Entrevista a Thiago Rocha Pitta
O que me orienta é um forte sentimento oceânico
A obra de Thiago Rocha Pitta é conhecida por uma multiplicidade de linguagens através das quais constrói uma intensa poética da natureza. Com um programa artístico que evidencia um domínio heterogéneo de meios e referências, o percurso deste artista objectiva a memória de um contrato natural — para falar como Michel Serres. Criou a Fundação Abismo, rodeada pela Mata Atlântica, em Petrópolis, Rio de Janeiro, local onde vive e tem o seu atelier. A sua obra foi já reconhecida através dos prémios Marcantonio Vilaça (2005, Brasil) e Open Your Mind (2009, Suíça). Em 2014, participou na residência artística Circulating AiR, Noruega. As suas obras integram colecções institucionais como as do MoMA, Nova Iorque; Colecção Jumex, México; MAM, São Paulo e MAM, Rio de Janeiro; Instituto Inhotim, Brumadinho; ThyssenKrupp, Viena e Hara Museum, Tóquio. Actualmente é representado pela galeria Millan, em São Paulo. Na cidade do Porto e no âmbito do projecto curatorial PECADOS E CAPITAIS ou uma certa névoa para espaços vazios, Thiago Rocha Pitta apresentará o seu trabalho. Sobre este falamos nesta entrevista.
Eduarda Neves (EN): A tua prática artística foi sempre assinalada pela relação que estabeleces com a natureza. Não se trata de uma qualquer operação contemplativa mas de uma concreta ligação experimentada através das possibilidades físicas que a natureza materializa e oferece. Se a deriva debordiana operava na cidade, os teus desvios e deslocamentos acontecem na paisagem natural onde, de alguma maneira, também encontras o infinito do mar, assim contrariando, digamos, as formas seguras da navegação à vista. É plausível reconhecer estes sentidos na tua obra?
Thiago Rocha Pitta (TRP): Sem dúvida que é amplamente plausível. Quando descreves deslocamentos, penso imediatamente no ciclo da água que evapora, condensa em nuvem, precipita em chuva, serpenteia pela terra até retornar ao mar. É na turbulência desses vórtices que desejo navegar. O que me orienta é um forte sentimento oceânico.
EN: A Fundação Abismo, criada em 2019, ocupa uma localização singular. Naquele espaço de resistência (palavra fora de moda) apresentas obras que dialogam com a paisagem — Herança, Cinema fóssil, Monumento à deriva continental, O silêncio e Abismo sobre Abismo, por exemplo. Dificilmente poderias concretizar algumas instalações e esculturas em instituições convencionais como a maior parte das galerias e museus que tendem (diria eu com alguma ironia) a excluir todas as formas de abismo. Além de lugar expositivo e de trabalho, esta Fundação tem um sentido ético que não se pode dissociar da forma como entendes a tua produção artística e, diria mesmo, o teu projecto de vida, não é verdade?
TRP: Sua pergunta já contém a resposta, sim. Sem dúvida é um projeto de vida, de arte e de morte. De vida pois não via sentido em viver na cidade, sobretudo na grande cidade em que vivi durante 10 anos, São Paulo, antes de me mudar. Desde o início da minha carreira que eu já sonhava em gerir um espaço “natural” onde pudesse fundar abismos. Durante esse tempo alimentei esse sonho e guardei dinheiro para torná-lo possível. Em 2014 houve uma grande crise hídrica no sudeste do Brasil e esse evento me estimulou ainda mais. No terreno da fundação há 3 nascentes de água…. estava decidido de que de sede não morreria. Em 2017 comecei a comprar o terreno e a operar transformações no mesmo. A primeira grande operação foi de ordem botânica. O corte de cerca de 40 grandes árvores exóticas, pinheiros e eucaliptos. Imediatamente após o corte plantamos mais 400 mudas de árvores, de 67 espécies nativas da mata Atlântica, bioma no qual a fundação se encontra. A madeira resultante do corte dessas árvores foi usada na construção de algumas esculturas, mas sua maior parte foi compostada, transformada em adubo que alimenta as novas árvores, além da horta, onde cultivamos boa parte dos alimentos que consumimos. É um projeto de vida sana. Do ponto de vista artístico, Eduarda, tens toda razão, suas palavras ecoam as palavras de Giorgio Agamben …a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercadorização… De fato, apesar de algumas dessas obras já terem sido montadas em espaços convencionais, os mesmos tendem a repelir, como disseste, todas as formas de abismo (obrigado pelas belas palavras!) e até certo ponto percebi que se eu não criasse um ambiente para essas obras “abissais” elas raramente existiriam e eu passaria a minha própria existência frustrado.
De morte, pois não há na nossa cultura projeto digno e honesto para a morte. O contato direto com as plantas (sejam as cultivadas ou selvagens) me esclareceu o sentido positivo e fundamental da morte — é o alimento da vida. Falando num sentido mais mundano, ou melhor, humano, a arte tem sido usada, desde quase sempre, como uma falsa promessa— ars longa, vita brevis. Evidentemente que a duração dos objetos artísticos pode superar a duração dos seus criadores. No entanto, como nos ensina a geologia, a astronomia e a cosmologia sobretudo, tudo passa, tudo se transforma. Nós somos feitos de poeira de estrelas que já não brilham… até o sol um dia há de morrer. Portanto tudo é breve e, sobretudo, nossa vida é tão breve que mal percebemos a brevidade das coisas que duram mais que nós mesmos.
