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Henrique Pavão: Heavy Metal

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José Marmeleira

Heavy Metal é uma exposição de Henrique Pavão, patente na galeria Bruno Múrias, mas podia ser um concerto musical. Afinal, é composta por elementos que, habitualmente, compõem um concerto musical. Elementos que são visuais, hápticos e, claro está, sonoros. O visitante encontrará duas caixas cuja utilidade reconhecerá (são usadas para transportar instrumentos musicais, especialmente guitarras) um amplificador e o que parece ser uma melopeia destituída de recitação. Dir-se-ia, à primeira audição, que alguém toca um instrumento (de sopro) a uma distância impossível, humanamente não mensurável. A melodia é familiar, mas são vários os momentos em que a sua presença se nos escapa. Parece desaparecer na penumbra do espaço (da sala), antes de se voltar a manifestar. A gravidade com se manifesta é tal que os sentidos se inquietam. A melodia transforma-se em som e o som cai sobre o corpo, antes se afastar novamente, como se nunca o tivéssemos escutado.

Mas Heavy Metal não é (apenas) uma experiência sonora e musical. Com efeito, é uma exposição na qual reencontramos o universo conceptual, formal e estético que Henrique Pavão tem vindo a construir no âmbito das suas indagações ou — se não quisermos utilizar o termo investigação — meditações artísticas. Isto quer dizer que a melodia e os objectos só descobrem o seu sentido com as outras coisas: as que estão ausentes e as que estão presentes. Comecemos por estas. No interior das duas caixas — que, assim expostas lembram relicários e ou pequenos volumes minimalistas — encontramos pontos de luz que iluminam pedaços de um meteorito. São esses pedaços de rocha de origem não terrestre — metonímias do meteoro — que se encontram na origem da música. Mas de ondem vem a música? De um theremin tocado pela instrumentista Ângela Flores Baltazar que, sob a direcção de Henrique Pavão interpretou um fragmento da ária Summertime da ópera Porgy and Bess (1935)[1]. Daí a familiaridade — a ária é uma das mais populares do reportório musical do século XX, tendo sido objecto de inúmeras versões — e, ao mesmo tempo, a estranheza das suas vibrações. O theremin — o primeiro sintetizador na história da música — produz música sem a intervenção do toque humano numa superfície. A sua música nasce dos efeitos das mãos no campo magnético: em termos performativos, enfatiza a imaterialidade da música. Produz música como que por magia, ainda sempre à beira do fracasso, tal a contingência que ameaça a execução das notas. Com efeito, em Heavy Metal, elas vagueiam pelo espaço, ora ganhando volume (quase espessura) ora desaparecem no fundo escuro da sala.

Um aspecto característico das abordagens de Henrique Pavão assoma na instabilidade desta actuação (da qual só temos o documento da sua interpretação): a afecção do artista pelas condições de possibilidade da produção artística, condições essas que explora com uma argúcia muito especial e com resultados, que sendo desconcertantes, nascem de uma condução prévia. De facto, a instrumentista usou os pedaços de meteoritos como instrumentos ou, por outras palavras, enquanto extensões do seu corpo. A aura cósmica deste Summertime, o seu tom elegíaco (as vibrações não são solares e não provocam a excitações que inspirou o uso do theremin eléctrico pelos Beach Boys), advém, porventura, dessa imperfeição e com ela vêm, como noutro trabalhos de Henrique Pavão, histórias, acontecimentos, episódios que as coincidências urdem. Por exemplo, uma versão de Summertime tocada por um theremin integra, precisamente, o conjunto de composições transmitidas para o espaço pelo projecto russo “Teen Age Message” em 2001[2]. A música, que continua a ser transmitida actualmente, regressa assim à Terra, para ser tocada por forças que têm a sua origem no espaço sideral. No entanto, dá-se algo nestas conjugações que o artista introduziu subtilmente. A música que ouvimos na galeria não é extraterrestre, mas humana; e colocados no campo magnético os meteoritos perdem a sua natureza. A sua impressão original desaparece.

A desordem, a ruína, o falhanço, a obsolescência, as relações entre o futuro e o passado — ou entre espaços de temporalidades distintas — são questões que Henrique Pavão tem trazido para o seu trabalho. Com a fluidez com que Robert Smithson interpretou o termo entropia, o artista português exprime preocupações semelhantes, mas de um modo que se poderia descrever de poético, no qual sobrevive um encantamento misterioso face às relações, aos nexos, às ligações, às sobreposições que os humanos engendram ou enfrentam e os artistas tão bem sublimam. Nada no seu trabalho aparece isoladamente e mesmo quando uma certa obra — o caso da imagem fotográfica de um animal (um anfíbio) que projecta uma luz no chão — parece sugerir um contraponto, nem por isso ela se encerra num sentido ou é uma mera adicção. Acende uma ligação que, embora subtil, se faz com a música e as rochas que caíram do céu. O título deste último trabalho — It’s not going to stop, uma referência à canção que as personagens de Magnolia[3] interpretam (quebrando a diegese da narrativa) pode ser uma chave para essa ligação. Os meteoritos morreram para poderem cantar. E há música nesta fotografia: é a dos astros, a da natureza, da noite, da luz. Por enquanto.

Henrique Pavão

 

Galeria Bruno Múrias

 

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon (suplemento do jornal Público), Contemporânea e Ler].

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

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Henrique Pavão, Heavy Metal, vistas gerais da exposição na Galeria Bruno Múrias, Lisboa, 2024. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Bruno Múrias.


Notas:

 

[1] Da autoria do compositor George Gershwin (Nova Iorque, 1898 – Los Angeles, 1937).

 

[2] Curiosamente, um ano com um inesperado significado cinéfilo.

 

[3] Filme de 1999 da autoria do realizador americano Paul Thomas Anderson

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