5 / 21

Dozie Kanu: Preenchendo Vazios

© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7819).jpg
Maria Kruglyak

Preenchendo Vazios, de Dozie Kanu, é revigorante na contemporaneidade e subtileza emocional que revela. Patente no Espaço Lumiar Cité, na zona norte de Lisboa, trata-se de uma afirmação societal de um novo materialismo alicerçado num entendimento apurado do seu contexto, a nível local e não só. A exposição apresenta peças escultóricas que se sustentam tanto na arte como no design de interiores e de instalações, daí ressaltando uma miríade de referências multidirecionais integradas num minimalismo característico das primeiras manifestações da prática do artista. Acima de tudo, Preenchendo Vazios recorre a uma linguagem visual que se nos aparenta muito atual — um salto que vai para lá da escultura pós-moderna no campo expandido.[1]

Como já é apanágio da obra de Kanu, as peças em exposição furtam-se a qualquer facilidade de descodificação. Os seus objetos encontrados — cuja seleção se funda na intuição do artista, e não tanto numa pulsão teórica[2] — não oferecem senão pistas e referências; e, no mesmo sentido, o seu engenho e a sua destreza, bem como a curadoria, igualmente rigorosa, geram vários sentidos de interpretação. Pelo contrário, é o vocabulário visual da exposição, no seu conjunto, que propõe uma perspetiva sobre a prática atual de Kanu: uma prática que configura o início de uma nova linguagem escultórica do materialismo. (Talvez por isso me sinta tão tentada a usar terminologias obscuras e hiperteorizadas para analisar a sua obra.) Aqui, a par da simplicidade multifacetada das obras, é o exercício sobre a tensão entre o conforto e o desconforto, latente nas peças em exposição, que remete para o pós-pós-modernismo da sua prática.

Dêmos então um passo atrás, e caminhemos pela exposição um passo de cada vez. Ao entrar no Espaço Lumiar Cité, deparamo-nos com RESPAWN (2024), uma instalação que divide o pequeno espaço expositivo em três áreas distintas e cria uma antecâmara da galeria. É esta estrutura negra em MDF que nos faz desacelerar o passo, antes de começarmos a subir a escadaria à esquerda da instalação, introduzindo um sentido de gravitas e estabelecendo um contraste com a paisagem urbana do Lumiar. Subindo as escadas para o espaço expositivo principal, encontramos as três esculturas que repousam sobre RESPAWN: literal stance decrepit, regress with love (2024), uma gaiola com a porta aberta no interior da qual, em vez de um pássaro, se vê um espigão de arame farpado; lumiar, purpose oriented opp-tix (2024), um candeeiro composto pela cabeça de uma picadora de carne e por um quadro de bicicleta; e when the context of the current moment falls away (wahala tray) (2024), uma espécie de recetáculo feito com uma taça de alumínio, mármore português e aço.

Estes três objetos, apresentados num expositor alto, e ressalvando um carácter elusivo que é característico da obra de Kanu e que aqui se torna um significante da questão do inalcançável, acabam por configurar o enquadramento da própria exposição. O seu posicionamento é relevante na medida em que se relacionam com o mundo exterior: à noite, quando a galeria está fechada, lumiar lança uma sombra ampliada de literal stance decrepit sobre a parede, mostrando-se à população da freguesia, que pode não ter intenção de visitar um espaço galerístico contemporâneo. Esta sombra noturna desvela o espigão dentro da sua gaiola, conjeturando-os, na sua condição sígnica, enquanto ferramentas sociais que são utilizadas para manter alguns do lado de fora e outros do lado de dentro. Durante o dia, porém, podemos ver que estes signos se invertem: o espigão encontra-se dentro da gaiola, e já não sobre as vedações que frustram os intrusos; e permanece estático, sem voar para lado algum, ainda que a porta da gaiola esteja aberta. Talvez se trate de uma metáfora sobre a forma como as vedações, os muros e outros atos de divisão agressiva, na verdade, acabam por agrilhoar aqueles que procuram ativamente manter outros do lado de fora.

Esta inversão sígnica também desponta em seven useless flagpoles playing with gaud (2022). Posicionada por detrás de RESPAWN no rés-do-chão, é visível do topo das escadas e através de uma passagem quase oculta por entre RESPAWN do lado direito. Do andar de cima, aquilo que ressalta é a sua "inutilidade", com hastes sem bandeiras algumas, e com as esferas nas pontas a indicar a sua nudez — um eco antinacionalista da utopia autogovernativa de Kanu.[3] Vista de baixo, no entanto, reparamos nos curiosos objetos que compõem a base das hastes: um suporte de metal e plástico em forma de pirâmide, uma urna preta, uma peça de metal ferrugenta, um caldeirão com enchimento, um velho candeeiro de mesa feito do que parece ser bronze dourado e uma escultura metálica de duas partes. São pequenos objetos de vidas comuns desconhecidas, desenhados por alguém nalgum sítio — e o seu propósito esconde-se algures no mundo. Desta forma, a parte principal de seven useless flagpoles não se encontra nas pontas das hastes, onde estariam as bandeiras à partida, mas sim nos seus alicerces: os objetos-em-vez-de-terra que sustentam as hastes.

Em direta relação com RESPAWN, estas quatro peças também remetem para o tipo de materialismo com que Kanu trabalha — menos uma reanimação ou revigoração do funcionalismo, como muitas vezes se qualifica o seu trabalho, do que o novo materialismo das teorias culturais alternativas da década de 1990 e 2000 desenvolvidas por académicos como Rosi Braidotti.[4] Este novo materialismo é autorreferencial e autorreflexivo, tal como o é a cultura meme da internet, por sua vez inerentemente antimaterialista, e funda-se no entendimento do objeto modificado enquanto expressão artística popular.

