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Performances, Projeções, Debates e Redações

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Paula Ferreira

O Corpo no Centro

 

Há duas presenças que convocam a atenção de quem adentra a exposição Performances, Projecções, Debates e Redações: uma é a imagem de ORLAN vestindo a sua própria nudez enquanto caminha entre transeuntes manifestamente surpresos; a outra é o burburinho de vozes, maioritariamente de homens, que ecoam em atropelo. A primeira trata-se de uma impressão sobre tecido semi-translúcido que faz de cortina, posicionada logo à entrada, como uma passagem obrigatória para quem deseja avançar pelo espaço. A fotografia impressa remonta ao registro anônimo da performance S’habiller de sa propre nudité / Vestir-se com a própria nudez, desta artista francesa, realizada na Praça da República das Caldas da Rainha, em 1977, em ocasião dos IV Encontros Internacionais de Arte em Portugal. Por sua vez, o cacofônico murmurinho, segunda presença que surpreende o visitante, tem uma origem de mais difícil assimilação: advém de um conjunto de projeções em vídeo que inundam o espaço da Rampa em uma sonoridade de ímpeto fervoroso.

Atravessando a cortina com a imagem de ORLAN, um projeto expositivo circular se revela: percorrendo as paredes do espaço, há primeiro um texto de autoria de Egídio Álvaro, L’Artiste est un Catalyseur, datado de 1977, mas nunca publicado. A seguir, ressurge a artista francesa, desta vez apresentada a partir de pedaços fotográficos do seu próprio corpo que, impressos sobre contraplacado, foram vendidos no mercado de peixe das Caldas da Rainha, também durante os IV Encontros Internacionais de Arte em Portugal. Dando continuidade à composição deste percurso circular pela ampla sala central da Rampa, um conjunto de materiais visuais e de comunicação social dividem as paredes com telas de projeção que, sobrevoando em proximidade, reproduzem, por vezes em escala quase real, outros registros videográficos e fotográficos que remontam especialmente à prática da performance-arte em Portugal durante a década de 1970.

No centro da sala, uma sutil convulsão temporal se denuncia pelos incontáveis fragmentos de louças partidas que repousam sobre o chão. São reminiscências da performance realizada a propósito da inauguração, Prelúdio Febril, em que a artista Bárbara Fonte, vestida de preto e com peças em porcelana agarradas a si, executa movimentos bruscos até que se partam todos os objetos que lhe pesam o corpo, abandonando posteriormente o que resta deles naquele espaço circunscrito por registros visuais de outros tempos. O visitante se encontra, assim, diante de um passado-presente, presente-passado ou, ainda, lembrando o futuro — como alude a escritora inglesa Angela Carter, em Bread on Still Waters, crítica publicada após a sua visita aos IV Encontros Internacionais de Arte em Portugal, e reproduzida em outra das paredes da exposição.

Tal sobreposição de temporalidades é um primeiro aspecto fundamental para navegar Performances, Projecções, Debates e Redações, e resulta da linha de trabalho da curadora Paula Pinto, cuja investigação acerca do espólio do crítico de arte Egídio Álvaro (1937 - 2020) tem dado origem a — dentre outros projetos, como o ciclo Lembrar o Futuro e a plataforma Performing the Archive —, exposições em que a produção de arte contemporânea formula questionamentos acerca da inscrição histórica do passado artístico revelado pelo acervo. Ao extrapolar as funções tradicionais do trabalho de arquivamento, sua investigação curatorial se complementa na ativação deste espólio através de convites lançados a artistas contemporâneos. Recuperar, documentar e ativar são os três eixos de um trabalho que busca exceder a função de “pacífico testemunho” deste vasto arquivo sobre a produção artística realizada em Portugal, principalmente no período a seguir à conquista da democracia.

 

ORLAN, S’habiller de sa propre nudité/ Vestir-se com a própria nudez, Praça da República, IV Encontros Internacionais de Arte em Portugal, Agosto 1977. Autor desconhecido, ampliação fotográfica sobre tecido, 265x180cm. 

