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Mariana Vilanova: Na Faina do Argaço

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Andreia C. Faria

 

Ver, Perder de Vista

 

 

"Habituamo-nos a ver através de lentes; é uma

competência que se adquire."

Annie Dillard[1]

 

 

Num breve ensaio de título simples e denotativo, «Lentes», a escritora Annie Dillard, referência da tradição norte-americana da nature writing, descreve as suas brincadeiras juvenis com um microscópio que usava para observar gotas de água do lago com restos de algas e rotíferos, invisíveis a olho nu. Acontecia que a potência de uma lâmpada improvisada secava a água e queimava as criaturas, e a jovem Annie recomeçava com novas amostras de água do lago que teriam o mesmo fim.

Nenhum do sadismo apaixonado do primeiro olhar pode ser imputado ao filme Na Faina do Argaço, de Mariana Vilanova. Aqui, a lente sustenta a estranha beleza das algas e a centralidade destes organismos na memória e na sobrevivência ritual da comunidade piscatória da Apúlia. Mais do que isso, a lente ressitua o tema de Vilanova à luz da relação e das políticas do olhar entre espécies.

Prática ancestral, a apanha do sargaço para adubo dos campos agrícolas e para usos medicinais foi sendo aperfeiçoada ao longo dos séculos através da experiência, do conhecimento e das crenças populares das comunidades de sargaceiros do Norte de Portugal. Sem nunca ‘queimar’ por aproximação excessiva aquilo que observa, a lente de Mariana Vilanova capta sobretudo em plano aberto ou médio os movimentos dos apanhadores de sargaço que, com a paciência de mestres, identificam e apanham estas algas. Fá-lo com óbvias referências plásticas — as marinhas, claro, mas também as respigadoras de Millet ou os ceifeiros de Bruegel — e gestuais da pintura a óleo: a cadência do mar, os nevoeiros, os próprios trajes dos sargaceiros, a luminosidade do dia ou as lanternas e faróis que quebram a noite adquirem espessura e brilho afins à pintura.

Reforçando a historicidade do tema, as marés, a cadência da espera, as brumas e os cânticos concitam os ritmos da natureza e remetem para uma ancestralidade que se homenageia, mas apenas na mesma medida em que se pode retomá-la como hipótese de futuro. Na luz branca de um laboratório, isolado do seu habitat e exposto à minúcia dos microscópios, o sargaço surge como objecto de estudo científico de um filme dentro do filme. É aí, no espaço especular do laboratório e na fotografia de arquivo, que se engendram as possibilidades de uma relação mais-que-humana[2] entre pessoas e algas e, mais do que isso, o descentramento do olhar de que falávamos acima.

Aqui, permitam-me um breve excurso. É certo que as relações da humanidade com os restantes habitantes terrenos assumem, ultimamente, um tom punitivo ou mesmo apocalíptico. O Antropoceno, nova era geológica instaurada pelo impacto da actividade industrial sobre o planeta, é confuso, a começar pelo facto de que, oficialmente, nem sequer existe[3], embora já se sinta na pele, ou melhor, se pressinta — o arrepio do futuro que se esgota, o bafo aberto dos meses mais quentes de que há registo, a incipiente culpa em todos os prazeres que dávamos por inocentes. Chegámos, além disso, ao ponto em que as palavras para a mudança de paradigma, elaboradas sobretudo no âmbito da academia de língua inglesa, tanto podem ajudar-nos a pensar como ameaçar-nos de imobilidade, por serem incompreensíveis fora do seu contexto de estudo. Talvez que, quando a realidade é complexa, as palavras devam manter-se íntegras e acessíveis. Talvez as coisas devam ser ditas a partir de um olhar tentativamente inicial.

