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Lisbon Roundup #13

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Isabel Nogueira

No começo era o corpo. No final também. A percepção e sensibilidade do mundo passa inevitalmente pelo nosso corpo e pela complexa subjectividade que ele – corpo – in(corpo)ra. O que vemos, o que escutamos, o que a nossa pele recebe, a altura que temos e que, por conseguinte, nos posiciona num determinado ponto de vista, enfim, a nossa relação com o mundo é mediada, numa primeira instância, pelo corpo. Esta é, talvez, uma das poucas verdades mais ou menos universais. Para este RoundUp escolhemos duas exposições que, por um lado, tomam o movimento e o corpo nas suas várias potencialidades e acepções como mote; por outro, acabam por se destacar devido a alguma surpresa e singularidade que trazem para o panorama artístico, certas vezes, desejavelmente mais surpreendente.

 

João Fiadeiro:

Introspectiva: Restos, Rastros e Traços

@MAC/CCB

 

João Fiadeiro (n. 1965) é um dos mais reconhecidos bailarinos e coreógrafos portugueses, cujo trabalho começou a desenvolver no final dos anos 80, no contexto da chamada Nova Dança Portuguesa, movimento no qual se destacaram outros criadores, tais como Vera Mantero, Francisco Camacho, Paulo Abreu, Paulo Ribeiro, Clara Andermatt ou Carlota Lagido. Em 1990, Fiadeiro fundou a sua própria companhia, a RE.AL e, entre 2004 e 2019, foi director do Atelier RE.AL, que se tornaria num relevante espaço de trabalho, pesquisa e colaborações diversas. Esta exposição ocupa três galerias do MAC/CCB e é composta por duas partes. A primeira, teve subjacente a ideia de estaleiro, que tornou visível ao espectador a construção da exposição em causa. A segunda parte reporta-se especificamente à exposição, dividida em quatro partes. O eventou foi ainda acompanhado por um pequeno ciclo de coreografias de Fiadeiro, sob o título Dar o Corpo. O que de imediato nos chama a atenção é o facto de se tratar de uma exposição que parte da dança, ou, se preferirmos, a dança é exposta.

O entendimento da dança como próxima de uma arte total, portanto, incorporadora de linguagens relativamente complexas e com introsamento de suportes variados, num território de “campo expandido”, reporta-se ao próprio movimento do modernismo e da sua necessidade ontológica de inovação, expansão e de não condicionamento. Tal como a pintura, a dança desejou abandonar — literalmente — uma corporalidade tradicional e aventurar-se por outros territórios e sensibilidades. São conhecidas, neste âmbito, as acções, tanto na Europa como nos Estados Unidos da América, de Loie Fuller, Isadora Duncan, Mary Wigman ou Martha Graham. No pós II Guerra Mundial, o entrosamento da dança com as artes plásticas tornar-se-ia cada vez mais consistente, destacando-se, por exemplo, Merce Cunningham e os trabalhos que desenvolveu com  John Cage, Andy Warhol, Jasper Johns ou Robert Rauschenberg, num contexto do movimento da neovanguada exploratória. Pelos anos 80, surgia a designada dança pós-moderna norte-americana, por exemplo, com Trisha Brown, com quem, de resto, Fiadeiro faria formação. Seriam então definitivamente questionadas as bases técnicas tradicionais da dança, também como resultado da performance — que surgira como género autónomo nos anos 60 —, do improviso, da necessidade de vivenciar o momento do espectáculo, contra a padronização e numa abertura de  imensas possibilidades operativas e desafiantes. É deste filão que desejamos partir.

Na verdade, a dança é o corpo a desenhar no espaço. O corpo é transformado em pincel ou lápis que se movimenta em determinada cadência, ou quebra dessa mesma cadência. O movimento permite ao corpo abandonar, mesmo que provisoriamente, os seus limites fomais e estáticos, perpetuando uma possibilidade de expansão. Este é, talvez, um dos apectos mais sedutores e singulares da dança. A possibilidade de incorporar na dança outras liguagens, concretamente através do desenho no papel que resulta do movimento, da instalação de objectos que fizeram parte constitutiva de determinado espectáculo ou de determinada memória relevante, como o Atelier RE.AL, são a matriz que conduz o olhar e o corpo do próprio espectador, que, de algum modo, também faz parte integrante de um movimento contínuo, sempre em renovação.

