Pedro Vaz: Uma pedra, um ser
Não será rigoroso descrever a exposição Uma pedra, um ser de Pedro Vaz (1977, Maputo, Moçambique), na Fundação Leal Rios, como uma pequena antológica do trabalho do artista, mas um olhar retrospectivo e agregador atravessa-a. Passado o tempo, eis um olhar sobre o que se fez.
Com efeito, encontramos peças de anos diferentes que, agora reunidas numa montagem sensível à luz, ao som e à imagem (a curadoria tem a assinatura da curadora catalã Rosa Lleó), nos dão a ver um trilho discreto, mas continuado e solitário.
As questões que Pedro Vaz persegue e coloca ao espectador permanecem, razoavelmente, as mesmas: as experiências do corpo e com o corpo na paisagem, o uso poético e analítico de diferentes linguagens (a pintura, o vídeo, o acto performativo), uma reflexão intuitiva sobre o conhecimento, a observação e a percepção e, finalmente, uma atenção holística ao mundo natural como este lhe (e nos) aparece.
Há algo em Uma pedra, um ser que sobressai com mais clareza: as obras providenciam uma hermenêutica à volta da história da colonização portuguesa no Brasil (no vídeo A Natureza do Dislumbre, de 2022), interrogam, mais decididamente, a dicotomia cultura/natureza (Morto, de 2004) e põem em jogo a dialéctica da arte com o vocação epistemológica das ciências naturais (mediante a presença de um objecto óptico, o Theodolite).
Esta hermenêutica situa Pedro Vaz entre o legado da land art e as preocupações e ansiedades destes tempos, entre os gestos realizados pelos artistas na paisagem e no espaço e o modo como outros artistas procuram, hoje, trazer o ciclo biológico da natureza ao espaço da arte. Esta posição intermédia proporciona-lhe uma posição distanciada, mas não afastada dos temas que se tornaram proeminentes na esfera de uma certa arte contemporânea.
Persiste uma reflexão marcada pela dúvida, sem prescrição ou programa. O artista capta imagens, desenha mapas, mede espaços, pinta, desenha. Narra as suas jornadas. E dá-nos a ver, a ouvir e a ler. Pense-se na obra A Natureza do Deslumbre: as imagens do Caminho do Ouro[1], trajecto que o artista percorreu em 2016, entre o porto de Paraty e a cidade de Ouro Preto, no Brasil, vão aparecendo e desaparecendo sob o nevoeiro da fotografia. São reminiscentes da fotografia de paisagens dos finais do século XIX (em especial, as realizadas no Norte da América, mas o que vemos não são as paisagens grandiosas que inspiraram (em muitos fotógrafos da mencionada época) a força do sentimento do sublime.
São caminhos, árvores, arbustos, plantas. Em algumas imagens, intuímos a passagem e acção dos humanos na terra, a violência por estes exercida, noutras testemunhamos o regresso lento, e, contudo, imparável, dos liames da natureza. Uma voz narra a expedição que não é a de um colonizador ou de um aventureiro, mas a de um artista. O espanto de Pedro Vaz não pode ser o mesmo: é outro, silencioso, condicionado pelo conhecimento da história e da construção de conceitos humanos (como são a paisagem).
É nessa e dessa consciência que o artista desnuda uma condição: a da sua vulnerabilidade face ou dentro da natureza. Isso encontra-se presente numa das maiores obras da exposição: trata-se do vídeo Terra Firme (2016), realizado no interior da floresta amazónica. Pedro Vaz coloca-nos na posição do observador, mas não conseguimos ver quase nada. Escutamos apenas sons, e vemos manchas verdes cujos contornos nos escapam. Sabemos que um corpo esteve ali — o do artista — mas não sabemos, nós os espectadores, o que estamos a ver. A experiência pode ser a de um transe, de uma confusão persistente ou de pura impotência. Não capturamos aquelas formas, isto é, não as vemos, mas sabemos que elas estão ali, que alguém as fez.
Estas imagens não deixam de ser sedutoras, sem conforto ou consolo. O efeito pode ser hipnótico antes de se revelar desconcertante. E ao fim de 15 minutos, o espectador perde a sua posição no espaço. Desequilibra-se. Um parentesco liga este trabalho com outro menos visto, o surpreendente Dead (2004), no qual Pedro Vaz explora a natureza e a percepção da imagem recorrendo a uma sucessão de fotografias animadas. Alguma coisa acontece no vídeo que temos dificuldades em identificar: uma alteração na paisagem, a transformação do corpo, o desaparecimento de um ser, o fenómeno cíclico do regresso da matéria à sua origem? Neste trabalho (onde se percebe a potencialidade artística, conceptual e estética de Pedro Vaz), murmura uma meditação melancólica sobre a fugacidade que entra em diálogo com a história da arte.
Antes de chegarmos a estas obras, já passámos pela peça intitulada Contextual Table. Passado o tempo, o artista deixa-nos ver algo do que fez em termos de processo. Sobre uma mesa vemos objectos e obras que constituem uma espécie de atlas íntimo das investigações de Pedro Vaz e remetem para outros momentos de um percurso: mapas, uma maqueta, um livro de artista, ramos, pedras. Deste olhar cimeiro — que forma uma constelação autoral e arqueológica — chegamos a duas singularíssimas peças: Caixa de Espaço (2016) e Janela Coaxial. Em ambas, a relação do corpo com o espaço e a fusão da cultura na natureza vai-se deslocando para a experiência da solitária da imagem, sem que o artista envolva o visitante numa experiência imersiva e estetizante. Na verdade, mesmo se isso possa acontecer, ele deixa à mostra o aparato técnico/tecnológico que as produz. As imagens encantam, mas não nos enganam.
A peça que culmina a exposição chama-se Lugar (2016-2024) e resulta de um acto performativo realizado por Pedro Vaz. O artista transportou uma pedra do Parque Natural da Serra da Arrábida para a exposição e colocou-a sobre um plinto da madeira. Poder-se-ia interpretar o gesto como tendo algo de ritualístico, reenviando-nos para um lugar de culto, quase primordial. Mas ficamos a saber que a sua presença viva, na exposição, é provisória. A pedra — ali feita escultura — regressará ao seu lugar de origem: a Natureza.
José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon (suplemento do jornal Público), Contemporânea e Ler].
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
Pedro Vaz: Uma pedra, um ser. Vistas da exposição na Fundação Leal Rios, Lisboa, 2024. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Fundação Leal Rios.
Nota:
[1] Caminho pelos escravos entre os séculos XVII e XIX, conhecida também como Estrada Real.