Ana Manso: Menstruum
A Pintura em Estado de Sítio
I
Atravessamos um momento cultural revulsivo em que as noções estéticas que dominaram a contemporaneidade parecem ter volatilizado. As narrativas e os rituais mantêm-se inscritos nas práticas sociais, aparatosos, frequentemente heroicos, mas esvaídos de espírito de risco, de efetiva vitalidade, de capacidade transformadora aos diferentes níveis. A vaga geracional mais jovem, inventiva, participante ativa nas redes policentradas, multidirecionais e imediatistas da cultura digital é indiferente à rigidez das estratificações categoriais que sustentam monopólios vorazes e esteticamente improdutivos. E tudo isto está certo e é característico de momentos de transição sociológica em que prevalecem como quadro sintomático o dinamismo da agitação, a mascarada das linguagens, uma certa crise da nomenclatura que resiste à definição. E desta circunstância a cavalo entre culturas brota todo o imaginário da hibridez, seja no campo da biotecnologia, da política ou do género, prevalecendo a experimentação, as subjetividades e a autoconstrução dentro de parâmetros globais moventes mas ainda balizados pela lei, pela ciência, pelo mercado, pela enfatização das modalidades de segurança.
Como sempre acontece, e justamente recorda Giorgio Agamben (um pensador atualmente proscrito em Itália por ter rompido com o pensamento único no período calamitoso da pandemia do COVID19) no texto O que é o Contemporâneo?, os fenómenos que marcam a singularidade produtiva de um momento histórico e definem a pontualidade do real resultam praticamente impercetíveis, escapam ainda à taxinomia vigente, desenvolvem-se discretamente em zonas de sombra, na dobra húmida das regiões limítrofes aos acontecimentos de maior visibilidade, para que o seu desenvolvimento se realize por completo e alinhado por um tempo próprio.
Ocorre-me esta reflexão sobre a emergência das formas em gestação a propósito da nova exposição de Ana Manso que, não sendo uma artista obscura nem periférica, mantém uma ténue linha de investigação que coloca em circulação um espectro alargado de regimes de figuração sem se fixar em nenhum deles. Subordinando o métier tradicional da pintura a subtis desvios iconográficos e a horizontes referenciais ambíguos, o trabalho de Ana Manso dissolve as formas reconhecíveis e agrega múltiplos gestos da história disciplinar da pintura, num discurso de mão dupla sobre as manifestações da plasticidade e o devir das figuras, perseguindo a coerência de um programa conceptual particularmente sensível ao entorno e à matéria, autónomo nas narrativas e desenvolto de retórica.
II
A exposição de Ana Manso na Galeria Pedro Cera com o título Menstruum, termo em latim suficientemente equívoco (solvente, diluente, medium, menstruação) confronta-nos com uma experiência espacializada das formas radicada na pintura (mas que não se esgota nela) e um diálogo entre o corpo da pintura e o do espectador rigorosamente calculado.
Logo à entrada, a vedação de madeira quadriculada oferece um obstáculo físico ao visitante, obrigando-o a um acesso lateral, ao mesmo tempo que não impede de entrever o interior da exposição. A artista institui de imediato uma disjunção entre a experiência do corpo e a perceção, princípio de mise à distance organizador de toda a mostra. O elemento de construção remete para uma treliça (muito semelhante a um gradeamento disposto no atelier da pintora) e evoca o ambiente de um pátio doméstico, a prática amadora da jardinagem, uma hera ou outra planta trepadeira em crescimento vertical, refreando a expectativa da pintura.
Os jogos que Ana Manso estabelece especificamente entre a pintura, o espaço tridimensional e a arquitetura estruturam a linguagem de condensações que a artista vem desenvolvendo desde 2006. E vêem-se confirmados nas exposições anteriores Não significam nada quando as faço — só uma confusão. Com o passar do tempo encontro algo onde me agarrar — como por exemplo — como — como... no Uma Certa Falta de Coerência, no Porto, em 2016; ou no mural Uvas concebido para a exposição Agar na Galeria do Paço/Universidade do Minho, em Braga, em 2019.
O trabalho pictórico de Ana Manso promove um conjunto de relações materiais complexas problematizando as inferências entre o formato da tela, a disposição relativa entre as telas, a volumetria do suporte e o espaço percetivo do espectador. Sendo uma pintora que visivelmente domina as técnicas da pintura e é virtuosa no ofício (mas nisto não teria originalidade), Ana Manso redefine constantemente o que compreendemos por espaço pictórico na contemporaneidade, provocando o género histórico da paisagem, numa incursão transhistórica pela musicalidade da composição em Vladimir Kandinsky, o informalismo gestual do expressionismo americano ou a paleta aquosa em escorrimentos que recordam a color field painting de Morris Louis, estendendo a densificação dos motivos ao limite do decorativismo (não assenta justamente o génio da art déco na mesma platitude de Morris Louis?) e a extremos geográficos como a pincelada volante e caligráfica da pluma no cânone da pintura oriental.