Olhando pelo prisma deste novo materialismo, torna-se menos difícil interpretar as duas peças do piso superior da galeria. A peça central, Untitled (2024), constituída por cilindros de aço, placas em MDF e parafusos, é uma escultura em forma de sofá. Disposta ao centro da sala e virada para o bairro de habitação social em frente ao Espaço Lumiar Café,[5] esta peça convida-nos, por um lado, a sentar e observar a vida social que ali se desenrola (uma possível referência ao mural Neighbours, de Mariana Duarte Santos, no Bairro 2.º de Maio); e, por outro, afasta-se deste género de interação perversa com a envolvente, realçando-se o desconforto aparente do design, com o aço industrial dos apoios de braços, demasiado altos, e com as placas em MDF a tomar o lugar dos coxins. Por detrás de Untitled, encontramos uma versão espelhada bidimensional do espigão de arame farpado de literal stance decrepit,[6] suspensa na parede ao jeito de um corriqueiro retrato de pendurar por casa.[7] Esta peça, Anti-Climb Raptor Spike Reflections (2023), é bela e inquietante em igual medida: um espelho dos omnipresentes obstáculos e barreiras da nossa sociedade contemporânea que reflete as expectativas e o respeito que a própria sociedade parece associar a estes limites.

No seu conjunto, as obras de Preenchendo Vazios compõem uma espécie de interior de uma casa conceptual, com as hastes no pátio de entrada, o sofá e o espelho na divisão central, e o candeeiro de lumiar e as esculturas pousadas sobre RESPAWN a dar continuidade à decoração da sala de estar. Em conversa com o artista, torna-se evidente que o seu pensamento se alicerça na criação de espaços nos quais as pessoas se sentem em casa e no levantamento concomitante de questões desconfortáveis.[8] Não surpreenderá, portanto, que a exposição se caracterize por esta inquietante tensão conceptual de desconforto entre a realidade do mundo exterior e a natureza acolhedora do ambiente doméstico.

É um prazer ver uma exposição tão contemporânea — num sentido global, local e multicultural (e, portanto, multi-referencial) — e, ao mesmo tempo, tão terra-a-terra. Ainda que possam eludir o intelecto, resguardando possíveis leituras veladas e interpretações inverificáveis, as obras que compõem Preenchendo Vazios, do ponto de vista emocional, veiculam uma tensão palpável entre conforto e desconforto: um sentimento que não me largou nas semanas que se seguiram à minha visita. Mais do que qualquer outra coisa, esta exposição mostra que Dozie Kanu está a dar os primeiros e auspiciosos passos no desenvolvimento de uma linguagem visual do novo materialismo — e, quanto a mim, mal posso esperar por aquilo que o artista nos reserva para os próximos tempos.

 

Dozie Kanu

 

Lumiar Cité

 

 

 

Maria Kruglyak é investigadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022. Atualmente trabalha como redatora freelancer de arte

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro. Revista pela editora.

 

© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7819)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7879)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7846)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7867)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7842)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7858)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7854)
© 2024, Daniel Malhão. Maumaus. Dozie Kanu. (7849)

Dozie Kanu, Preenchendo Vazios. Vistas da exposição no Lumiar Cité, Lisboa, 2024. Fotografias: Daniel Malhão. Cortesia Maumaus/Lumiar Cité.


Notas:

 

[1] Em referência ao conceito de escultura no campo expandido enquanto nova forma da escultura pós-moderna, tal como teorizado por Rosalind Krauss. Rosalind Krauss, “Sculpture in the Expanded Field”, October 8 (primavera de 1979): 30–44.

 

[2] Dozie Kanu salienta que o seu processo artístico e a sua linguagem visual são sobretudo de uma natureza intuitiva. Conversa com Dozie Kanu, 16 de fevereiro de 2024.

 

[3] Numa entrevista conduzida por Jereh Das, Dozie Kanu afirma: "Acho que o futuro vai ser mais autogovernativo, com mais pessoas a assumirem a responsabilidade de si mesmas e do seu destino, por mais piroso que isso soe. […] Acho que o carácter elusivo do meu trabalho e a minha categorização pessoal vem de uma noção de autogovernação e desobediência enraizada na autoridade que tenho para me posicionar onde quer que que seja, ou até em lado nenhum." Jereh Das, “Nigerian-American artist Dozie Kanu on disrupting the norm”, Wallpaper* (4 de março de 2021).

 

[4] Ver Rick Dolphijn e Iris van der Tuin (eds.), New Materialism: Interviews and Cartographies (Open Humanities Press, 2012), no ciclo Graham Harman e Bruno Latour (eds.), New Metaphysics (Open Humanities Press).

 

[5] Conversa com Dozie Kanu, 16 de fevereiro de 2024.

 

[6] Como o artista explica. Ibid.

 

[7] Retrato corriqueiro no sentido em que era corriqueiro ter um retrato de Vladimir Lenin ou Josef Stalin nas paredes de casa na União Soviética, de Mao Tsé-Tung na China e de Kim Il Sung na Coreia do Norte (no último caso, na década de 1970, até era obrigatório).

 

[8] Conversa com Dozie Kanu, 16 de fevereiro de 2024.

Voltar ao topo