EN: As tuas aguarelas e frescos exprimem uma representação esplendorosa ou temerária da natureza — eclipses solares e da lua, névoas, mapas celestiais e paisagens oceânicas, bactérias, transformações mais ou menos visíveis, para referir apenas alguns exemplos. Sem querer entrar na discussão em torno da autonomia da arte, a tua obra parece valorizar a independência do gesto e do fazer artístico enquanto possibilidades através das quais o sentido crítico se pode fazer ouvir. Demonstrando com grande subtileza que a forma pode ser política, confrontas-nos com uma linguagem plástica que inscreve a pura visualidade num enunciado fortemente problematizador, sem que a dimensão artística se torne secundarizada. Podes comentar?
TRP: Já disseste tudo Eduarda! O que posso acrescentar é que, para mim, a dimensão artística é primária, anterior às palavras. E se tratando do tempo em que vivemos, não problematizar seria uma traição, uma negação. Sendo eu essencialmente um paisagista não problematizar seria ainda mais problemático.
EN: Algumas das tuas peças interpelam a obra de artistas que se particularizaram na história da arte, bem como determinadas instâncias de legitimação da prática artística, como é o caso, por exemplo, do museu. Não te aproximando do território da chamada crítica institucional, em que medida te interessa esse diálogo crítico do ponto de vista conceptual e formal?
TRP: O diálogo com os mortos me interessa muito, talvez mais até do que com os vivos (há muito mais mortos que vivos). Tal qual as árvores que se alimentam de madeira podre, nós (eu ao menos) nos alimentamos de obras do passado. Acredito que tudo que é se constitui do que já foi. Imagino que está se referindo ao vídeo, o primeiro que fiz em 2002, homenagem a JMW Turner, quando tive a ideia de atear fogo em barco no mar; súbito me veio à memória a pintura Peace – Burial at Sea . Sendo um pintor que muito admiro, resolvi, com o título, homenageá-lo. Mais tarde, em 2005, quando vi pela primeira vez ao vivo as pinturas de Turner minha admiração aumentou, ele e outros contemporâneos dele, sobretudo ingleses, que testemunharam uma grande transformação, a revolução industrial, nesse sentido acredito que o estudo desse período da história é fundamental para nós que estamos vivendo as catastróficas consequências dessa revolução… em relação ao museu, ainda estou muito jovem e, sobretudo, vivo, para estabelecer esse diálogo. Acredito que depois de eu morrer eles provavelmente falarão mais comigo.
Thiago Rocha Pitta, homenagem a JMW Turner, 2002. © cortesia do artista.
EN: Afirmaste numa entrevista que “O afresco é uma técnica geológica, mineral. (...) Toda chuva é ácida. No processo geológico natural, a chuva fixa o carbono na pedra, que depois corre pelo rio e vai para o mar. Depois de enterrado, esse carbono orgânico volta à superfície com a erupção dos vulcões. O afresco é um processo, se não idêntico, muito parecido. Se você pegar o carbonato de cálcio e colocá-lo no forno, depois debaixo d’água, quando secar ele absorverá carbono de novo da atmosfera.” Até que ponto encontras no tempo uma categoria a partir da qual articulas e operas analogias entre a geologia, a história e a tua prática artística, concretamente nessa duração lenta que atravessa a produção de uma obra pictórica como o fresco?
TRP: Foi essa característica geológica e uma grande admiração pela pintura pagã que me fascinaram pela técnica do afresco. Depois, em contato com a técnica em si, um fascínio químico sucedeu. A cal virgem (prefiro o nome em italiano; calce viva) em contato com a água é, em si, uma imagem, um fenômeno alquímico, é literalmente o fogo na água, a Salamandra. No afresco se tocam dois ciclos temporais distintos, o geológico e o climático. No breve tempo em que se tocam tento encaixar minha prática artística.
EN: Uma certa impermanência e desordem manifestam-se tanto na abordagem que fazes das alterações climáticas, da natureza microscópica, dos naufrágios, ou até da memória histórica. Nesta cosmologia que imaginas, somos projectados para o limiar da catástrofe sem qualquer saída ou a luta por todos os tipos de vida poderá ainda constituir uma opção?
TRP: O meu pessimismo cínico é desmascarado quando crio a fundação abismo… das mais de 400 árvores que plantei algumas delas são de crescimento lento, atingem a maturidade com 60, 70 anos, muito provavelmente não testemunharei isso mas ficaria feliz, mesmo morto, se meu filho as vier a ver maduras. A luta é a única alternativa, como lutar é a questão, o inimigo nessa guerra somos nós (humanos) mesmos.
