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Nuno da Luz: Airs

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Valerie Rath

 

Na sua exposição individual Airs, patente na Galeria Vera Cortês, o artista português Nuno da Luz trabalha com suportes audiovisuais de uma simplicidade notável, intensificando, assim, pela redução de meios, o valor simbólico que se lhes associa. No entanto, pode discutir-se esta mostra num enquadramento mais alargado do que aquele que se cinge puramente à imanência da obra, sublinhando-se a questão da representação e da focalização da atenção. Uma vez que esta exposição também é sobre a Palestina, é precisamente este "também" que gostaria de abordar. Além disso, trata-se de uma exposição que me faz pensar em esperança, naquilo que a nutre e lhe dá continuidade, e no papel que desempenhamos para tal. Mas comecemos pelo início.

Ao entrar na exposição Airs, ouve-se um ruído muito alto — um ruído cujo volume inquieta, mas cujo carácter o torna tolerável. Este barulho consiste em várias tonalidades que se fundem, inundando, assim, a sala. É difícil orientarmo-nos no espaço, já que qualquer outra forma de perceção sensorial é abafada pelo ruído, pelo que se torna necessário encontrar, em primeiro lugar, a origem do som para começar a perceber o que se passa.

E a origem é um pequeno órgão infantil pousado no chão com um seixo a pressionar uma oitava de Sol a Fá, produzindo um fluxo de ar que emite aquele som.

Por outro lado, a particularidade mais visual da exposição consiste num conjunto de seis mastros de bandeiras que se projetam das paredes da Galeria Vera Cortês. As bandeiras que vemos penduradas nas pontas não pertencem a qualquer nação, tratando-se antes de mantas de resgate — douradas de um lado e prateadas do outro. Em cada uma destas bandeiras pode ler-se um poema escrito em tinta acrílica preta: no lado dourado no idioma em que o artista o leu pela primeira vez, e no lado prateado na sua tradução em português. São seis poemas no total, cada um escrito por ume escritore palestianiane da diáspora.

Zaina Alsous, Dareen Tatour, Fady Joudah, Fadwa Tuqan, Mosab, Abu Toha e Naomi Shihab Nye: Nuno da Luz dedicou uma Sunbird [nectarínia] a cada um deles.

Sunbirds é o nome da série; e a nectarínia é um dos símbolos nacionais da Palestina, representando a resiliência e, sobretudo, a esperança da liberdade daquele povo.[1] Nuno da Luz dedica uma bandeira a cada ume destes autores, cujos poemas também falam de pássaros e do seu canto, espalhando-se e reverberando pelo ar, e dos momentos em que sucumbem sob a zoada dos drones; e, ainda assim, continuam a cantar.

E, de repente, a exposição fica em silêncio: o órgão para. O silêncio reconquista o espaço e amplifica o suave rumorejo das bandeiras oscilantes, que agora se torna o único ruído percetível. Este silêncio, que fora inicialmente um momento de alívio, vai-se agigantando, segundo a segundo, alcançando progressivamente a intensidade do ruído anterior — ou talvez até a excedendo.

 

 

Nuno da Luz joga com um sentido de presença representacional, mas, de facto, a força da sua obra também provém de um ausente contrastado: daquilo que não se consegue ver, tocar ou ouvir, mas que persiste no ar.

Porém, ainda que esta subtil inter-relação entre a presença e a ausência favoreça a expressão artística da exposição, também contém as suas dificuldades no que toca ao contexto global desta apresentação e à forma como a sua atenção se distribui. Afinal, a atenção é uma mercadoria escassa e valiosa, pelo que a sua alocação se torna um assunto de importância maior — especialmente quando se fala da Palestina, e especialmente agora.

O facto de que Nuno da Luz, um artista português, dá uma plataforma à Palestina numa instituição artística como a Galeria Vera Cortês é uma coisa positiva, ainda mais porque tem sido uma notável raridade ao longo dos últimos meses na cena (artística) institucional ocidental. No entanto, não pode ignorar-se o facto de se tratar de uma representação de uma identidade que se situa no exterior desta, pelo que se exige grande cautela. Ainda que Nuno da Luz apresente seis autores palestinianes através das palavras de cada ume, a contextualização da exposição, em particular o texto curatorial de Carolina Jiménez — muito bem escrito, diga-se —, dirige a atenção para a interpretação artística daquela representação. Se o propósito é fazer uma exposição sobre a Palestina, então que seja sobre a Palestina. Doutra forma, corre-se o risco de que a própria identidade que se pretende representar se torne um medium da expressão do artista.

Atentemos, assim, na Palestina: na história de ocupação colonial do estado de Israel; no genocídio levado a cabo por Netanyahu e pela administração extremista que encabeça; nos mais de 49 000 palestinianos assassinados até à data; nos feridos, em número ainda maior; e nos que ainda sobrevivem, que continuam resilientes, que têm esperança.

Neste ponto, a exposição tem algo de muito valioso: ao utilizar o símbolo da bandeira nacional sob a forma de mantas de resgate, ao integrar poemas de autores da diáspora palestiniana, e ao dar o título Sunbirds a esta série, Nuno da Luz não só ilustra a situação de emergência que este povo vive atualmente como também a vincula à história de deslocações forçadas e, ao mesmo tempo, à resiliência e esperança de persistir que o caracterizam.