A pincelada da caligrafia e a linha do desenho encontram-se invariavelmente latentes (e mais nítidos na exposição Projetos Contemporâneos no Museu de Serralves em 2017, por exemplo) como uma camada que se articula com as outras camadas, quase por osmose, numa pintura dominada por ondulações, sobreposições e colagens. Entre a alusão aos efeitos de colagem, repetem-se — em exposições anteriores — modestos retângulos no interior da pintura como um cromo que isola uma ilustração, post-its ou recortes que lembram exercícios manuais com papel de lustro no ensino pré-escolar.
A pintura profusa de Ana Manso aparenta oferecer-se como matéria cordata ao olhar impaciente. Mas iludindo discorrer vagamente sobre anémonas, ondulações suaves em gestos amplos e velaturas alternadas com a pincelada sincopada que engendra padrões, trata-se — ao invés — de uma pintura culta, simultaneamente hermética e sensualista, de uma beleza convulsa. Dominada por uma paleta de cores marítimas, florais e cítricas, as telas evocam ambientes aquáticos mantidos numa tensão oculta opondo escalas contraditórias entre os elementos ampliados que sugerem a observação microscópica e o carácter torrencial ou magmático.
As cripto-paisagens de Ana Manso são, na verdade, enganosas. A artista recorre, num momento inicial, ao tie-dye (técnica têxtil que implica amarrar os tecidos num processo de tingimento com um controlo mínimo do resultado), tintando as telas (algodão, linho ou, a tela de menores dimensões da exposição, em seda) antes de uma operação sequencial de lavagem do tecido, passagem a ferro e armação, conservando a superfície da tela marcas indefetíveis de vincos e algum engelhado. Mantendo tacitamente os vestígios de uma violência contida na invisibilidade deste processo de pigmentação, mas também na sobreposição dos elementos atmosféricos (cúmulos de nuvens, plumagens, correntezas fluviais ou subaquáticas), dos arrastamentos de tinta e dos desenhos de linha deixados à passagem do pelo da trincha, as várias camadas de pintura compõem estratos de figuração e enredos que emergem num regime de intermitência, com qualidade fragmentária e numa tessitura de ressonâncias, dobrando e desdobrando os véus, numa deambulação ambivalente entre a sensação da profundidade de campo e o deslizamento à superfície. E, com isto, é uma pintura que intensifica a experiência da transmutação da matéria e a realidade tangencial do continuum da metamorfose das figuras.
Alguns elementos sugerem formações vegetais, articulações ósseas, fenómenos meteorológicos, enunciando pistas para uma antologia da morfogénese. Existe nestas imagens (se nos permitirmos a simplificação de classificar como imagens o constructo da pintura sustentado, nos séculos, por um ofício votado ao tempo e ao contacto com a matéria num suporte) um conhecimento aturado e discreto que transporta a informação específica da observação herdada da exactitude das ciências naturais, desde a anatomia, a botânica e a geografia. Em Ana Manso, a precisão das configurações impossibilita o risco do lírico, salvaguardando as possibilidades surrealizantes do lúdico e do riso.
Vários frisos traduzem a aprendizagem dos ritmos simultaneístas em Sonia Delaunay (e as suas declinações na art déco e na pattern painting), outas telas mais paisagísticas em que a massa de gravidade afronta a volúpia dos motivos ascensionais recorda a orquestração telúrica e o folclórico em Marc Chagall, a abastança da mesa nas naturezas mortas flamengas (com a plumagem das peças de caça dependuradas, os elementos vítreos e os reflexos cerâmicos cavos, a textura escamosa dos peixes, os bagos das uvas minerais e as cascas rugosas dos citrinos) ou a herança hispânica dos floreros barrocos (autênticos tratados de flora na ilustração exata das espécies) que animavam as bodegas castelhanas.
III
Mas esta correnteza magmática parece reconduzir cada uma das telas de Ana Manso que formam a série desta exposição Menstruum, a um momento de abertura sobre um mesmo e único lençol de pintura que ultrapassa amplamente o limite dos enquadramentos particulares. Como se espreitássemos por oráculos de uma nave uterina que atravessa os declives das mil e uma léguas submarinas em Jules Verne ou acompanhássemos o itinerário de uma sonda ultrassónica que reporta os abismos da physis inacessíveis à nossa presença e à visão desarmada do olhar humano. Todos os elementos fragmentários parecem reverberar em cintilações, reflexos, arrastos e tintagens que confundem o perfil dos elementos e a sua individualidade, num jogo incessante de contágios. Alguns momentos recordam a cianotipia ou as solarizações na fotografia experimental de Man Ray explorando a qualidade química, abrasiva, a inversão laboratorial entre a figura e o fundo, produzindo inesperadas sombras e auras irreais em volta dos objetos; ou ainda as sequências proto-cinematográficas que documentam a germinação de plantas em Germaine Dulac ou os filmes de divulgação científica de Jean Painlevé que descrevem o comportamento da microfauna e da flora, os prodígios da ovulação e da floração, decompostos em slowmotion, tornando percetíveis os movimentos do mundo natural insondáveis ao olho humano desaparelhado. Se a pintura de Ana Manso deduz uma influência latente da fotografia e do cinema de vanguarda, será então nestes experimentos inclassificáveis apostados na observação técnica (e menorizados pelo manto da história das artes), que descobre os seus interlocutores mais secretos.