O núcleo formado pela instalação que reúne objectos variados e de diversas dimensões evocaticos/provenientes do Atelier RE:AL é dos melhores do conjunto. O tempo é REAL, pelo facto de ser efectivamente vivido e materializado em criação. Neste sentido, o tempo nunca é pretérito; é sempre presente. Aliás, parte destas peças vem também do período processual e de estaleiro da exposição. Por entre pequenos ecrãs, lápis de desenho, artefactos de costura, imagens fotográficas, cassetes de vídeo, um cartaz chama a nossa atenção. «I would prefer not to» está escrito nele e, como se sabe, são as palavras de consciente não-acção repetidas pelo escrivão Bartleby, funcionário de um gabinete de advogados de Nova Iorque e protagonista da obra Bartleby, the scrivener: a story of Wall Street (1853), de Herman Melville. Neste texto o narrador descreve o seu mais recente funcionário como «(…) o escrivão mais estranho que alguma vez vi ou de que ouvi falar», ou ainda como «(…) um jovem pálido e asseado, com um ar respeitável mas que inspirava compaixão (…) um copista de aspecto tão singularmente calmo». Inicialmente cumpridor e eficiente, Bartleby começa a reusar o trabalho que lhe é solicitado, isto é, inicia um processo consciente e voluntário de não-acção.

Parece-nos ainda oportuno, a este propósito, localizar a Nova Dança e o seu legado, também, por vezes, como um não-fazer. Ou seja, um não-dançar no sentido tradicional, um não-seguir totalmente um roteiro, um não-contemplar determinada técnica clássica, ou mesmo, simplesmente, um não-movimento, a recusa do movimento, ou seja, a recusa da dança como a própria possibilidade da dança. Este aspecto afigura-se possivelmente contraditório e especulativo, dando lugar a uma metafísica da dança ou a uma metalinguagem da dança. E, claro, neste propósito a dança é um lugar de possibilidade transcendental, quando, afinal, parecia ser absolutamente corpórea e circunscrita.

Os núcleos “Rastros” e “Traços” são instalações que reúnem um sortido de objectos relacionados com produções de João Fiadeiro, mas, tal como em “Atelier RE.AL”, convidam a permanecer, como se o espectador estivesse em sua casa, por intermédio de objectos também reconhecíveis, como televisores, poltronas, plantas, objectos decorativos, carpetes, ou fotografias destes projectos de Fiadeiro, captadas por Patrícia Almeida. Há uma intimidade partilhada com quem passa e olha estes lugares de trabalho e certamente também de afectos.  

 Finalmente, há um outro núcleo que nos desperta particular interesse. “Restos” é o conjunto que estabelece uma relação com a obra de Helena Almeida, à qual a própria artista também se refere no documentário Pintura habitada, realizado por Joana Ascensão, em 2006. Fiadeiro produziu o espectáculo I am here precisamente a partir do imaginário e do trabalho  — também ele performativo — de Helena Almeida, estreado em 2004.  Há uma imagem que se destaca e que se institui como simulacro da sombra de Fiadeiro em pé projectada no chão. É uma imagem forte tal como são fortes as imagens de Helena Almeida na sua obra singular de auto-representação transformada em pintura, imagem, desenho e perfomatividade. Não estão muito distantes, afinal, estes universos. No começo era o corpo. No final também.

 

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João Fiadeiro, Introspectiva: Restos, Rastros e Traços. Vistas da exposição no MAC/CCB, Lisboa. Fotos: Lucas Damiani e Gaspar Nascimento. Cortesia do artista e MAC/CCB.