Parece-me ser precisamente isso que, sem quaisquer pretensões a tal, faz uma obra como Na Faina do Argaço. Combinando mitologia e ciência, ensaiando possíveis relações entre práticas comunitárias tradicionais, o conhecimento técnico e científico do laboratório e a memória do arquivo, o filme ensaia um olhar primeiro sobre os seus protagonistas — as algas e a comunidade que as recolhe do mar e devolve à terra, num círculo perfeito. E arrisca as perguntas que comportam outras formas de ver: Porquê olhar as algas? O que se perde em mistério e opacidade para se ganhar em compreensão? Como beneficiar estes/destes organismos de nome áspero e aspecto híbrido (o sargaço parece ao mesmo tempo um ser vivo e morto, vegetal e animal, belo como jóias ou então um pequeno monstro) aos quais as comunidades costeiras do Norte confiavam até há pouco tempo a fecundidade das suas colheitas? Como falar do que não fala? Como inquirir o não-humano? Terão as algas uma linguagem? Terão algo para nos comunicar? E se, como sugeriu Derrida, o animal respondesse?[4] Para esta escuta, não só o texto de Francisca Soares e Mariana Vilanova e os cânticos dos sargaceiros contribuem — a sonoplastia de Francisco Oliveira assume a inusitada capacidade de inventar uma ‘voz’ para o sargaço, ao mesmo tempo timorata e averiguativa, delicada e curiosa, viva. Se o olhar interroga, as algas parecem responder-lhe com novas perguntas.

Na Faina do Argaço é um filme comissariado pelo Batalha Centro de Cinema. Depois de ter sido mostrado em sala, é apresentado numa exposição que ocupa o Foyer e a Sala Filme. Neste último espaço o filme está integrado numa instalação site specific que prolonga a cinematografia através de caixas de luz e de um mobile iluminado, constituído por diferentes espécimes de sargaço e por lupas, agora como que objectos abandonados ao fundo de um gabinete de curiosidades. Sintomaticamente, no ensaio de Dillard, é quando a escritora, já adulta, munida de binóculos, perde de vista o seu objectivo que este (um casal de cisnes em voo) entra sem aviso no seu campo de visão.

 

Batalha Centro de Cinema

Mariana Vilanova

 

Andreia C. Faria nasceu no Porto, em 1984. Publicou Flúor (Textura Edições, 2013), Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015) e Tão bela como qualquer rapaz (Língua Morta, 2017, Prémio SPA Poesia 2018). Em 2019 publicou Alegria para o fim do mundo (Porto Editora, Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2019), volume que reúne todos os livros anteriores. Em 2020 publicou o conjunto de prosas Clavicórdio (Língua Morta), em 2022 Canina (Tinta da China, Prémio PEN Clube) e em 2024 Canto do Aumento (Sr. Teste).

 

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

 



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Mariana Vilanova: Na Faina do Argaço. Still do filme e vistas da instalação no Batalha Centro de Cinema, Porto, 2024. Fotos: Neva Films/Batalha Centro de Cinema. Cortesia da artista e Batalha Centro de Cinema. 

 


Notas:

[1] Annie Dillard, «Lentes», in Ensinar Uma Pedra a Falar, Antígona, Lisboa, 2023, p.115. (Trad. Inês Dias.)

 

[2] Termo cunhado por David Abram no livro The Spell of the Sensuous: Perception and Language in a More-Than-Human World (Vintage, 1997) para referir os diferentes seres que coabitam a terra, cujos mundos incluem e excedem as sociedades humanas. O conceito reconhece que os humanos não habitam sozinhos a Terra e devem por isso entender-se como parte colaborativa e interdependente de uma rede de outros seres e habitats.

 

[3] «Geologists reject the Anthropocene as Earth’s new epoch — after 15 years of debate», in Nature, 6 de Março de 2024, <https://www.nature.com/articles/d41586-024-00675-8>.

 

[4] Ver The Animal That Therefore I Am (Fordham University Press, 2008). A partir da pergunta «How can an animal look you in the face?», Derrida problematiza a tradição filosófica que instaurou uma linha divisória entre o humano e todas as outras espécies, reduzidas à categoria de «animal».

 

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