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Lisbon roundup #6

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Isabel Nogueira

É o início da temporada e com ele regressa-se aos circuitos expositivos. O número considerável de propostas torna o sector artisticamente mais rico e variado. O que é efectivamente importante. Claro que umas abordagens serão seguramente mais entusiasmantes do que outras. É expectável e faz parte desta dinâmica. Neste RoundUp escolhemos cinco exposições que apresentam gramáticas artísticas e referências conceptuais bastante distintas entre si. Lancemos um breve olhar crítico sobre elas.

 

 

Roundup #6

Lisboa: vários locais

 

Carlos Mensil: Risco Contínuo

@ NO·NO Gallery

 

Carlos Mensil [n. 1988], de algum modo, confere uma outra linha de enfoque a este universo pautado pelo minimal e pelo depurado. A ideia de risco aqui afigura-se dupla: por um lado, o riscar, como quem desenha no espaço; por outro, o desafio, o correr o risco. A primeira peça que imediatamente se distingue é uma fina lâmina de aço suspensa que desenha uma forma no ar, a qual, à medida que roda, faz disparar a luz em inúmeros reflexos [16:9, 2022]. Como uma lâmina de faca batida pelo sol. Neste momento, produz-se um qualquer silêncio poderoso que em si se basta e que envolve o espectador. E o tom da exposição fica definido numa qualquer intensidade contida antes da potencial explosão.

A mostra é pontuada por mais algumas peças de notória qualidade, entre as quais duas obras mais inusitadas. Trata-se de Projecto para montanha 1 e 3, de 2022. Em ambas as propostas é apresentado um líquido negro que corre num circuito de eterno recomeço. Este negro atrai o nosso olhar, como um mergulho numa qualquer profundeza, eventualmente inacessível e talvez perigosa. E a peça continua fazer o movimento da água negra. Inabalável. Este movimento remete-nos, por exemplo, para Zygmunt Bauman e para a sua conhecida obra Liquid Times: Living in an Age of Uncertainty [2006]. Neste texto, o filósofo polaco questiona a modernidade, e eventualmente a pós-modernidade — que podemos entender como uma fase da modernidade, de autoconsciência crítica da própria modernidade, e não exactamente uma nova época histórica —, nas relações políticas, amorosas, vivenciais, na própria relação com a arte. A questão da volatilidade inerente ao “estado líquido” ocupa um lugar proeminente no pensamento de Bauman: Liquid Modernity [2000], Liquid Love: On the Frailty of Human Bonds [2003], Liquid Life [2005]. A exposição de Carlos Mensil comporta precisamente esta fluidez, eventualmente num risco contínuo, mas seguramente construindo um lugar de algum tipo de recolhimento e densidade. Ao mesmo tempo, é proposta uma ideia de circuito, como se tudo pudesse voltar sempre ao início, e assim sucessivamente.

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Carlos Mensil, Risco Contínuo (2022). Vistas de Exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia do Artista e da NO.NO Gallery

Catarina Mil-Homens: We are Also the Ghosts

@ Uma Lulik_

 

Esta mostra assinala o arranque do novo espaço da galeria Uma Lulik, e o seu título é homónimo ao da peça que mais se destaca e, já agora, a mais bem conseguida do conjunto [We are Also the Ghosts, 2022], composta por cabos verticais de aço e lâminas de vidro, dispostas na parede como se fosse uma imagem, mas tratando-se de uma grelha tridimensional com elementos que se sucedem visualmente e fisicamente no espaço. Catarina Mil-Homens [n. 1979] desenvolve — sobretudo nesta possante e sofisticada peça — uma gramática plástica e conceptual de notória ligação, não necessariamente à arte minimal enquanto movimento artístico circunscrito no tempo, com início ainda nos anos 50, em Nova Iorque, mas a um minimalismo enquanto referência artística. A exposição é essencialmente composta por escultura e instalação. No piso superior é ainda possível visualizar um vídeo evocativo de texturas e matérias [1709 Cascas de Mim, 2022]. 

Há uma outra peça [Lâminas, 2022] que chama também a nossa atenção e é assumidamente uma homenagem ao minimalista Donald Judd [1928-1994], um dos fundadores do movimento e a quem se deve a publicação do ensaio Specific Objects [1965], no qual Judd define estes “objectos” como sendo pintura e escultura, rompendo com a designação tradicional de ambos. Neste mesmo ano de 1965, Judd dava início à célebre série Untitled. Trata-se de esculturas formadas por elementos idênticos rectangulares, dispostas verticalmente — numa cadência cheio-vazio —, na verdade, como a pintura é exposta, mas agora como reacção ao expressionimso abstracto, procurando uma simplificação depurada das formas, às quais era propositadamente retirado o conteúdo expressivo, no sentido de se atingir uma total abstracção, materializada na redução formal e intelectualizada. Procurava-se pensar as possibilidades estéticas da composição a partir de estruturas neutras — “objectos“ —, e da sua relação com a parede e com o solo, ou seja, entre o horizontal e o vertical. Também identificamos este entendimento depurado e espacializante do objecto no trabalho de Catarina Mil-Homens. 

