formas dos futuros ao redor: entrevista a João Laia
A exposição inaugural de João Laia enquanto Diretor da Galeria Municipal do Porto, formas dos futuros ao redor, apresenta uma abordagem sensorial e experimental para desenvolver uma metodologia queer de criar exposições. Compreendendo a sensibilidade queer através de "uma perspetiva expandida de futuridade, uma vez que se trata de algo que não é definido e não pode ser definido", Laia tenta entrelaçar várias vertentes da arte contemporânea através de uma experiência multissensorial, material e corporal.
Apoiando-se em pensadores como José Esteban Muñoz, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro para refletir sobre futuridade, Laia acolhe a sensibilidade queer como algo que, para ser politicamente relevante, precisa de ir além da identidade, adotando um "posicionamento orientado para o futuro [... parafraseando Muñoz], comunidades e públicos que são muito mais amplos do que podemos agora reconhecer". Assim, ao ver o futuro como algo quase inerentemente queer na sua aceitação do desconhecido, o curador procura experimentar novas formas de o perceber, num movimento contra a visão de "permacrise" dos nossos tempos e, consequentemente, dos futuros.
A posição do novo diretor da Galeria Municipal do Porto traz estes exercícios para a já rica cena artística da cidade. Conversei com Laia alguns dias depois de ver a exposição e o programa de performances noturnas, que trouxe para o primeiro plano questões de acessibilidade — algo que continua a ser um grande desafio para muitas exposições de arte contemporânea experimental.
Começando com Pervasive Light (2021), de Sandra Mujinga, numa sala completamente escura com um vídeo em loop de uma performance quase-ciborgue, a exposição oscila entre a luz e a escuridão, passando por diferentes formas de perceção com recurso a colagens de vídeo intermitentes, instalações e estruturas. Atomic Garden (2018), de Ana Vaz, destaca-se pelas belas imagens de um jardim em mudanças rápidas de velocidade estroboscópica. O último andar da galeria está reservado para Joana de Conceição, cujas obras oscilam entre a instalação e a pintura.
De um ponto de vista estritamente curatorial, Laia levanta uma questão crucial e muito contemporânea: o que significa trazer uma perspetiva queer para uma exposição? Não se trata apenas das obras exibidas, mas, segundo o curador, envolve também muito do processo: "se queres propor uma narrativa queer…, também precisas de adotar métodos queer de criação de exposições. Não podes realmente promover uma narrativa sem a pôr em prática." Adotando esta postura de experimentação que critica diretamente o cubo branco, o trabalho de Laia questiona o processo curatorial e a forma como interagimos com os espaços, as obras de arte e os programas públicos. O que este tipo de abordagem à arte contemporânea trará à cidade do Porto e o papel crucial que a cidade e a galeria desempenham na cena artística portuguesa será algo muito interessante de observar.
Maria Kruglyak (MK): Gostava de começar por falar um pouco sobre formas dos futuros ao redor. É uma exposição que curaste pela primeira vez para a 12ª Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Gotemburgo em 2023. Como foi trazê-la para o Porto? Diria que Porto e Gotemburgo são semelhantes em muitos aspetos [sendo as segundas maiores cidades dos respetivos países com cerca de 10 milhões de habitantes e centros da arte contemporânea internacional], e, no entanto, a exposição adquire um contexto completamente diferente na cena artística portuguesa do que na sueca. A exposição mudou ou desenvolveu-se com a mudança? E por que razão decidiste trazê-la para cá?
João Laia (JL): Trabalhei nesta exposição durante bastante tempo e quando surgiu o convite para Gotemburgo [bienal] pensei que pudesse ser uma boa plataforma para desenvolver experiências com o projeto. Por isso, nunca foi algo que tivesse tido origem no contexto de Gotemburgo e, nesse sentido, não estava ligado a um contexto específico, mas sim como uma reação a um sentimento generalizado, a uma sensação, a uma urgência.
Senti-me bastante confortável ao trazê-la para cá porque, apesar das diferenças óbvias [entre Gotemburgo e Porto], existem também semelhanças. E a própria exposição é, na verdade, sobre encontrar semelhança na diversidade — fala muito sobre a ideia de transição, de mutação — portanto, o facto de a exposição ter tido três formas diferentes reforça a sua narrativa como algo [em] transição, [em] transformação, [em] mudança, e não como algo sólido, fixo, que aconteceu uma vez e depois se dissipou.