A nectarínia palestiniana simboliza não apenas a esperança em geral mas sobretudo a esperança em relação a um lugar, uma geografia, um habitat. A esperança pode ser um sentimento universal; mas uma esperança que se pretenda decolonial, como no caso da Palestina, estará sempre ligada a um lugar: uma terra, uma pátria. O lugar importa, a terra importa — sobretudo numa história colonial. A terra configura a base da interação humana e enforma a nossa identidade de tal forma que dela se torna indissociável. E, ainda que hoje a esperança mais urgente seja a de alcançar o cessar-fogo e de permitir aos palestinianos sair da zona militar de Gaza, a esperança a longo prazo, pelo contrário, centra-se na liberdade e na capacidade de aquele povo escolher permanecer neste mesmo lugar.

O conceito de geografias da esperança[2] a que aqui me refiro surge em direto contraste com o entendimento utópico da esperança deslocalizada. Naquele âmbito, a esperança compreende-se nos contextos de seis dimensões distintas: o lugar, a aliança, o impensável, a perseverança, a resiliência e o (im)possível.

O lugar é o chão sobre o qual se caminha, um ponto de partida para formular a esperança; e, para a Palestina, é também onde aquela esperança culmina.

A esperança alimenta alianças decoloniais que se opõem à norma colonial que persiste no interior e no exterior das diferentes geografias. Estas alianças podem motivar as pessoas a procurar compreender-se e às suas vidas de forma diferente, partindo de uma posicionalidade que as desloca da periferia para o seu próprio centro.

A dimensão do impensável situa-se no domínio da consciência coletiva que imagina um mundo "de outra forma" por via do desvelamento de relações ocultas do passado, de forma que aquilo que é aparentemente impensável se torne pensável.

A perseverança configura a dimensão que se orienta a partir do aspeto temporal da continuidade de seguir em frente em conjunto, aconteça o que acontecer.

A perseverança torna-se resiliência pela ação. "Dizer «não» a leis, processos e enquadramentos danosos, como tal, é um pré-requisito para dizer «sim» ao que nos traz esperança."[3] Num contexto decolonial, recusar é emancipar. No entanto, esta recusa tem de se basear na possibilidade de se desenvolverem relacionalidades alternativas.

Tudo isto leva à dimensão (im)possível que alberga todos os Outros e que os converte em ação. Este domínio da esperança está alicerçado em políticas justas, antirracistas e anticoloniais através da praxis: a construção de relações entre cada um de nós e o mundo a partir destas políticas, e a produção e comunicação de conhecimento em torno destas relações.

Portanto, falando sobre as esperanças da Palestina a partir de um contexto ocidental, a esperança a curto prazo revela-se urgente e forçosa no sentido de alcançar um cessar-fogo imediatamente, e trata-se sobretudo de uma esperança para o povo palestiniano. A esperança a longo prazo, porém, exige persistência e atenção ininterrupta porque é uma esperança holística que pretende desmantelar o sistema colonial e as narrativas que se foram construindo (dentro e fora deste enquadramento) ao longo de mais de um século. O enfoque está no povo palestiniano, mas sobretudo nas suas condições de vida, em que se incluem a natureza, o ambiente e a terra da Palestina, bem como a capacidade de os palestinianos construírem a sua identidade em estreita proximidade com o mundo em que vivem. Esta esperança pede-nos que intervenhamos — que confrontemos e contestemos as estruturas colonialistas em que crescemos para que também consigamos desmantelá-las. E isto implica ouvirmos os palestinianos, as histórias que nos contam sobre o seu passado, as suas realidades presentes e os sonhos que têm para o futuro. Talvez a esperança esteja no ar, mas é preciso que se materialize — e que cada um de nós, no nosso íntimo, a ponha em ação.

 

Nuno da Luz

Galeria Vera Cortês

 

 

 

Valerie Rath é uma produtora cultural e curadora austríaca com formação acadêmica em história da arte e gestão artística e cultural. Atualmente vive em Lisboa. Desde abril de 2024 trabalha como curadora interna da DUPLEX_AIR. A sua prática curatorial é motivada por uma profunda curiosidade sobre a influência das narrativas passadas nas nossas capacidades colectivas e individuais de imaginar mundos futuros — e como as intervenções artísticas podem expandir essa imaginação.

 

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro, revista pela editora.

 

Versão original EN aqui.

 




Nuno da Luz, Airs. Vistas da exposição na Galeria Vera Cortês, Lisboa, 2024. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Vera Cortês. 

 


Notas:

 

[1] Foi declarada ave nacional da Palestina em 2015, ano em que Israel tentou, sem sucesso, rebatizar a espécie.

[2] Hazlewood, J. A., Middleton Manning, B. R., & Casolo, J. J. (2023). Geographies of Hope-in-Praxis: Collaboratively decolonizing relations and regenerating relational spaces. Environment and Planning E: Nature and Space, 6(3), 1417-1446. https://doi.org/10.1177/25148486231191473

[3] Daigle M, Ramírez MM (2018) Decolonial geographies. Antipode: 1–7. Disponível em: http://depts.washington.edu/relpov/wordpress/wp-content/uploads/2019/01/DaigleRamirez2019.pdf (consultado em 27 de julho de 2024).

 

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