Os materiais usados no âmbito desta exposição são sobretudo industriais, embora pontualmente sejam apresentados outros, como o carvão, de origem mineral. E, para finalizar, debrucemo-nos sobre esta última peça, na verdade, a primeira da exposição. Não se percebe imediatamente que se trata de pó de carvão. A peça é de tal modo delineada que se assemelha a um desenho preenchido com tinta e disposto no solo. A peça é complementada por um vidro que lhe confere verticalidade e que abre para outras espacilidades. Mas o carvão negro é o que sobremaneira nos interessa. Não é suposto caminhar sobre ele. Mas — um acaso feliz — alguém o tinha feito, deixando um par de pegadas sobre o pó. E foi precisamente este acto proibido que fez vibrar este chão, dando a perceber uma textura e um material não imediatamente identificáveis. O conjunto converteu-se, de repente, num bela marca de traição sem corpo. Afinal, we are also the ghosts. 

 

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We Are Also The Ghosts

Catarina Mil-Homens, We Are Also the Ghosts (2022). Vistas de Exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia da Artista e da Galeria Uma Lulik_

 

Christian Andersson: What has yet to Take Shape Will Protect Me

@ Cristina Guerra Contemporary Art

 

A disposição das obras de Christian Andersson [n. 1973] no espaço da galeria apresenta grande respiração e elegância, desenvolvendo um circuito com possibilidade de ritmo e cadência na fruição. E, particularmente no caso destes trabalhos, este aspecto afigura-se um factor importante, na medida em que o que entendemos como elemento central se relaciona com um jogo entre um tempo passado — de inevitável carácter historicista — e um tempo presente, ou até um tempo futuro, eventualmente de projecção e devir. É nesta deambulação passado-presente-futuro que ancoramos esta breve reflexão crítica sobre a mostra em causa.

Uma das mais intrigantes peças do conjunto é inevitavelmente Marrow [2022], uma escultura de gesso branco, em tamanho natural, no qual a carne se vai desapegando do esqueleto, restando, sobretudo na parte frontal do crânio, apenas osso. A figura segura na ponta dos dedos a estrutura de um cubo, simultaneamente projectado na parede através da luz que emana do osso frontal do seu crânio, numa possível evocação da passagem da matéria a uma imagem ou abstracção etérea. Atomizer [2022] é outra inquietante peça. Trata-se de uma fotografia acoplada a um varão, prolongado na imagem como trompe l’oeil, ao qual se agarram mãos vigorosas, numa inusitada e erotizante pole dance. Deste primeiro grupo de peças ainda uma outra é efectivamente forte. Trata-se da impressora literalmente amassada pelas mãos do artista [Primer]. Uma vez mais, a referência possível entre as dicotomias, neste caso, passado-manual/presente-digital.

Há um outro conjunto de imagens-peças de tamanho mais discreto mas que funcionam quase como uma espécie de gabinete de curiosidades, evocativas de obras históricas e de jogos visuais de arquitecturas visíveis, por exemplo, nas célebres pinturas do Renascimento, tais como Escola de Atenas, de Rafael, ou mesmo As Bodas de Caná, de Veronese. O próprio jogo de divisórias que é construído na galeria para dispor estas peças funciona espacialmente de modo muito eficaz. 

Além da presença passado-presente-futuro, esta exposição remete ainda para uma relação entre matéria e imagem. Trata-se de uma relação historicamente complexa e desafiadora, sobretudo do ponto de vista ontológico. Ao circular pelo espaço sente-se uma constância da problemática tempo associada ao desafio entre matéria e imagem/projecção. E esta projecção é, na verdade, imagética e temporal. E concluímos com uma frase de Henri Bergson [Essai sur les donnés immédiates de la conscience, 1912]: «A ideia do futuro, pleno de uma infinitude de possibilidades, é ainda mais fecunda do que o futuro em si mesmo, e é por isso que encontramos mais charme na esperança do que na posse, no sonho do que na realidade». Eventualmente assim também sucede nesta exposição.

 

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Christian Andersson, What has yet to take Shape will Protect me (2022). Vistas de Exposição. Fotografia:  Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do Artista e da Galeria Cristina Guerra Contemporary Art.

 

Mané Pacheco: Bestas

@ Belo Campo/Galeria Francisco Fino

 

É início de Outono, mas está um calor abafado de fim de Verão. Mané Pacheco [n. 1978] leva-nos para o calabouço no espaço da Galeria Francisco Fino [espaço Belo Campo]. E leva-nos muito bem. As peças envolvem-nos e criam um dispositivo visual algures entre o primitivo animal e a sofisticação, até erótica, de objectos facilmente utilizáveis em universos e rituais bondage e ou inclusivamente de sadomasoquismo. Os bichos transformam-se em objectos. Não se percebe ao certo onde começam uns e acabam outros. Possivelmente também não é importante. O mais importante aqui é uma qualquer estranheza que se produz no espectador no acto de fruição, e que se torna forte mas difícl de definir. Mas a definição também não é importante. E poderíamos continuar neste jogo de percepção-definição. Trata-se de uma metaformose mais ou menos subtil, que vai sucedendo sem que se identifique um início e um fim. E é inquietante esta proposição de espaços transitivos e, de certa maneira, com algum grau de exotismo e de primitivismo.