MK: Considerando aquilo que agora descreves sobre encontrar semelhança na diversidade, isso está intimamente ligado aos temas que a exposição aborda, como temas queer, ecológicos e corporais. Como é que vês isso? E o que é que essas diferentes formas de ver o futuro significam para ti?
JL: É uma pergunta interessante. Diria que, na verdade, não são formas diferentes [de ver o futuro], pois é isso que a exposição faz. O ecológico não é [assim tão] central na exposição. Diria que o tema central é o queer, embora aqui queer adquira uma forma muito expandida, enquanto perspetiva de futuros — porque é algo que não é definido e não pode ser definido. E depois, o ecológico surge dessa relação queer que a ecologia e a natureza envolvem; lendo a ecologia também como uma agência queer. Queer é o tema principal na exposição que depois acolhe muitos outros temas enquanto agências queer ou instâncias queer.
Um dos principais pensadores [para a exposição] é José Esteban Muñoz, que, parece-me, continua a ser bastante visionário, embora escrevesse nos anos 90. Muitas das suas afirmações são âncoras para a narrativa da exposição. Por exemplo, ele diz que queer, para ter relevância e assumir um posicionamento político, precisa de ser mais do que um marcador de identidade — e identidade aqui, novamente, num sentido expandido, indo além, por exemplo, de uma identidade humana, olhando para o planeta como uma identidade também. Em qualquer caso, ir para além da identidade na direção de um posicionamento voltado para o futuro, onde, como diz Muñoz, as comunidades e os públicos são muito mais amplos do que podemos identificar e reconhecer hoje. Estes precisam de incluir agências que, na verdade, ainda não conseguimos identificar neste momento. É este espaço de possibilidade e do desconhecido — e esta ideia do desconhecido e de abraçar o desconhecido que é também bastante central a partir de uma perspetiva queer.
MK: Considerando o tema da sensibilidade queer expandida, muitas vezes vejo-o como dois polos: primeiro, queer num sentido [físico] de mutação ou não-estabilidade, que naturalmente se torna futurista, seja utópico ou distópico; e depois um outro sentido [metafísico], que tem mais que ver com o que é a nossa perceção e as perspetivas em que podemos espelhar diferentes coisas. formas dos futuros em redor é interessante porque parece abraçar muitas vertentes diferentes, e faz-me questionar de que modo é que vês essa narrativa da sensibilidade queer e onde, nesta polaridade físico-metafísico, é que vês o teu trabalho. Por outras palavras, a partir desta perspetiva queer expandida, vês-te interessado em exposições queer que permaneçam corporais, físicas, ou é algo mais da ordem de uma perspectiva queer muito ampla, que vai para além do físico?
JL: Bem, sim, o corpo é essencial. Talvez tenhas uma perspetiva mais distanciada e consigas analisar e segmentar as diferentes vertentes. Para mim, é mais como se tudo fosse uma entidade estranha. No entanto, a materialidade tem sido um dos aspetos essenciais do meu trabalho e pesquisa há já algum tempo.
Como parte do processo de desconstrução queer e, neste sentido, da releitura queer do cubo branco e da exposição enquanto formato, no sentido em que as exposições e o cubo branco foram (e, na maioria das vezes, ainda são) concebidos para privilegiar a visão. E esta exposição, tal como muitas outras em que trabalhei, está muito interessada em questionar isso, estimulando outros sentidos e convidando o público a uma experiência muito mais corporal, materializada e sensorial.
O som, por exemplo, tem sido sempre fundamental, e continua a sê-lo aqui também. A forma como o som funciona como uma presença descorporizada, que tem um impacto físico tremendo sobre o corpo, como acontece, por exemplo, com o baixo. Mas também na forma como cria uma atmosfera muito contaminada, onde muitas vezes não se percebe inicialmente de onde vem o som e onde, dependendo do lugar que ocupas no espaço, podes ouvir dois ou três sons simultaneamente que, juntos, criam uma paisagem sonora com um significado diferente.
Há, por exemplo, a peça de Maria Jerez — a peça central, mais para o fim do espaço. É uma paisagem, uma paisagem misteriosa, feita de diferentes tecidos que sugerem a presença de corpos ou a materialização de um corpo que não se consegue realmente identificar. É animada por sons, luzes e movimento. Por isso, o corpóreo é realmente muito importante em toda a exposição. E, mais uma vez, não está dissociado — a ideia é realmente tornar possíveis outras formas de perceção que desafiem o regime normativo de visualidade que o cubo branco e as exposições muitas vezes oferecem.
