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Yonamine: PARLA_MUTE

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Ana Salazar Herrera

 

Na sua mais recente exposição em Berlim, Yonamine aprofunda e desdobra a sua longa pesquisa sobre a linguagem do billposting, ou fixação de cartazes na rua, numa instalação imersiva que ocupa as paredes e o chão da galeria. Com um título composto que junta italiano e inglês, Parla_mute abre um espaço de contradição entre a fala e a mudez, acentuando uma relação entre expressão e repressão, entre o indivíduo e o colectivo. Através da criação desse espaço de tensão, os materiais gráficos que Yonamine tem vindo a acumular ao longo do tempo são mais uma vez transformados e editados nesta amálgama de pósteres e serigrafias que cruzam referências e repetem frases chave. Numa pluralidade imagética e tipográfica, lê-se “Sunlight”, “Eurovision”, “Antarctica’s thousands of species will have no voice”, “The beautiful ones are not yet born” ou “How To Get Glass Skin in 7 Days At Home”.

A rua, à qual o artista chama "museu efémero", é a sua principal fonte de inspiração. Para esta exposição, Yonamine volta ao trabalho da colagem, com mensagens sintetizadas e simbólicas que tecem de forma rizomática o universo do artista, não só prestando homenagem à rua como também a ela devolvendo um pouco do que retirou — pelos bairros onde costumava circular mais quando vivia em Berlim, o artista espalhou centenas de cartazes com a frase “It’s expensive to be poor” ["é caro ser pobre" em português]. A estética que apropria é a da necessidade, a dos cartazes artesanais, a luta constante de tentar permanecer visível no meio de tanto ruído visual urbano. Yonamine estuda o cartaz como instrumento, as suas tipografias e as suas expressões e utilizações no espaço público. Esta análise é feita através do que chama de “esquizografia”, uma metodologia em que mistura frases e línguas diferentes para criar novos vocabulários e significados.

 

 

 

 

Ana Salazar Herrera (AS): Podes começar por descrever a instalação Parla_mute na galeria? Como pensaste a utilização do espaço? Eu gostei muito da forma como o público está completamente imerso na obra, de como usaste também a janela e de como vários cartazes enrolados num canto dão a sensação de que a instalação ainda está a ser feita, ou que poderia mudar ao longo do tempo. 

 

Yonamine (Y): Primeiro veio o título. Eu sabia que tinha a exposição, mas ainda não tinha título. A galerista, um dia, ligou-me aflita porque já estavam a trabalhar na comunicação da exposição e precisavam de um título. Nesse momento, lembrei-me de Parla_mute; foi uma frase que inventei, que me veio à cabeça — um parlamento calado, onde as pessoas não falam. Talvez porque naquele momento estavam a ser as eleições presidenciais em Angola. Eu via que as pessoas falavam e que ninguém estava a perceber nada do que se dizia. Os políticos falam, mas ninguém percebe. O mesmo partido está no poder há quase 50 anos. Eu quis dedicar a exposição aos angolanos que votam. Nunca tive a oportunidade de votar porque nunca estive em Angola na altura das eleições. Mas o que é que acontece? Quando há a oportunidade de votar, as pessoas são muito mal-informadas. É tudo feito à pressa, ou só para inglês ver. Emocionei-me por ser o meu país e procurei frases políticas, logotipos políticos. Voltei a usar o logotipo do World Food Programme sobre uma fotografia de um fotógrafo sul-africano que é o John Liebenberg. Já tinha trabalhado com imagens dele antes. Na fotografia está um grupo de mulheres a segurar um cartaz que diz “organise or starve” [organiza ou morre de fome]. Então eu quis meter a imagem do “starve” e do “organise” com o logotipo daquela instituição. Aí começou a brincadeira. Somos um país rico e há pessoas que continuam a comer nos lixos em Angola. Foi um bocado a resposta a essa minha Angola, a essa minha tristeza política. E depois explorei o espaço. O espaço não é enorme, mas também se pode fazer coisas sofisticadas em espaços pequenos.

