidar publicamente um apelo, assinado por mais de vinte mil trabalhadores da cultura [8], pela exclusão do pavilhão de Israel, face às contingências atuais e ao processo em curso que acusa o país de genocídio contra o povo palestino. Ainda que não haja exemplo mais flagrante de um processo de colonização em curso hoje do que a ocupação da Palestina, as palavras de ordem replicadas nos statements da bienal não parecem ecoar tão longe.

Decolonizar o passado é, claramente, mais fácil do que decolonizar o presente e, por mais que queiramos estabelecer a arte contemporânea como o território do discurso decolonial, há o falso universalismo de certas instituições culturais (dentre as quais, a bienal de Veneza) que interrompe tal expectativa. Que sublima tão bem a sua complacência com o capitalismo racial sob discursos floreados, com retóricas vazias, a ponto de torná-la quase invisível — ou deixá-la tão discreta que não sabemos o que fazer com ela, como denuncia Françoise Vergès. Contrariando esses mecanismos, vamos, aos poucos, aprendendo a diferenciar os verdadeiros vaga-lumes das lanternas que, no breu, confundem a vista.

 

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Em 2023, realizou a curadoria da exposição Bandeira Branca, na Galeria Irmã Feia, e o ciclo de cinema Escrever a Liberdade, no Museu do Aljube. É assistente curadora na Anozero: Bienal de Coimbra, edição de 2024.

 

Este texto foi escrito em português do Brasil.

 




Imagens: Mónica de Miranda, Routes to the roots, 2024, impressão em jato de tinta em papel de algodão, 100x66 cm; Creole Garden, 2024, impressão em jato de tinta em papel de algodão, 120x80 cm; Greenhouse, 2024, impressão em jato de tinta em papel de algodão, 100x66 cm; Crossing, 2024, impressão em jato de tinta em papel de algodão, 60x40 cm. Todas as imagens: © Mónica de Miranda. Cortesia da artista.


 



Notas:

[1] The PAIGC’s Political Education for Liberation in Guinea-Bissau, 1963–74, VAZ BORGES, Sónia; disponível aqui

 

[2] L’éloge De La Créolité: Para Uma Tradução Crioula, DA SILVA BEIRA, Dyhorrani, p. 106; disponível aqui

 

[3] Ibid., p. 117.

 

[4] Ibid., p. 103.

 

[5] Ibid., p. 116.

 

[6] Em Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta, Françoise Verger se refere ao termo “ensaio” a partir de uma citação de Abolition Revolution, de Aviah Sarah Day e Shanice Octavia McBean: “O programa de desordem absoluta é um programa de “ensaios de vida”, (...) de práticas que dão corpo à ideia de liberdade pela alegria, ao amor revolucionário e à solidariedade, sem os quais é impossível superar as divisões fomentadas pelo racismo.”

 

[7] Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta, VERGER, Françoise, p. 52. 

 

[8] O apelo aqui referenciado é a iniciativa ART NOT GENOCIDE ALLIANCE.

 

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