A nudez do espaço expositivo exalta os materiais animais e industriais e os objectos de um modo geral. De repente, parece que estamos perante a possibilidade de estas criaturas tomarem vida e comprometerem a sua distância face a nós. As peças mais notáveis são as que se encontram penduradas. A visão é a de uma sala de rituais misteriosos, talvez antigos e violentos. Ou não. Mas há de facto um qualquer primitivismo carnal que é evocado, não se mostrando abertamente. Sente-se um jogo que se ancora também, portanto, na imaginação do espectador e que, de algum modo, permite o fechar da instalação. Quer dizer, o espectador é subtilmente convidado a entrar neste universo e a deixar-se conduzir por ele. Entre fantasia, fantástico, erotismo, animalia, borracha, metal, a nossa pele imagina o toque destes objectos que parecem também desejar que os toquemos de volta. É início de Outono, mas está um calor abafado de fim de Verão. Tudo pode acontecer. 

 

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Mané Pacheco, Bestas (2022). Vistas de Exposição. Fotografia: Vasco Vilhena. Cortesia da Artista e de Belo Campo/Galeria Francisco Fino.

 

Nuno Nunes-Ferreira: Monsieur Valadares

@ Balcony — Contemporary Art Gallery 

 

Esta exposição apresenta uma proposta completamente distinta das anteriores. Nuno Nunes-Ferreira [n. 1976] toma como ponto de partida um arquivo privado. Esta ideia de materialização da temporalidade através de recortes de jornais, colectas de imagens, organização de factos e momentos é uma das características da sua linguagem enquanto artista. Ou seja, podemos afirmar que a temporalidade é uma marca relevante no percurso de Nunes-Ferreira e também desta exposição, em particular. Na obra La societá transparente [1989] Gianni Vattimo propõe a tese de que na sociedade dos mass media que, em seu entender, caracterizam a “sociedade transparente” — caótica, contaminada — se abre caminho a um ideal de emancipação, que tem por base a oscilação, a pluralidade e, por fim, o desgaste do próprio “princípio de realidade”, isto é, o ser humano pode tornar-se consciente de que a liberdade não consiste em conhecer a estrutura do real e adaptar-se a ela. Contudo, a nossa esperança de emancipação e de liberdade residirá neste relativo caos, nesta perda de sentido da realidade, numa certa capacidade de desenraizamento — libertação das diferenças, das minorias, fim da ideia de uma realidade histórica totalizadora —, embora sem o abandono de todas as regras. Quando pensamos num trabalho que parte de um arquivo pessoal, o movimento que lhe poderá estar conectado é precisamente este: uma capacidade de desenraizamento do seu lugar original e um refazer a partir deste original, produzindo um objecto segundo, necessariamente novo e distinto do primeiro.

Este processo de apropriação e de resignificação incorpora além da memória, claro, um certo grau de poesia e talvez mesmo de alguma emotividade. Percebe-se a presença e o universo de alguém que não está fisicamente. Ao entrarmos na exposição, deparamo-nos com um bem conseguido bloco  composto por várias imagens de pedaços de jornais e revistas ocultados por tinta preta, exceptuando frases que vão pontuando esta espécie de mural, e que se reportam ao mundo da arte : “isto não é um Rembrandt”; “pintura”; “falso mais falso não há”; “como se fosse um auto-retrato”, etc. E naturalmente que o jogo entre o que se mostra e o que se oculta fica também lançado. Este mural é, a seu modo, provocatório e apelativo, mas o melhor trabalho, em nosso entender, encontra-se no piso inferior. Retomando a fértil herança duchampiana do readymade, e no contexto deste arquivo privado como mote de uma exposição, Nunes-Ferreira produz uma instalação não com o conteúdo das caixas arquivadoras, mas com as próprias caixas. São em número considerável, de vibrante e sortido colorido, e com temas que vão desde “saúde” a “Jesus”, passando por “filatelia”, “museus”, “tradução”, entre muitas outras catalogações. A memória junta-se a uma organização que oscila entre a enciclopédia e o correr dos dias e da vida. Não apenas a vida de Monsieur Valadares mas também, eventualmente, a nossa. Onde quer que nos consigamos rever. 

 

 

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Nuno Nunes-Ferreira, Monsieur Valadares (2022). Vistas de Exposição. Fotografia: João Neves. Cortesia do Artista e da Balcony — Contemporary Art Gallery.

 

Imagem de capa: Christian Andersson, What has yet to take Shape will Protect me (2022). Vistas de Exposição (pormenor). Fotografia:  Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do Artista e da Galeria Cristina Guerra Contemporary Art.

 


 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

 

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