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Ana Manso: Eye Massage

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José Marmeleira

O verde sobre o laranja, o laranja sobre o verde, o branco sobre o ocre escurecido. Sobreposições, velaturas, véus. Na maioria das pinturas de Ana Manso (Lisboa, 1984) em Eye Massage, na Galeria Pedro Cera, as cores aparecem sobre cores, numa profusão diáfana de planos, de fundos, de superfícies. São cores que se movem no interior, no espaço das telas, formas em transparências, etéreas. A impressão de movimento é tão cativante que, por momentos, julgar-se-ia que estão à volta do visitante, à beira da sua pele, que lhe sopram. Ainda que nunca saiam da tela.

Transparência, movimento e cor. Na quarta exposição individual da artista na galeria lisboeta, é, em particular, a propósito das pinturas horizontais que estes conceitos podem ser evocados. Numa breve conversa, Ana Manso falou-nos de um loop, entendido como “uma tensão entre o movimento e o que está fixo, o que não tem início ou um fim”. Uma coisa que nunca acaba, que circula indefinidamente. Poder-se-ia acrescentar que essa circulação acontece no interior de uma grande parte das pinturas expostas. Que no interior de cada há outras pinturas que se movem, que avançam, deslocando-se para um espaço invisível. Em termos de representação, assoma a possibilidade de uma paisagem (também nas telas mais pequenas e/ou verticais), mas de uma paisagem que conterá apenas as acções, os movimentos, os tempos que a determinaram; como reflexo da presença das cores e da luz (natural e artificial) que as manhãs e as tardes dos dias foram deixando à artista.

Esta reflexividade manifesta-se nas pinturas de maiores de dimensões, nas quais as camadas de tinta surgem diluídas, finas, isentas de texturas. Nelas, brilham as pinceladas longas, onduladas sobre camadas acrescentadas previamente. Para quem observa, quem olha, quem vê tais pinturas, não é difícil imaginar o prazer da artista diante das telas, das cores, dos pigmentos, das tintas.

A graciosidade e o movimento preciso dos seus movimentos, o espanto diante dos resultados, a atenção delicada ao contacto do pincel com a superfície, o trabalho com as tintas e a texturas. As marcas de uma dança com as mãos no palco que é a tela.

O tempo é um elemento determinante. As pinturas não foram realizadas de uma vez, mas fora acontecendo, em intervalos (estiveram no atelier desde o início de 2018). Dir-se-ia, portanto que têm, também, diferentes tempos. São passagens não apenas de cores, mas de tempos e do tempo. Esta marca do tempo vem do fazer solitário da artista (ao que não temos acesso, e do qual apenas podemos deduzir processos e métodos) e, também, do exterior. Escreveu-se que as pinturas são, fundamentalmente, paisagens de uma pintura, não remetendo para referentes exteriores à própria disciplina, mas Eye Massage não se encerra na sua realidade. Inevitavelmente, as cores e as impressões do pincel criam imagens, aludem a outras coisas (água, florestas, motivos botânicos, vegetação, fenómenos atmosféricos), sem deixarem de ser pinturas. Esta ambiguidade pode, proponha-se, resultar do intenso trabalho da artista com as cores: fazem a luz entrar nas telas, criam, nas suas sobreposições e conjunções, imagens volúveis, não inteligíveis, de um certo mundo.

A série de pequenas pinturas Diariamente parece, ao mesmo tempo, enfatizar esta ideia (ao tornarem presente algo que está ausente) e fundamentar o cariz mais livre do fazer da artista. Dito de outro modo, tratando-se de pinturas, superfícies que remetem para elas mesmas, estabelecem uma relação com o exterior, pela presença inusitada de objectos tridimensionais. Tente-se descrevê-las: são pinturas verticais que reproduzem a superfície da madeira, com os seus veios, quais linhas irregulares e sinuosas. De dimensões modestas, quase monocromáticas, apontam para um contraponto visual e conceptual em relação às outras telas: cada tem colada, no canto inferior esquerdo, uma pequena imagem de um ingrediente de culinária impressa num papel.

A cada pintura a artista acrescentou, assim, um elemento preexistente: uma imagem reproduzida mecanicamente. Pertencente à obra, cada papel fica no limiar da pintura, enfatizando a pintura como superfície, mas também interrogando as suas condições de possibilidade enquanto tal. Terão estas superfícies o mesmo sentido que as telas de maiores dimensões com as suas transparências? Podemos equivaler as imagens em papel, na sua mundana discrição, ao movimento das cores das outras pinturas, ou elas atribuem à pintura um caracter mais objectual? Há um lado aleatório, contingente nesta decisão de introduzir o tridimensional, alheio a hierarquias em termos de elementos. A decisão de o fazer remonta a um gesto com que a artista se deparou e que agora transfigura: a colagem de um pequeno recorte de papel numa moldura que envolvia uma pintura. Deste modo faz entrar a realidade na pintura (o título aludirá ao trabalho diário que existe no quotidiano do atelier e da rua), afirmando os dois sentidos que envolvem a exposição: o tacto e a visão. Somos tentados a apreender fisicamente os objecto de papel, mas estes, como as tintas, os pigmentos, as marcas ondulantes do pincel, as cores, pertencem à tela. São seus ingredientes.

Ana Manso

Galeria Pedro Cera

José Marmeleira Jornalista e crítico nas áreas da música pop e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Time Out Lisboa. Lecciona Fundamentos do Jornalismo na Universidade Europeia e está a realizar o doutoramento em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL). 

 

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Ana Manso. Eye Massage. Vistas da exposição na Galeria Pedro Cera. © Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Pedro Cera.

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