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Yonamine:  ETC — Extraction | Trade | Cashtration

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Isabel Nogueira

 

 

Em 2019, Yonamine (n. 1975, Angola) apresentou neste mesmo espaço Union Jacking.Voice of the Voice£ess. Tratou-se de uma poderosa instalação, cujo título de imediato a situava face ao mundo do poder e do capital, na complexa ligação às consequências de um movimento (pós)colonial agressivo e dominador, no âmbito do qual se afiguraram relevantes as reflexões seminais, nomeadamente, de Albert Memmi, Edward Said, Frantz Fanon, Kwame Nkrumah, Audre Lorde, Maryse Condé, ou, mais recentemente, de Achille Mbembe. A matriz da obra de Yonamine desenvolve-se agora por meio da instalação ETC — Extraction | Trade | Cashtration, voltando a localizar-nos face a esta e outras problemáticas. O mundo tornou-se num lugar agressivo, beligerante e perigoso a vários níveis, que perpassam o da guerra efectiva. Na verdade, vivemos a grave e irreversível deterioração do planeta, as intolerâncias e o domínio do capital, inclusivamente, e também, na esfera da arte. Este ano de 2024 assinala também o meio século da democracia em Portugal, o fim da terrível guerra colonial e o início do processo de descolonização, seguindo-o do complexo processo de estabilização na democracia. É um tempo eventualmente oportuno para reflexão.

A primeira sensação que temos ao entrar no espaço consubstancia-se numa qualquer necessidade de expressão urgente, que se visualiza no quase horror vacui das colagens e das letras infinitas, sobretudo presentes na instalação do andar inferior da galeria. E comecemos por aqui. As paredes e o chão encontram-se revestidos de cartazes evocativos de jornais, mas também da colagem associada à arte urbana e ao poster conhecido por “lambe-lambe”, ambos naturalmente funcionando como transmissão de mensagens e de palavras de ordem, até de denúncia.  Sobre este lençol de cartazes, no chão, distribuem-se objectos diversos, como pequenas esculturas, artefactos de trabalho ou de luta, rosas vermelhas, peças ritualistas e outras encontradas, constituindo-se como uma espécie de altar evocativo da prática de Paulo Kapela (1940-2020), artista congalês que se mudou para Luanda em 1996, montando ateliê no edifíco parcialmente destruído da União Nacional de Artistas (UNAP), localizado no centro movimentado da cidade, e que é uma das assumidas referências nesta exposição.

O designado estilo ou escola de Brazzaville (capital da República do Congo), conhecido por “Poto-Poto” — nomenclatura homónima do bairro que, durante sensivelmente a primeira metade do século XX, foi exclusivamente ocupado por brancos, sobretudo colonos franceses —, foi fundado no início dos anos 50 e caracteriza-se pelo desenho forte, muitas vezes geometrizante, expressivo e colorido, e teve Kapela como um dos seus representantes mais reconhecidos. A colocação, por parte de Yonamine, de pequenos espelhos na testa de algumas figuras ou de pedras preciosas, possivelmente com poderes mágicos ou introspectivos, ou a moldura de palavras que circunda as colagens com os retratos, constituem também homenagens, em forma de citação, a Paulo Kapela. Entre os representados encontram-se, por exemplo, os artistas Julião Sarmento e John Baldessari. Naturalmente, que as colagens se complexificam com a mistura de publicidade, de palavras e até de notas, em modo provocatório. A citação assumida, assim como os retratos de alguns artistas, ou ainda a inscrição de nomes de amigos e de colegas nas composições constituem possivelmente uma forma de homenagem.

No piso de entrada da galeria destacam-se peças fortes, agressivas, desgastadas, humanizadas. Algumas são inclusivamente divertidas, como a transformação de um aspirador-robot numa escultura ambulante que vai recebendo o público. Mas situemo-nos nas anteriores, seguramente dos melhores trabalhos da exposição. A primeira evocação que nos surge reporta-nos às peças icónicas de Wolf Vostell (1932-1998), conhecidas por Dé-coll/age, que este membro do grupo “Fluxus” começou por produzir em meados dos anos 50, na época, claro, com outros pressupostos, mas também numa ligação determinante da arte com a vida, como igualmente proclamava o movimento da neovangarda internacional. Mas estas peças de Yonamine recordam especificamente a TV-Dé-coll/age, a primeira datada de 1958. Vostell esventrava os aparelhos televisivos e misturava-os com outros objectos e imagens, em forma de assemblage. Yonamine esventra e recicla ao mesmo tempo. E confere ainda uma estética singular à composição, tornando-se um recolector. A oxidação dos materiais é inquietante, ao alterar a visualidade e a temporalidade dos mesmos. Isto foi e isto é. As paredes brancas incorporam materiais ferrugentos, sobreposições, teclados, écrãs, anúncios escritos à mão, fios, e até uma peça ironicamente vazada com a palavra “Eurovision”, com o “v” substituído por um coração. E as obras tornam-se viscerais, com as tripas penduradas.

De modo surpreendente, o espaço branco é desconstruído, modificado, politizado, vivenciado e esteticizado, como Yonamine faz de modo competente e, por vezes, inusitado. Efectivamente, a espacialização e o seu bom domínio são factores relevantes nesta mostra. A arte vai à frente e espelha o mundo, ao mesmo tempo, materializando propostas de compreensão e eventualmente de denúncia. E claro que ninguém sai incólume num mundo construído e destruído por todos, que se deseja e que é urgente, de algum modo, reconstruir, reabilitar e reparar. E isto é inequivocamente desafiador e também, na sua urgência, claramente visceral.

 

Yonamine

Cristina Guerra Contemporary Art 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 




Yonamine:  ETC — Extraction | Trade | Cashtration. Vistas da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa, 2024. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art. 

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