De certo modo, se se quiser propor uma narrativa queer, diria que é também necessário adotar métodos de criação e experiência (como visitante) de exposições. Não se pode realmente promover uma narrativa sem a pôr em prática. Ambas estão realmente a alimentar-se mutuamente e, juntas, concretizam aquilo que queria explorar.
MK: Isso é muito interessante, porque ao visitar a exposição, achei que era, por vezes, bastante esmagadora nessa forma verdadeiramente multissensorial. Por exemplo, a peça de P. Staff — On Venus (2019) — [que consiste numa sala com o chão espelhado e luzes de néon amarelas, com um ecrã na parede de fundo que exibe um filme de 13 minutos com imagens brutais da indústria da carne, num estilo muito surreal, distorcido e colorido]. Estava a assistir ao filme há já algum tempo quando percebi que as pessoas não paravam para vê-lo, mas entravam e saíam, porque é muito intenso. Isso também me fez pensar mais sobre a ideia de desconstrução queer da exposição enquanto parte do processo de criação, da própria exposição e da forma como as pessoas interagem com ela.
JL: A encenação é bastante importante, assim como a ideia de imersão. Imersão por oposição a essa abordagem muito distanciada, analítica, puramente cognitiva à criação de exposições. Estou interessado nesse vaivém entre o cognitivo, o experiencial, o sensorial, o altamente subjetivo e até o emocional.
O som é muito importante. Acho que o som do trabalho de Sandra Mujinga [Pervasive Light (2021)] define o tom da exposição, tal como a escuridão da peça. E depois há o contraste quando saímos da escuridão para um ambiente mais luminoso. Talvez não se repare nos filtros imediatamente, porque eles não têm cor, apenas reduzem a intensidade da luz exterior. Mas há uma estranheza a encenar um espaço liminar, em que de certo modo reconhecemos o lugar onde estamos, mas ao mesmo tempo há algo bizarro que talvez não consigamos identificar de imediato. E essa é uma situação cenográfica produtiva a partir da qual se pode construir uma exposição.
Houve alguém que descreveu a sensação que teve ao sair da sala escura da peça de Mujinga como se um eclipse estivesse a acontecer, e isso, para mim, foi muito, muito bom de ouvir — porque, para mim, está precisamente a assinalar essa situação liminar muito estranha. Nunca pensei na atmosfera e na intensidade da luz como ecoando as de um eclipse, por isso foi muito interessante que alguém tenha mencionado isso.
MK: Sim, Pervasive Light de Mujinga tem essa qualidade desnorteante. Na verdade, sente-se isso em diferentes momentos da exposição, ao percorrê-la, porque as obras também empurram o corpo para diferentes lugares, e acho que esse efeito é mais forte no início, ao sair dessa sala escura, enquanto tentamos encontrar o caminho.
JL: A ideia ali era realmente deixar claro que se está a entrar noutro espaço, que não tenta reproduzir a realidade “real” — dirige-se para outro lugar, mas sem fugir do real. [Mantendo-se] muito ancorada no real, [a entrada] oferece algo diferente ou encena algo diferente. É por isso que quis os filtros, para poder trabalhar com a luz. A galeria tem essa particularidade muito interessante das grandes janelas [e] eu não queria bloquear o espaço exterior, [criando] essa interação entre estar dentro de um espaço que poderia ser muito estranho, onírico, psicadélico, mas [podendo] ver o jardim, ver as pessoas a caminhar pelo jardim. Mais uma vez [criando] esse espaço liminar, um pouco como sonhar acordado: estás aqui, mas não estás. Acho que essas dinâmicas são produtivas porque questionam tudo o que pensamos saber sobre categorias, percepções, o que as coisas são, o que as coisas não são e, de repente, estás num espaço que, de uma forma muito simples, é menos claro sobre tudo.
MK: Voltando às performances noturnas no Passos Manuel, que fizeram parte do programa de inauguração da exposição: de onde parte essa ideia ? E como é que funcionou, também foi a partir dessa perspetiva do espaço liminar de instabilidade e não-realidade?