Prepararam o chão para não sujar a galeria. Não foi preparado para ser exposto; foi preparado para eu sujar à vontade, e no final íamos tirar tudo. São dois andares, e, como gosto muito de brincar com os espaços, quis fazer o andar de cima completamente limpo, com aquela onda mais comercial de galeria, e assumir o rés-do-chão como atelier-exposição. Foi um processo de trabalho que não me apercebi que estava a fazer. Comecei a limpar os meus materiais, a fazer as minhas primeiras impressões e os meus testes no chão, antes de passar para o papel, que é como eu costumo fazer no meu atelier. A diretora da galeria achou aquilo interessante; disse que nunca tinha havido nada assim na galeria, obras a partir do chão, e pediu-me autorização para usar o que ficasse, para eu não destruir. Eu aceitei, até porque não era a primeira vez que deixava trabalho no chão. Já fiz coisas parecidas, como na Galeria 3+1 em Lisboa ou na Bienal de São Paulo. Na Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, também fiz um trabalho que tinha uma parte no chão. Portanto, não estava fora da linguagem que eu já vinha criando há algum tempo.

Por outro lado, estava a levar uma exposição de colagens para Berlim. As minhas colagens são muito inspiradas no caos urbano de Luanda, nos cartazes colados em Luanda. Lá não são tão grandes como os cartazes que se veem aqui. Normalmente são folhas A4, a preto e branco, em fotocópia, com nomes de ofícios, anúncios, “procura-se”, um bocado como os classificados de um jornal. Aquilo em Luanda acaba por ficar completamente vandalizado com o tempo, com a poeira, e fica com uma estética linda.

Berlim e a Europa deram-me outras ferramentas de trabalho, outros cartazes, outros pósteres, outras maneiras de apresentar essa colagem. Eu já não faço colagem há um bom tempo, estou afim de fazer outras coisas, experimentar, mas para Berlim senti a necessidade de voltar à colagem. Berlim é um dos grandes centros urbanos da Europa, com aquela linguagem de rua, com uma estética muito própria de cartazes. A maneira como se aplicam cartazes na rua, a duração de um cartaz em Berlim, o seu tempo de vida na rua — tudo isso é interessante para mim. Um cartaz em Berlim pode ficar na rua, dependendo da sorte, dois minutos. Tens de calcular quantos cartazes tens de fazer para conseguires estar na rua e ter visibilidade pelo menos 24 horas. Para isso precisas de uns 1000 cartazes no mínimo.

Então eu desafiei um amigo, e fizemos 200 cartazes com uma frase que já foi usada na exposição no Centro Internacional das Arte José de Guimarães, que é a frase “It’s expensive to be poor”. É uma frase que já ando a usar desde o Zimbabué, num projeto com colaboração com um amigo colega tailandês chamado Pratchaya Phinthong. Com o Pratchaya fizemos a primeira série e colámos no Zimbabué. Depois, levámo-la para o Centre Pompidou, mas aconteceu o confinamento do covid. A nossa exposição ficou aberta um ou dois dias. Senti uma necessidade de não guardar esse material nos arquivos.

O meu trabalho tem muito que ver com música, e com o conceito de sample na música. Eu estou sempre a fazer sample do mesmo trabalho. Aproveitei para criar esta ligação a um assunto que ficou mal resolvido. Fizemos uma exposição que só ficou aberta um dia num lugar tão importante. A minha ideia foi alargar a vida dessa frase. Agora foi para Berlim, para as ruas. Essa frase foi feita num contexto de conversa entre amigos no Zimbabué. Saiu a frase “It’s expensive to be poor”, o Pratchaya escreveu-a num papel e quisemos trabalhar sobre essa frase. O escritor James Baldwin também escreveu sobre isso. Essa noção faz parte do seu conceito e de como ele vê a negritude nos Estados Unidos. Ao investigar mais, apercebi-me de que fazia parte do discurso do Baldwin. Mas as palavras não podem ter dono. O planeta é rico e não pertence a ninguém.

 

 

 

AS: Voltando um pouco atrás à frase “It’s expensive to be poor”, que aponta para o preço incalculavelmente alto que as populações mais desfavorecidas têm de pagar: esta frase aparece dentro e fora da galeria, como um fio condutor pelo espaço. Por um lado, é uma mensagem de caras; por outro, funciona quase como uma mensagem subliminar, meio escondida, mas que poderia ser a chave para descodificar a instalação inteira. Vês essa frase assim?

 

Y: Sim, acaba por ser isso. Acaba por ser o coração da exposição, aquilo que dá vida à exposição. Mas a palavra “pobre” não se refere necessariamente a uma questão económica. Não tem de se tratar de uma pobreza económica: pode ser em vários sentidos. Não determino que tipo de pobreza é. Só digo que é caro ser pobre. Então tens um espaço para todas as pobrezas; qualquer tipo de pobreza é caro.