 

Notadamente inclinado ao registro das práticas em performance-arte, o espólio de Egídio Álvaro se demonstra central à assimilação e compreensão do ânimo revolucionário e experimental que assinalou as manifestações artísticas e as iniciativas culturais surgidas concomitantemente e a seguir ao 25 de Abril de 1974 — bem como ao reconhecimento de outros artistas e agentes que colaboraram para o estabelecimento das práticas e do pensamento da arte contemporânea no país. Ativar esse arquivo, como tem sido proposto pela investigação curatorial de Paula Pinto, é também uma maneira de virar o tempo ao avesso, aprendendo o presente a partir do passado, com o olhar projetado sobre o futuro.

Circunscrito no espaço construído na Rampa, por entre o vasto conjunto de materiais históricos que ali se concentram, é também ao corpo e à presença que convoca a exposição. Não por acaso, dentre os estímulos que se sobrepõem no espaço, se destacam as vozes que, fervorosamente, debatem as distinções entre a arte e a pornografia, de maneira que o visitante parece convidado a participar na calorosa conversa. Dificilmente identificáveis em meio ao falatório, duas destas vozes correspondem às de Túlia Saldanha e Egídio Álvaro tentando criar um diálogo com um grupo de homens no espaço público — que, aqui, estão reproduzidas a partir de um registro em vídeo de Ursula Zangger, a quem deve ser creditada grande parte da documentação visual sobre os Encontros Internacionais de Arte em Portugal.

Tal dimensão humana instigada pelas vozes está também presente no diaporama que projeta fotografias, com a mesma autoria, dos debates promovidos durante as quatro edições dos Encontros. Apesar de serem a preto e branco, estão em uma escala quase real e ocupam a maior parte da parede central da galeria, o que as torna estranhamente relacionáveis. Como se de um duplo se tratasse, a experiência da arte enquanto experiência estética que destitui o espectador da função de mero observador impassível, que o desafia e o solicita, está simultaneamente presente nas ações, performances e registros exibidos na exposição, assim como na relação que se estabelece com quem a visita.

Também a desmaterialização da obra de arte, ou a “transferência do foco do objeto artístico para o corpo”, como define a curadora no texto da folha de sala, assume, em certa medida, uma conotação que beira a literalidade. Não há, dentre o que se apresenta exposto, materialidade a que recorrer, os registros trazem um tempo já passado, e o presente vacila como um fantasma, entre o que já aconteceu e o que ainda pode vir a acontecer. O corpo está no centro, e a atenção deve deambular e percorrer os documentos, registros, sons e todas as imagens que se dispõem à volta, indo até ao fim — que, a depender da intuição do visitante, pode levar ou não a uma sala imersa na penumbra, onde, ocupando uma parede quase em totalidade, são projetadas fotografias do negro Banquete, de Túlia Saldanha, realizado no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, em 1976.

Como um espectro, Performances, Projecções, Debates e Redações recupera o efêmero e reaviva o rompante transgressor do período que marca o “surgimento” da arte contemporânea em Portugal, ao mesmo tempo em que, emaranhando os tempos, questiona o que ainda há para ser aprendido. Trata-se de uma exposição que exige atenção, pois somente assim se revela a potencial dimensão de sua força — que reside na sutileza das constelações e relações que ali se desenrolam. Entre uma performance e o seu registro; entre a documentação do passado, a sua inscrição crítica na história, e a sua projeção no futuro; entre os limites da ação artística e o lugar ocupado pelo público; entre a imagem e a sua assimilação enquanto ferramenta estético-política; entre a liberdade inequívoca da arte e sua capacidade de comunicação com a sociedade, e além.

 

Rampa

Paula Pinto

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Em 2023, realizou a curadoria da exposição Bandeira Branca, na Galeria Irmã Feia, e o ciclo de cinema Escrever a Liberdade, no Museu do Aljube. Foi assistente curadora na Anozero: Bienal de Coimbra, edição de 2024.

 

Este texto foi escrito em português do Brasil.

 

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ORLAN, Vendre son propre corp/ Vender o próprio corpo, impressões fotográficas de partes do corpo recortadas e coladas sobre contraplacado, dimensões varáveis, 1977. Vistas da exposição na Rampa, Porto, 2024. Fotos: Paula Pinto. Cortesia Galeria Alvarez.

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