10 / 16

O Material Não Aguenta: Júlio Pomar e Luisa Cunha

AJS-AMJP1807-A (141442).jpg
Isabel Carlos

No programa de exposições que o Atelier Museu Júlio Pomar tem vindo a desenvolver em torno do diálogo entre a obra do pintor e outros artistas contemporâneos e que contou já com Rui Chafes, Julião Sarmento e Pedro Cabrita Reis, Luisa Cunha é provavelmente a aposta mais arriscada e inesperada.

No centro do espaço está precisamente uma obra que nos faz compreender o porquê desta escolha: uma pequena escultura composta por um ferro vertical onde poisa uma pena de ave e que na base-plinto tem inscrito à mão as palavras: “é uma pena”. Não, não é uma obra de Luisa Cunha, saída dos seus jogos de linguagem e trocadilhos semânticos mas sim uma escultura de 2003 de Júlio Pomar.

À medida que vamos mergulhando neste diálogo, ou não-diálogo, é mais um deambular paralelo entre as duas obras, uma outra evidência se impõe: o carácter surrealizante —magrittiano, visível no jogo entre palavra e objecto que atravessa estes dois universos artísticos. E para quem conhece bem a obra de Luisa Cunha ver os seus desenhos de 1968 a tinta da china, é uma surpresa e uma descoberta.

Feitos quando a artista tinha somente 19 anos, encontramos nestas obras quase tudo o que na vida adulta como artista, que inicia tardiamente em 1993, como a obra recente cv de 2018 nos recorda subtilmente, viria a trabalhar.

Atentemos nas frases escritas por entre figurações longilíneas de corpos-palhaços e em regime de bolsas à maneira de uma banda desenhada que prefere o redondo à vinheta quadrada: "you look around and you know you must have failed somewhere" — já o inglês como a outra língua preferencial para comunicar — ou "deus é redondo e gordo é gordo: o melhor é não falarmos com ele o deus gordo saberá descer as escadas" ou ainda recuso "recuso recuso a morte cantando recuso a solidão ão ão" ou ainda "Indignar-me é o meu signo diário caminhar sobre espadas".

A incomunicabilidade, ou melhor, a entropia comunicacional, ou o desejo impossível de comunicar e chegar totalmente ao outro, as situações insólitas, o jogo, o enigma, a estranheza e a… tristeza, a criação de imagens mentais, tudo o que a obra de Luisa Cunha vem trabalhando ao longo das ultimas décadas já estava em potência nestes desenhos.

Mas como sabemos, não será com o registo do desenho que a artista se tornará uma voz única e singular na arte contemporânea; a palavra voz não é aqui usada em sentido figurado mas tal como muitas vezes na sua obra, a palavra é usada de um modo denotativo, ou seja, são nos seus trabalhos de som e nomeadamente no uso da sua voz que a obra de Cunha atinge o seu pleno, como esta exposição demonstra com obras como “Drop the Bomb” de 1994, “Dirty Mind” de 1995, “Field of View“ de 2010, ou ainda do mesmo ano, “Senhora!”.

Em todas elas a questão da percepção e da comunicação são problematizadas através do escutar, do olhar, da atenção a acções simples da vida quotidiana que resultam em mensagens aparentemente gratuitas mas que deslocam o espectador para um outro tempo e espaço e criam uma multiplicidade de interpretações, precisamente porque são expressões que operam uma espécie de tábua rasa da comunicação, como por exemplo, “Senhora! Já toda a gente sabe!” — frase repetida em loop, emitida por uma coluna encarnada colocada na parede à altura do ouvido — onde é possível inscrever e imaginar múltiplas leituras, emoções e situações. O suporte primeiro das obras, o som,  é invisível mas nem por isso preenche menos, ou cria menos espaço, nomeadamente paisagens e estados mentais e comunicacionais, mesmo que as suas colunas ou emissores de som sejam mínimos e minimalistas.

A dimensão performativa da obra de Luisa Cunha encontra-se não só no modo como por vezes nos impele a mover-nos no espaço ou a imaginarmos outros corpos em relação com o nosso — logo no início da exposição escute-se “Field of View” — mas também como nos impele a tomarmos consciência do espaço em que estamos, veja-se a obra criada especificamente para o Atelier Museu Júlio Pomar “Até Aqui”: uma regra de madeira de carpinteiro que se inicia no chão rasga o rodapé da sala, sobe na vertical encostada à parede e no topo recebe a inscrição feita à mão: “esta parede tem 2 metros até aqui mais o resto”.

“O Material Não Aguenta” é uma mostra que coloca lado a lado dois universos artísticos —  observe-se “Side by Side”, as fotos de Luisa Cunha de 2006-2007 de uma bicicleta na praia fotografada passo a passo e o “Engraçadinho da Bicicleta”, desenho livre e rarefeito de Júlio Pomar de 1963 — mais o resto.

Luisa Cunha

Atelier Museu Júlio Pomar

 

Isabel Carlos é Licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e mestre em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa com a tese "Performance ou a Arte num Lugar Incómodo" (1993). Crítica de arte desde 1991. Assessora para a área de exposições de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi co-fundadora e subdirectora do Instituto de Arte Contemporânea, tutelado pelo Ministério da Cultura. Foi membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), do Turner Prize (2010), The Vincent Award (2013), entre outros. Co-seleccionadora do Arts Mundi, Cardiff (2008). Entre as inúmeras exposições que organizou, destacam-se: Bienal de Sidney "On Reason and Emotion" (2004), "Intus" de Helena Almeida, Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza (2005), "Provisions for the Future", Bienal de Sharjah (2009). Entre 2009 e 2015 foi directora do CAM-Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

 

AJS-AMJP1807-H (155952)
AJS-AMJP1807-C (145455)
AJS-AMJP1807-I (154514)
AJS-AMJP1807-B (140201)

O Material Não Aguenta: Júlio Pomar e Luisa Cunha. Vistas gerais da exposição. Atelier Museu Júlio Pomar. Fotos: © António Jorge Silva / AMJP. Cortesia de Atelier Museu Júlio Pomar. 

Voltar ao topo