EN: As aguarelas que configuram O Suplício de Cabral, oferecem-nos um registo ficcional que inclui desembarques, caravelas e povos indígenas, naus e baleias, encantamento e feiticeiras, violência e destruição. Recorrendo a um processo alargado como a exploração colonial e a história do Brasil — entendidas elas mesmas como formas de exploração da natureza — transportas-nos para a actualidade das mutações climáticas, a destruição da camada de ozono, o degelo, ou a desertificação. É a imagem do Brasil e da potência dos seus recursos naturais, antes da chegada dos portugueses, que consubstancias na dimensão de um argumento expositivo no qual os títulos de cada obra constroem, sequencialmente, uma narrativa fílmica. São as relações de força entre história, domínio, cultura e natureza e as respectivas formas de exercício da violência simbólica que, quase de maneira épica, convocas?
TRP: Primeiramente devo dizer que O Suplício de Cabral é uma metáfora do passado e uma metonímia do presente. Estou usando o passado para falar do presente e, quiçá, convocar um futuro. A tua pergunta já responde muitas coisas, o que posso acrescentar é que sendo uma metáfora, o Suplício é nosso. Os pesadelos oraculares que a terra sonha em o Suplício… já são realidade... hoje, enquanto escrevo, há 650.000 pessoas desabrigadas no sul do Brasil, um dilúvio de proporções bíblicas, em muitas outras partes do mundo sucedem catástrofes, já estamos imersos em um novo clima… Na narrativa, confronto a visão antropocêntrica europeia com o animismo ameríndio e uso parte da história de nossos povos (Portugal e Brasil) como contexto para problematizar um confronto que se perpetua até agora, não mais entre colonizadores e colonizados mas entre homens (não todos) e a Terra.
A história desse trabalho se confunde um pouco com minha história pessoal. Em 2020 meu filho transferiu-se com a mãe para Portugal, apesar da saudade terrível dele, fiquei contente pois naquele momento o Brasil passava por um período apavorante, de violência extremada. Portugal acolheu muito bem meu filho e, portanto, tenho gratidão à vossa terra. Nos momentos em que o visitei em Lisboa, aproveitei para aprofundar minha pesquisa sobre o período histórico das navegações e alguns dados me chamaram bastante a atenção. Antes de haver o contato/confronto dos portugueses com os povos originários, a própria estrutura social interna das caravelas já premeditava os horrores que sucederiam após o contato. Os degredados, marinheiros e sobretudo os grumetes (pobres crianças que sofriam de tudo nos porões das naus) eram tratados de maneira similar ao tratamento que viria a ser dado aos povos contactados, seja em África ou nas Américas. Enquanto no Castelo da proa os padres e oficiais gozavam de boa dieta e saúde, nos porões, os que não eram nobres, sofriam.
Existe uma história documentada de 2 grumetes, que estavam na armada de Cabral, que na véspera da partida (2 de maio de 1500, de Porto Seguro no Brasil em direção à Índia) roubaram um bote e desertaram. Nunca mais foram vistos. É sob a ótica desses dois grumetes que me proponho a olhar a vossa história.
EN: Podes falar-nos sobre os últimos trabalhos que, partindo daquele projecto, tens vindo a desenvolver?
TRP: Estou criando um corpo de trabalho (esculturas e afrescos) a partir dos pesadelos da terra, que já existem em o Suplício de Cabral. Por sugestão de Pedro Cesarino, um grande amigo, antropólogo e escritor, li the marriage of heaven and hell, um poema fantástico de William Blake, artista pelo qual nutro grande admiração. No poema, o autor visita o inferno, dá voz ao demônio, encontra profetas (Isaías e Ezequiel) os quais interpela, zomba dos anjos… é alucinante… Esse novo corpo de trabalho se chama “o divórcio do Céu e da Terra”, estou nesse momento fazendo três esculturas, os órfãos do divórcio…
É difícil falar sobre trabalhos que ainda estão por vir, o que posso dizer, por agora, é que são assombrosos.
No âmbito das exposições individuais de Thiago Rocha Pitta, destacamos: O primeiro verde (2018), Atlas/Oceano (2014), Saudades da Pangeia (2011), e Calmaria, (2008), todas apresentadas na galeria Millan, São Paulo. Além destas, referimos ainda O Suplício de Cabral, Simões de Assis, São Paulo (2022); Noite de Abertura, MAM, Rio de Janeiro e Hugo França & Thiago Rocha Pitta: Tropical Molecule, Galeria Marianne Boesky, Aspen (2019). Das exposições colectivas em que participou destacam-se Chosen Memories, MoMA, Nova Iorque (2023); Planet B: Climate Change & the New Sublime, Palazzo Bollani, Veneza e Histórias Brasileiras, MASP, São Paulo (2022); Passado/Futuro/Presente, MAM, São Paulo (2018); 30a Bienal de São Paulo (2012) e J’en Rêve, Fondation Cartier pour L’art Contemporain, Paris (2005).
Eduarda Neves é professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.
(a autora não escreve segundo o novo acordo ortográfico / as respostas do artista estão escritas em português do Brasil)
Todas as imagens © Thiago Rocha Pitta. Cortesia do artista.