Mariana Ramos:

Dobra — Inflexões de um Plano sobre um Corpo

@Carpintarias de São Lázaro

 

São quatro corpos de três bailarinas e de um bailarino. A tridimensionalidade corpórea não nos é, todavia, mostrada a não ser através de quatro ecrãs com imagens esteticizantes e hipnóticas. O público circula pelo espaço ou senta-se no meio. Os bailarinos fazem pequenas acções, contorcem-se, movimentam-se, dobram-se, banham-se em gesso líquido, procurando uma qualquer transitividade invisível e sem fim à vista, talvez resultado de um desconforto ou de uma qualquer inquietação. Naturalmente, que os corpos trabalhados e banhados a branco nos reportam a um imaginário da Grécia antiga. Embora, na verdade, seja apenas imaginário, pois a Grécia era, como se sabe e afinal, colorida. O que, contudo, nada interfere no imaginário, pois já se percebeu que este será sempre e neste ponto dominante. As esculturas gregas são de mármore, atléticas e etéreas. Esta instalação sintetiza escultura, imagem e movimento. É por aqui que avançamos.

No final do século XIX, Henri Bergson escrevia Matière et mémoire: essai sur la rélation du corps a l’esprit (1896), onde procurou suprir aspectos aparentemente inconciliáveis, como o clássico e entediante dualismo entre corpo e espírito. Segundo Bergson, a matéria seria um conjunto de imagens, entendendo a imagem como uma certa existência que ai além do idealismo de uma representação e que “seria menos do que uma coisa”. Na verdade, a primeira característica formal da imagem é o facto de se localizar entre um objecto/coisa e uma ideia/ilusão. E é neste espaço que tudo verdadeiramente se opera. Segundo o mesmo autor, a percepção da matéria seria a imagem reportada à acção possível de certa imagem determinada: o meu corpo. O corpo é entendido como um instrumento de acção entre uma realidade material e uma imagem. Ou seja, precisamente o que vemos nesta instalção. De facto, estamos perante dois tipos de corpos: os corpos mostrados através da imagem ou, melhor, em imagem; e o nosso corpo que faz de mediador das imagens, na sua percepção, pelo modo como nos colocamos fisicamente perante a imagem, o modo como dela nos aproximamos, a perspectiva que apreendemos, que tomamos, que preferimos, ou que, simplesmente, conseguimos ver.

Esta ambivalência entre tridimensionalidade corpórea e imagem é a matriz mais produtiva e singular desta instalação. Marie-José Mondzain, no ensaio L’image peut-elle tuer? (2002), afirma precisamente que a imagem dá visibilidade a uma ausência. Comunicar pela imagem seria colocar, de facto, em evidência uma “visibilidade sem matéria”. Mondzain refere-se a um conceito que, neste contexto, particularmente nos interessa, a “incorporação”, que aglutinaria três instâncias indissociáveis: o visível, o invisível e o olhar que os coloca em relação. E voltamos ao corpo, à percepção e à imagem, na envolvência de um olhar que deseja ver.

Finalmente, e no caso desta peça, a “dobra” deleuziana que mais nos inquieta é, por um lado, a imagem-movimento de Gilles Deleuze — imagem-percepção, imagem-acção, imagem-afecção — isto é, a compreensão das imagens como movimento, como matéria; e, por outro, a imagem-tempo, enquanto memória, entre o agora e o que já foi, que num lugar extremado poderá conduzir à “imagem-cristal”, entendida por Deleuze como uma imagem presente e uma imagem virtual — passada — que lhe corresponde, isto é, o cristal como “fundamento escondido do tempo”. A imagem assemelha-se a um duplo/espelho/reflexo, localizada entre o tempo pretérito e o presente, que está sempre a passar, que está sempre a já não o ser. A imagem-cristal mostra-nos o tempo e, neste caso, a simultaneidade de acções a acontecer nos ecrãs.

O ambiente vai-se tornando cada vez mais hipnótico numa convergência centrípeta do espaço em imagens. E, neste aspecto, a montagem do dispositivo no espaço das carpintarias de São Lázaro valoriza ainda mais a composição, conferindo-lhe profundidade de campo, densidade e uma espessura quase táctil, como uma escultura de gesso, como um corpo em movimento. No começo era o corpo. No final também.

 

 

 

 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

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Mariana Ramos, Dobra – Inflexões de um Plano sobre um Corpo. Vistas da exposição nas Carpintarias de São Lázaro, Lisboa. Fotos: Alípio Padilha. Cortesia da artista e Temps d'Images.

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