Carlos Bunga: Silêncio
Não se sabia ao certo o que esperar desta exposição de Carlos Bunga (n. 1976) na Galeria Vera Cortês no âmbito da rentrée de Outono. A porta abriu-se e foi imediatamente evidente que esta seria uma das mostras a merecer reflexão crítica, por diversos motivos. O primeiro, desde logo, pelo efeito surpresa que causou. Na verdade, sob um fundo espacializado branco, materializa-se um conjunto de obras negras, cinzas e azuis escuras, densas, de texturas variadas, colocadas no solo ou, na sua maioria, em suspensão num espaço extremamente bem trabalhado e ocupado. Não constitui surpresa que Bunga opere bem a espacialialidade, nomeadamente, a dimensão arquitectónica, normalmente utilizando cartões e outros materias coloridos, ou os jogos cheio-vazio, ou mesmo a subversão de elementos, como a arquitectura dentro da arquitectura. Mas agora o negro — a forma por excelência, o limite, a densidade — tomou tudo. E bem.
O título — Silêncio — encontra ressonância nas peças e na instalação no seu todo, que se ergue com uma coerência e organicidade bem consguidas, concretamente, na relação entre a parte e o todo da composição. Este poderá ser um segundo motivo laudatório relativamente à exposição em causa. Mas o título poderia também ser luto, ressaca, ou vestígio, por hipótese. Existe qualquer coisa de trágico nesta sala, sem retorno e sem facilitismo. Não há transitividade no silêncio, como não existe transitividade na morte. São em si mesmos, quer dizer, sem mediação ou necessidade de complemento.
Trata-se de uma sensação de luto patente, por exemplo, no vestígio da rede meio desfeita, nas caixas de madeira com matéria pastosa negra no seu interior, nos tecidos pendurados pintados, destacando-se um cobertor de campanha. Os tempos são, mais do que difíceis, profundamente dramáticos, perigosos e beligerantes. O mundo foi-se transformando num lugar ruidoso e muitas vezes inóspito. As cidades concentram pobreza, lixo, abandono, injustiça e muita indiferença, decorrente, em larga medida, desta infeliz banalização. Já no final dos anos 80, Umberto Eco, na obra Viagem na irrealidade quotidiana (1986), equiparara o fim do segundo milénio ao final do primeiro, remetendo para um neomedievalismo, já que se verificava o desmantelamento de uma grande ordem/paz mundial, ao mesmo tempo que temos de superar os problemas inerentes ao desenvolvimento tecnológico: produção de alimentos venenosos, poluição, desflorestação, extinção de espécies animais, etc. A própria cidade, segundo o mesmo autor, estaria a medievalizar-se, uma vez que proliferaram os ghetos, os bairros, as minorias, a fragmentação social. O ideal clássico — no sentido do desejável — não conseguia ser cumprido. Cerca de 40 anos depois, este texto continua actual.
Sabemos que Hegel e Karl Marx admitiram o “fim da História” — num sentido teleológico —, que ocorreria no momento em que as sociedades atingissem a sua plenitude evolutiva. Para o primeiro, este estádio coincidiria com o liberalismo; para o segundo, com o comunismo. Muitas voltas, como sabemos, se foram sucedendo. Mark Fisher, considerado um pensador marxista, na sua obra mais reconhecida, Capitalist Realism: Is There No Alternative? (2009), desenvolve o conceito de “realismo capitalista”, chamando a atenção para a necessidade de reenquadrar a actualidade, advertindo que precisamente dentro de um contexto capitalista não é viável a concepção de formas alternativas de estruturas sociais e de vida cultural e artística. Claro que esta bola de neve é difícil de romper, mesmo pela arte, ela própria integrante deste processo capitalista. Mas, por outro lado, ela opera como lugar das poucas possibilidades de existência metafísica que a caracterizam e que a distingem do tudo o resto.
E retornamos a Carlos Bunga e a esta exposição. Trata-se de um espaço precisamente de possibilidade metafísica e de inquietação, que se desenvolve por entre uma teia de objectos que escondem e revelam, ao mesmo tempo. O silêncio impera no depuramento da visão e na concentração do olhar nas peças. O olhar é, portanto, convergente e a forma assume-se como totalizante, sem distracções desnecessárias nem ornamento caprichoso, que, claro, também poderia ter o seu lugar e sentido. Mas não aqui. A densidade visual é destrutiva mas elegante. O luto de que atrás falámos prende-se com a evocação de uma certa impossibilidade metafísica de existência num lugar danificado e sombrio. Silêncio representa, a nosso ver, tudo isto, deixando assumido espaço para que o espectador individualmente se relacione com o que percepciona através do seu corpo — visão, movimento, altura, pensamento —, a mediação que inevitavelmente temos com o mundo e com o Outro.
Quando abandonamos o espaço há o estabelecer de uma memória visual e emocional que vem connosco. Uma exposição deve ser isto, ou seja, por um lado, a possibilidade de atingir uma qualquer singularidade no espectro de outras; por outro, o enaltecer da obra exposta e nunca a sua diminuição ou opressão. Carlos Bunga reúne ambas, tornando esta apresentação numa das mais bem conseguidas da temporada que agora abriu. Finalmente, o silêncio existe por diferenciação do som, como numa partitura musical de pausa-nota. A música pode sempre acontecer depois de tudo.
Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
Carlos Bunga: Silêncio. Vistas da exposição na Galeria Vera Cortês, Lisboa, 2024. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Vera Cortês.