 

AS: “Parliament of the Mute” foi um cartaz que encontraste? Ou fizeste tu?

 

Y: Foi tudo feito. Mesmo o cartaz “It’s expensive to be poor”. A frase foi escrita, mas depois fui a um mercado onde há pessoas que desenham sinais de rua, pessoal que vende sinais, e pedi para me fazerem um sinal. Depois de criarem esta frase num cartaz, eu usei essa tipografia, que é feita à mão, e recriei a estética em papel. Ficou mais fino, mas o tipo de letra é o mesmo, igualzinho.

O Parla_mute foi pensado através da ideia de juntar frases. O meu trabalho tem uma série a que eu chamo “esquizografia”, que é quando eu misturo frases em línguas diferentes à procura de um sentido novo. Em vez de ser esquizofrénico, é algo “esquizográfico”. É uma estética que eu ando a desenvolver. Parla_mute faz parte disso, uma mistura de italiano com inglês. Quero criar essas frases que não existem para encontrar um novo vocabulário que depois acaba por pertencer ao meu trabalho. A frase Parla_mute pode aparecer de novo numa outra peça quando estiver a desenhar ou a pintar; pode voltar. Não pertence a esta exposição que foi feita em Berlim. Todas elas têm o poder de voltar. Não é uma pintura que não se repete. Nada vai ser igual, mas eu uso os mesmo ícones. Crio o meu arquivo de imagens e ícones e, a partir daí, uso e abuso deles. É como se fosse uma fotografia, das quais normalmente uma galeria tem várias edições. Para mim são ferramentas que me dão tempo e espaço de pensamento: posso repetir, ter o mesmo quadro várias vezes, e assim nunca preciso de pedir a quem o tem quando preciso de uma determinada frase ou ideia.

 

 

 

AS: Essa mistura do material gráfico, das mensagens, dos temas que se repetem e variam, transmite-me uma sensação de inquietação. Queria perguntar-te como geres essa inquietude no espaço, ou se, por outro lado, estás a tentar encontrar um equilíbrio entre um acaso que não controlas e uma composição intencional e detalhada. 

 

Y: Eu faço vários tipos de trabalho, como se fossem vários artistas num artista só. Tenho de imaginar que estou na rua, e que na rua há um cartaz colado que eu quero muito, que quero levar para casa. Então, arranjo maneira de tirar o cartaz, mas infelizmente não consigo tirar como pensava; arranco e fica mal cortado. Aí, aparece outro cartaz — já não sou só a pessoa que está a vandalizar o cartaz, mas também aquela que é paga para colar cartazes na rua. Venho com um cartaz produzido por mim, e colo no mesmo espaço. Agora penso como quer essa pessoa pôr o cartaz no espaço. Depois de secar, ou antes de secar, já não sou singular. Já tenho concorrentes que também fazem colagem. Volto como concorrente do primeiro que fez a colagem. Coloco outro cartaz em cima do cartaz que já está lá. Faço uma competição entre os diferentes cartazes. Se eu colar 100 cartazes numa tela, é como se fossem 50 pessoas diferentes, e depois outras 40 que querem retirar o seu cartaz. Acaba por se criar uma estética de rua, um desequilíbrio que é o desequilíbrio que eu procuro como equilíbrio. Fica aquela pergunta no ar, “was ist schön”: o que é que é lindo, o que é que é o equilíbrio.

 

AS: Queria perguntar sobre as tuas influências mais imediatas, ou talvez momentos marcantes que se tenham imbuído na tua obra. Falaste um pouco da cidade de Luanda e da tua experiência no Zimbabué. Agora vives na Grécia, mais especificamente em Atenas, uma cidade que tem vindo a sofrer grandes mudanças com a turistificação e gentrificação e onde há grandes contrastes sociais. Também é um país com uma história forte de ativismo, movimentos anticapitalistas, redes de apoio mútuo. Tens seguido este tipo de manifestações?

 

Y: Eu acho que, em cada lugar aonde vou, tento deixar-me influenciar pelo que acontece, o que rola. Infelizmente, quando cheguei a Atenas há dois anos, a cidade estava em confinamento, então não vi nada. Ou o que aconteceu não aconteceu onde eu vivo. Não vivo no centro, onde os anarquistas fazem manifestações. Mesmo assim, conheci um grupo de pessoal que faz arte urbana. Agarrei-me um bocado à street, e foi por isso também, voltando à conversa de Berlim, que decidi fazer os pósteres na rua. Não estão só dentro da galeria, mas também na rua.