Ao mesmo tempo, em Menstruum as telas, numa manifesta profusão de escalas e formatos (retangular ao baixo, ao alto, um díptico constituído por duas bandas estiradas), coabitam num ambiente cromático subtilmente terroso com cor deduzida a partir dos elementos cenográficos em madeira de pinho na exposição que as desloca para um plano comum de luz tamisada (próximo da amenidade de uma carnação), evitando impercetivelmente o nivelamento pela hipervisibilidade moderna do white cube. E, com isto, a pintura de Ana Manso trata mais profundamente dos efeitos óticos da refração da luz, em gradativos de influências mútuas e contaminações, do que da mancha de cor pura como verificamos na tradição pop. Ana Manso está mais próxima da parentela de Goethe na sua busca incansável, metódica e científica da planta primordial (Urpflanze) ou da observação materialista dos fenómenos da luz natural (e os seus minúsculos trânsitos) pelos impressionistas do que da industrialidade da pintura concentrada na factualidade visível e nos subterfúgios da comunicação visual.
Mas existem outros elementos cenográficos na exposição. Além da treliça inicial, uma coluna em madeira de pinho foi instalada no meio da galeria. Trata-se de uma presença subtil (idêntica a outra coluna pré-existente no espaço) e estranha, que no seu monovolume autoportante remete para a escultura minimalista e instaura um discreto centro de gravidade. No entanto, as estrias verticais da matéria lanhosa e os acidentes sinuosos de formação natural, não deixam de rimar com as ondulações desdobradas, multiplicadas, em ramificações derivativas na pintura gestual de Ana Manso. Nalguns trabalhos mais antigos, a artista parodiava já a tradição do trompe-l’oeil, convocando a apetência histórica da pintura em — por via da habilidade oficinal que persegue a ilusão de ótica —, mimetizar outros materiais ausentes, mais nobres (o damasco), duradouros (a pedra) ou imensos (o firmamento). A madeira com os seus veios irregulares faz a superfície da tela simular a tábua, suporte anterior no curso do desenvolvimento da disciplina no Ocidente.
Uma segunda treliça disposta na diagonal relativamente à parede da galeria surge no final da exposição, num falso espelhamento da primeira. Na parede enquadrada pela segunda treliça (que volta a sugerir uma planta trepadeira, a arborescência da natura, a derivação rizomática), a forma repetida da figura de um laço remete para um desenho específico no conjunto de carimbos dos estojos escolares com que as crianças animavam outrora os seus desenhos, repetindo mecanicamente na folha a mesma figura incorruptível, inventando ritmos e levitações. Este laço, de nó leve, reportando à técnica de pigmentação têxtil do tie-dye, constitui também uma vaga alusão ao sinal matemático do infinito, reinterpretado tantas vezes como no penteado em cornucópia de Madeleine Elster em Vertigo de Alfred Hitchcock. O desenho dos cabelos prefigura a vertigem. Como aqui a vertigem é a da pincelada sem princípio nem termo, em aberto. Mas o motivo multiplicado do laço na parede (que ressurge em várias telas como um carimbo que profana o valor atmosférico da pintura ou revisitado no gesto sumário da pincelada) sofreu uma mudança estratégica de escala: encontra-se aumentado, vendo-se catapultado para o estatuto de elemento lúdico no espaço, repetido a ritmos regulares, no décor de um salão ou na parede da sala de aula.
Promovendo a convergência de universos antinómicos (o científico, a expedição, o doméstico, a mnemosine), mantendo sub-repticiamente a tensão do confronto e desmontando as centralidades, o trabalho de Ana Manso é político sem procurar sê-lo. E Menstruum constitui uma estação circunspecta e um ensaio desprendido sobre as encruzilhadas da condição atual da pintura, comentando a estratificação dos referentes e a miríade de estímulos sem escala e liquefeitos (menstruum) próprias do zeitgeist encantatório em que nos perdemos e do abismo fecundo de possibilidades em que nos encontramos.
João Sousa Cardoso é Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes [Sorbonne]. Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement [1967–2007], orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas [prefácio de António Guerreiro] e A Espanha das Espanhas [prefácio de Jacques Lemière] pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.
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Ana Manso: Menstruum. Vistas gerais da exposição na Galeria Pedro Cera. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Pedro Cera.