JL: O programa de performances tenta fazer algo diferente, embora diria que a exposição também tem uma camada performativa. O meu interesse nas performances era, pelo contrário, encontrar essa espécie de intensidade que surge do facto de as pessoas estarem no mesmo lugar ao mesmo tempo — uma espécie de comunidade efémera de estranhos que se reúne.
Em Gotemburgo, o programa de performances foi muito mais preciso. Estava dividido em dois momentos. O primeiro chamava-se A Calling (Um Chamamento) e acontecia ao final da tarde num espaço público. Funcionava como introdução/apresentação/
No Porto, houve, mais uma vez, essa mutação do programa, onde ambos foram misturados. To the Aching Parts! (Manifesto), de Ania Nowak, fez parte anteriormente de A Calling e tornou-se agora a primeira performance do programa. Dragana Bar, do KEM Colletive, foi, em Gotemburgo, a última performance de A Celebration. Aqui [no Porto] foram combinados num único evento. Joana da Conceição fez parte de A Celebration, e María Jerez apenas atuou aqui [no Porto].
Não dei um título ao programa de performances, mas, se o fizesse, seria mais voltado para o celebratório. Por exemplo, Dragana Bar acolhe realmente a ideia de espaços seguros, do clubbing como plataforma para encontrar o desconhecido e, ao mesmo tempo, sentir-se seguro e feliz com o estranho, com quem quer que se possa encontrar e com quem se possa experimentar em termos da própria identidade. Portanto, todas essas camadas e possibilidades que a vida noturna oferece foram manifestadas [na peça do KEM Collective], enquanto o resto do programa de performances ecoava mais o que a exposição faz com a confluência de posições, experimentações e agências muito diferentes, construindo um todo a partir da diversidade. O que, mais uma vez, ecoa a ideia de ecologia como um todo composto por elementos muito diversos que se juntam.
Portanto, essa perspetiva ecológica através de uma leitura queer também se manifesta no programa de performances. E foram várias as pessoas que comentaram isso, como as performances eram diferentes e como acharam interessante fazer um programa de performances que não formava um conjunto linear, mas que, na verdade, enfatizava a diferença.
MK: Sim, acho que isso se reflete na exposição espacial, pois existe esse contraponto. Como é que olhas para a continuação do programa? Porque, pelo que entendi, além das visitas guiadas, há também bastantes workshops planeados. O que vai acontecer nos próximos meses?
JL: No verão, o programa público vai abrandar um pouco, embora haja um evento organizado pela minha colega, a curadora do programa público, Matilde Seabra, e pela Joana da Conceição: um workshop para crianças baseado no trabalho da Joana e no modo como ela usa a imaginação como ferramenta central para a sua crítica da história da pintura, da história da cultura visual, da forma como nos envolvemos com as imagens e como, mais uma vez, o corpo é essencial na nossa relação com as imagens, em vez de ser apenas a visão.
Vamos também ter um grande dia de performances no dia 28 de setembro. O programa ainda não está totalmente definido, mas, neste momento, temos onze performances. Vai ocupar todo o espaço da galeria, tanto no interior como no exterior, e irá, mais uma vez — desta vez literalmente — investigar a galeria enquanto palco, em vez de um mero dispositivo de exposição.
Depois disso, teremos três exposições individuais a abrir no dia 26 de Outubro: Vivian Caccuri, Jonathan Uliel Saldanha e Rita Caldo. A exposição de Caldo inaugurará a nova sala dedicada a artistas baseados no Porto. Caccuri ocupará o primeiro andar da galeria e Saldanha o grande andar de baixo, na sua primeiríssima exposição institucional de grande escala. Caldo tem também aqui a sua estreia institucional e esta também é a primeira vez que Caccuri apresenta uma individual em Portugal.
MK: Essas trê exposições individuais vão estar interligadas?
JL: Sim e não. Não, porque são exposições individuais, nesse sentido são autónomas. Estão, no entanto, ligadas na medida em que o som é bastante importante de maneiras muito diferentes — ainda assim, o som pode ser visto como um fio condutor, talvez mais especialmente nos casos de Caccuri e Saldanha, embora a exposição de Caldo também tenha um elemento sonoro relevante. De forma mais genérica, é uma outra forma de tentar exponenciar a capacidade do espaço da galeria de não ser apenas um espaço visual, mas algo mais.
MK: Faz parte do teu plano para a galeria avançar mais no campo do som e introduzir diferentes formas de percepção que vão além da visão?
