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Jonathas de Andrade: Sobrevoo

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Paula Ferreira

Contra o vermelho cor da terra, o pássaro se desgarra das mãos do seu criador. O vôo, manifesto signo da liberdade, sequestra o olhar na lentidão do bater das asas. O gesto se repete, hipnótico e fascinante, em câmera lenta. Mudam as mãos, os pássaros, muda o vermelho da terra pelo verde-mata, mas o gesto permanece o mesmo: homem e animal, em um trabalho de comunhão, ensaiam libertar-se um ao outro. Sobrevoo, exposição mais recente de Jonathas de Andrade, é um respiro aliviado no tempo corrente.

Começa na peça visual Columbófilos, a qual, sem narrativa, percorre o potencial intrinsecamente poético da relação homem-animal, representado a partir da performática simbiose entre os membros da Associação Columbófila do Porto e os seus animais companheiros, os pombos. Em uma tela de grande dimensão, o curta-metragem é projetado no foyer 2 do recém re-inaugurado Batalha Centro de Cinema — em uma visita à noite, as cores projetadas se espelham no chão estrelado, o escuro preenche o espaço e o filme se torna ainda mais cativante. Convidado por Guilherme Blanc, Diretor Artístico do Centro, a realizar seu primeiro filme fora do Brasil, Jonathas de Andrade virou o olhar sobre temas já presentes em seu trabalho e encontrou, ao cruzar o Atlântico, uma realidade ao mesmo tempo familiar e estranha.

À procura de trabalhar a partir da resistência e da força dos grupos e coletividades que ainda se mantêm, frente aos fenômenos de especulação imobiliária e gentrificação na cidade do Porto, o artista encontrou na cultura do clubismo e nas históricas associações da cidade um campo fértil à criação e propício a abarcar as derivas artísticas tão características em seu trabalho. Durante a curta residência comissionada pelo Batalha Centro de Cinema, o contato com essas realidades particulares do Porto resultou em dois filmes curta-metragens, Columbófilos, realizado com a participação dos sócios da associação supramencionada, e Estação Rádio Bouça, protagonizado por Manuel Monteiro e Ângelo Monteiro, que fazem parte da Associação de Moradores da Bouça e partilham experiências como radialistas. Juntos, os filmes compõem a exposição Sobrevoo e, em um delírio fictício-documental, invocam o sentido do fazer coletivo.

Em conversa com Jonathas de Andrade, percebo em si uma qualidade, quiçá intrínseca, como um traço pseudo-hereditário de quem é filho de professora da rede pública de ensino e, inconscientemente, colheu aprendizados desse ofício: a fé, em um sentido freireano do termo, nos homens. Uma fé, ou crença, de quem privilegia o fazer com ao fazer sobre. De quem cria a partir de uma abordagem dialógica, e persegue caminhos que só podem ser trilhados coletivamente. Há, em muitos de seus processos artísticos, uma particular permeabilidade que se estabelece, dá o tom e ajuda a compor o universo sensível do artista.

Desde O Levante (2013) — filme em que a “câmera é que corria atrás dos carroceiros, e não o contrário”, como conta o artista —, tal universo parece ter sido coerentemente construído a partir de uma imprescindível sensibilização em relação ao lugar do Outro e as formas de representá-lo. Em seu fazer, Jonathas de Andrade contraria a perspectiva etnográfica objetificante, e cria espaço para que este Outro extrapole o papel de objeto e se torne sujeito com poder de agência, cujas vontades se expressam na obra. Nessa abordagem, as experiências e ações que compõem o processo criativo pavimentam o caminho de transformação da prática artística em ferramenta estético-política — e, ainda que o artista não recorra conscientemente a nenhuma metodologia pré-definida ou trabalhe a partir de uma teoria pedagógica concreta, é no legado de movimentos culturais revolucionários, como o Teatro do Oprimido, do dramaturgo Augusto Boal e da pedagogia freireana, que a sua obra ecoa.