A rua acaba por ser uma fonte de inspiração. É um museu efémero. Este museu tem de ser sustentado também. Não é só chegar à rua, sentir a rua, inspirar-se na rua, e depois não levar nada para a rua. Neste caso, o trabalho de colagem é muito próximo da estética de rua, por isso tudo o que tento fazer é devolver à rua um pouco daquilo que eu tiro dela. Quero fazer parte dessa linguagem e não depender só da galeria.

Aqui na Grécia, a rua inspira-me imenso também, a estética de rua, a maneira como escrevem, os problemas sociais aqui. Na peça que fiz em Guimarães, há uma sala quase vazia com uma cortina que é uma peça inspirada na deusa grega Europa. São as influências gregas, que acontecem aqui no meu dia a dia, que começo a ver no trabalho. Descobri que Europa tinha nascido na Fenícia; era uma princesa fenícia que foi seduzida ou violada pelo deus Zeus. Eu conhecia a mitologia grega de ouvir falar, mas agora estou mais dentro, e a ver as coisas de perto. Estou a perceber melhor quem é o Sísifo, por exemplo. Gosto de misturar línguas para criar a “esquizogafia”; aqui tem muitas fonts fixes, letras diferentes. Há muitos estímulos visuais interessantes, e as minhas próximas obras vão provavelmente ter esse tempero. Ainda não saiu nada de evidente, mas acredito que vai acontecer.

Os catadores de ferro-velho passam com um megafone. Não percebo o que estão a dizer, mas sei que procuram ferro-velho. Na exposição de Guimarães, há uma parte sonora que é uma gravação de um catador de ferro-velho. Portanto, já estou a trabalhar com som da Grécia. Há sempre uma influência. Deixo que isso aconteça sem me esforçar. Estou aqui há dois anos e ainda não fui à Acrópole. Sei que chegará o momento de subir à Acrópole. Deixo que as coisas aconteçam naturalmente. No meu trabalho, há essa estética na qual parece que aconteceu um acidente e não corrigi. Deixo as coisas andarem a seu ritmo; é a lei da natureza.

A exposição de Berlim é muito experimental. É aquele tipo de trabalho que fazes no atelier a curtir. Claro que há momentos de reflexão — é preciso pôr as frases certas, pôr os cartazes certos, rasgar no lugar certo —, mas é divertido. Dá pica fazer colagem nessa dimensão, nessa escala. É uma exposição com muita expressão e muito movimento, juntando o interior e o exterior. Quis arrancar um bocado das paredes de Berlim — há paredes com 20 centímetros de espessura de cartazes. Ver isso também influenciou a minha maneira de fazer colagem. Quis devolver essa parte de Berlim que entrou na minha obra. Fazia sentido revisitar a colagem, algo que dominou o meu trabalho durante tanto tempo, e mostrar isso em Berlim. Gostei e revisitei-me também como artista em coisas que não fazia há muito tempo. Deu-me vontade de repetir, mas na versão original, que é a versão angolana, a preto e branco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Yonamine

 

 

 

Galerie Michael Janssen Berlin

 

 

 

 

 

 

Ana Salazar Herrera [1990] é curadora no Ludwig Forum for International Art, Aachen, escritora e iniciadora da para-instituição Museum for the Displaced. Explora subjetividades nómadas, poli-linguísticas e transculturais, propondo questionamentos inventivos de mapeamentos geopolíticos hegemónicos. De 2016 a 2020, foi Curadora Assistente de Exposições no NTU Centre for Contemporary Art Singapore. Participou no Shanghai Curators Lab [2018], no programa de mentoria Project Anywhere [2020-21], e foi curadora-em-residência [2021-22] no Künstlerhaus Schloss Balmoral, Alemanha. Ana tem um mestrado em Práticas Curatoriais da School of Visual Arts, Nova Iorque, e uma licenciatura em Piano da Escola Superior de Música de Lisboa.

 

 

 

Proofread: Diogo Montenegro

 

 

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Yonamine, PARLA_MUTE (2022). Vistas de exposição, Galerie Michael Janssen Berlin, Photography: Gunter Lepkowski, Lepkowski Studios. Outras imagens: Estefanía Landesmann. Cortesia do artista e Galerie Michael Janssen Berlin. 

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