JL: Sim, mas não vou transformar a galeria numa galeria de som, há muitas maneiras de fazer isso. Escolhi o som como ponto de partida porque é algo muito relevante na cena artística do Porto, dada a enorme quantidade de artistas a trabalhar com som. Queria acolher e refletir essa realidade.
Vendo de forma mais ampla, a imersividade é provavelmente a estratégia mais permanente. O som aparecerá nalgumas exposições, no programa de performances, concertos... A primeira coisa que fiz desde que cá cheguei foi a noite de concertos para celebrar o 50º aniversário da revolução do 25 de Abril. Essa ideia surgiu também deste reconhecimento da importância do som na cena artística da cidade. Por isso, sim, o som será um elemento muito importante, mas não será o único foco do trabalho na galeria. E, daqui a algum tempo, talvez façamos uma exposição de pintura, porque não? [rindo] Na verdade, temos agora uma, a da Joana da Conceição!
MK: Como alguém que veio do estrangeiro para Portugal, acho que a cena de arte contemporânea aqui é muitíssimo ativa e impressionante — há imensas coisas novas a acontecer na arte contemporânea portuguesa. Trabalhaste 17 anos no estrangeiro e agora voltaste para assumir esta posição como Diretor da Galeria Municipal do Porto. Como é que olhas para o panorama da arte contemporânea aqui depois de teres trabalhado noutros lugares? E como vês a cena no Porto em comparação com a de Lisboa?
JL: Ok, mas não colocaria a questão como se tivesse estado fora e depois voltado. Trabalhei bastante em Portugal ao longo destes anos — tanto em Lisboa como no Porto — e sempre trabalhei com artistas portugueses quando estava no estrangeiro. Por isso, nunca senti que estava realmente desligado, mesmo não estando cá. O regresso não foi propriamente uma surpresa, e senti-me bastante confortável e familiarizado com o que se passava e se passa cá.
Quanto a possíveis diferenças entre Porto e Lisboa, o som é uma delas, mas, no geral, acho que é muito difícil traçar esses paralelismos porque não há uma única cena no Porto — há várias [cenas]. E o mesmo acontece com Lisboa, não acho que neste momento se possa dizer que “a cena lisboeta está a focar-se nisto.”
Existem diferentes histórias: o Porto tem uma cena muito forte liderada por artistas, com espaços de projeto e espaços geridos por artistas. Ao mesmo tempo, a maior instituição também está no Porto. Por isso, é interessante ter esses dois lados a coabitar no mesmo contexto. Lisboa tem vindo a ter mais iniciativas geridas por artistas — e há mais instituições do que no Porto. Por exemplo, as galerias comerciais são mais fortes [e mais numerosas] em Lisboa do que no Porto. Mas há algumas no Porto que têm tido um lugar mais importante, não apenas na cidade, mas no país e internacionalmente, ao longo dos anos e ainda hoje. Diria que estas dinâmicas estruturais são mais fáceis de identificar.
MK: E a Galeria Municipal tem um papel a desempenhar nessas dinâmicas. Como vês esse papel? É algo em que estejas a pensar? Ou está ainda por definir?
JL: Claro, tenho de pensar nisso. É esse o meu papel e o da minha equipa enquanto Direção de Arte Contemporânea da cidade. Temos a galeria, a fonoteca e, depois, a plataforma Pláka — que é bastante complexa e também funciona fora do Porto e de Portugal, o que talvez a torne menos conhecida fora da cidade, mas que tem uma enorme importância para o contexto local.
Somos também uma entidade financiadora, através da Pláka, com bolsas de produção para artistas; bolsas de programação, que vão para espaços geridos por artistas e outros espaços independentes; bolsas para apresentações internacionais de artistas, curadores ou espaços geridos por artistas se forem coletivos; e bolsas de residência.
Além disso, temos a coleção — o programa de aquisições — que também gerimos. As aquisições têm duas vertentes: uma em que os artistas se candidatam, submetendo até duas obras para serem compradas a cada ano, e outra em que o comité compra diretamente às galerias do Porto. Recentemente, desde que cá cheguei, expandimos o programa de aquisições para adquirir obras apresentadas nos espaços da nossa galeria, algo que estava a faltar no mapeamento exaustivo das actividades de exposição e produção da cidade através das políticas de coleção/aquisição.