Na assimilação espontânea das proposições desses movimentos — os quais primam pela inclusão de sujeitos outros nas ações transformadoras da realidade, seja pelo teatro, como no caso do Teatro do Oprimido, ou pela ação cultural pedagógica, no caso de Paulo Freire —, é que a obra de Jonathas de Andrade convoca os trabalhadores quando discute a questão do trabalho, os carroceiros quando discute o direito ao espaço urbano, os membros das associações quando re-imagina o futuro possível das cidades, e etc. É no encontro entre sujeitos e mundo que a realidade é sensivelmente desafiada, e que o seu trabalho se desenvolve enquanto crítica poética. Deste princípio fundamental, nascem os dois projetos realizados durante a sua residência no Batalha Centro de Cinema.

 

Em Estação Rádio Bouça, o jogo dialético se completa na interação câmera-personagens-espectador. A primeira circunscreve um movimento ao redor dos dois protagonistas em cena: dois homens, em lados opostos de uma parede escura, conversam entre si com o auxílio de aparelhos radiofônicos. Nos círculos que a câmera desenha, o diálogo entre ambos discorre em uma narração intercalada entre pedaços de histórias, imagens e anedotas cotidianas — como se olhassem para um álbum de fotografias desvanecentes e o nexo entre as palavras se tornasse tão frágil quanto as memórias sobre as mesmas. Nas lacunas cognoscíveis desta conversa, o espectador, com a sua imaginação, termina o jogo.

A premissa do artista para a realização do filme foi juntar, no palco da Associação de Moradores da Bouça, dois de seus membros, Manuel Monteiro e Ângelo Monteiro, cujas experiências enquanto radialistas era uma coincidente partilha, e, então, com auxílio de um trilho circular montado no espaço, filmá-los em uma conversa improvisada. Na ausência de roteiro, o filme nasceu dos deslocamentos imaginativos que ambos operam sobre aquele lugar, onde infinitas memórias coletivas se formaram desde a fundação da Associação, no ano imediatamente após o 25 de Abril.

Ao lado da projeção, situada no escuro intimista da Sala-Filme do Batalha Centro de Cinema, repousa uma mesa-vitrine, onde algumas das imagens projetadas no filme se juntam a muitas outras pertencentes ao acervo da Associação. Entre este objeto, o filme e a desarticulação do diálogo das personagens, há um espaço intencionalmente deixado por preencher. O sentido conciliador é, aqui, tão difuso quanto a mente é capaz de imaginá-lo.

Assim, o filme se torna evocativo, mas nunca cai nas armadilhas do didatismo. Coletivo, ele ainda se mostra capaz de acolher os imaginários individuais. Político, porque, no plano de fundo, celebra uma histórica associação que persiste enquanto ponto de encontro na cidade, ainda assim se afirma enquanto uma poética homenagem. E, por fim, Rádio Estação Bouça oferece um inequívoco potencial crítico-lúdico, uma vez que remonta aos movimentos culturais revolucionários e proporciona aos sujeitos em cena representarem a sua própria história e a de seus coletivos.

Nesta miríade de encontros entre sujeitos e mundos, a obra de Jonathas de Andrade oferece alento em uma contemporaneidade marcada pela individualização da experiência humana. Nos tempos incertos que correm, nos quais o sentido histórico parece vacilar ante a iminente ameaça ao futuro, ela parece nos querer fazer lembrar que, antes de indivíduos, somos sociedade. Incompletos em nossa solitude, é ao nos aproximarmos dos outros que significamos a nossa presença no mundo. Sobrevoo, ainda que não possa frear o trote da especulação imobiliária no Porto, o golpe da gentrificação dos seus espaços e as lamentáveis consequências que daí surgem e hão de continuar a surgir, é capaz de oferecer a imprescindível possibilidade de, por um momento, imaginarmos outros futuros possíveis.

Ainda, faz nascer dúvidas que hão de nos surrupiar a mente e fazer remexer as ideias, ainda que não pretenda o paternalismo da resposta pronta. Até porque, nada soaria tão distópico quanto um mundo sem perguntas.

 

Jonathas de Andrade

Batalha Centro de Cinema

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

Este texto foi escrito em português do Brasil.

 

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Jonathas de Andrade, Sobrevoo. Vistas da exposição no Batalha Centro de Cinema, Porto, 2023. Fotos: Filipe Braga. Cortesia Batalha Centro de Cinema.

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