Estamos também a preparar algumas novas iniciativas: duas novas salas de exposições que vão duplicar o número de exposições que podemos apresentar. Em Outubro, vamos abrir um novo espaço expositivo no edifício da Galeria Municipal do Porto, dedicado exclusivamente a artistas que vivem no Porto e que ainda não tiveram uma exposição individual institucional. A ideia é utilizar este novo espaço como um laboratório: manter uma abordagem experimental, enquanto se proporciona um apoio institucional em termos de recursos para o artista. Isso foi algo que identifiquei imediatamente: queria ter um espaço onde pudesse apoiar artistas que aqui residem e que ainda não tivessem tido a sua primeira individual numa instituição. Desta forma, conectamos os espaços experimentais geridos por artistas / curadores com a estrutura institucional. Tinha o problema da escala das galerias atuais, uma com 1200 metros quadrados e a outra com 450, que eram demasiado grandes para uma primeira exposição institucional. Este novo espaço expositivo tem cerca de 200 metros quadrados, o que é perfeito para o que queremos fazer. Em 2026, vamos abrir outra galeria de exposições na parte oriental da cidade — Campanhã —, incluída num grande novo equipamento cultural chamado Matadouro, que está ser construído neste momento. Esta nova sala de exposições terá 500 metros quadrados.
Estamos também a preparar para o final deste ano um evento alargado a toda a cidade. Ainda estamos a pensar no nome, mas a ideia é criar um momento onde possamos abarcar todo o ecossistema da arte contemporânea no Porto: os espaços experimentais geridos por artistas e curadores, as galerias comerciais e as instituições. Nós, a Direção de Arte Contemporânea, temos estado a trabalhar num mapa de arte contemporânea da cidade há já alguns anos — foi iniciado pelo Guilherme Blanc. E vamos finalmente lançá-lo com este evento, que organiza geograficamente os agentes artísticos da cidade, reunindo as três diferentes tipologias de espaços e sugerindo percursos para visitar todos eles em três dias diferentes. Vai ser um evento de três dias que fará o mapeamento tanto no formato online como num objeto físico, impresso. Será uma nova forma de navegar pela cidade — de descobrir a cidade — que, esperamos, amplie os públicos da forte cena artística do Porto. É isto mais ou menos o que nós, enquanto Direção, estamos a tentar fazer: acolher e apoiar a dinâmica da cidade.
MK: Voltando à tua prática curatorial, o que é que te entusiasma mais explorar, tanto no teu papel aqui no Porto como olhando para o futuro na tua carreira como curador?
JL: Várias coisas. Continuo bastante interessado na criação de exposições. Estou muito interessado em programas de performance. Há um elemento mágico na performance — essa intensidade que mencionei antes — que me cativa muito. Também me interessa bastante relações de longo prazo com artistas. Há artistas com quem tenho vindo a trabalhar há muitos anos, e este é um tipo de relação realmente mágico, belo e muito gratificante que se pode desenvolver ao longo dos anos, enquanto ambos mudamos e, ainda assim, conseguimos manter uma troca produtiva e significativa.
Estou também interessado nesta nova expansão do meu âmbito de atuação: não ser apenas um curador, mas também um agente de arte: como estar muito enraizado num contexto específico, como dialogar, sustentar e fortalecer. Este contexto é algo novo para mim, nunca trabalhei assim, por isso é muito entusiasmante.
Também me interessa misturar disciplinas. O evento que mencionei a 28 de Setembro terá imagem em movimento, som, comida e outras linguagens que podem estar mais associadas à performance, mas que também se organizam como uma exibição de filmes no sentido de colocarmos diferentes coisas em sucessão e organizá-las em blocos. Para mim, a criação de algo que não é muito claro para ninguém, nem mesmo para mim, é muito empolgante — ver o que surge daí. Talvez, se tivesse que resumir a uma coisa, o que mais me entusiasma como curador é experimentar.
MK: Muito bem. Muito obrigada por esta conversa e boa sorte com tudo. Parece que tens um ano excitante pela frente.
JL: Obrigado pelo interesse. E venham visitar-nos!
Maria Kruglyak é investigadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022. Atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.
Tradução do EN por Gonçalo Gama Pinto.
formas dos futuros ao redor, vistas da exposição na Galeria Municipal do Porto, 2024. Fotos: Dinis Santos. Cortesia Galeria Municipal do Porto.