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Isabel Carvalho: Museu Mineiro

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Catarina Rosendo

 

Na sua mais recente exposição, Isabel Carvalho partiu de uma investigação sobre o complexo mineiro da Urgeiriça, no norte de Portugal, onde ao longo de quase todo o século XX se procedeu à extracção de urânio e de rádio e cujo processo de reconversão patrimonial, já neste século, tem levantado o problema do reconhecimento oficial dos efeitos da contaminação radioactiva sobre a população local.

Prosseguindo a sua prática transdisciplinar, a artista reúne no espaço expositivo um relato escrito que mistura dados reais com situações imaginadas, vidros coloridos e várias peças em gesso organizadas em frisos e painéis de aparência simultaneamente arcaica e decorativa. O conjunto cria uma narrativa visual exploratória, que se ramifica por fragmentos de coisas reconhecíveis como explosões, ossos, pulmões, detritos vários, túneis que podem estar escavados na terra mas também dentro do corpo e que atenta naquilo que escapa à percepção humana, como a invisibilidade da radiação, a durabilidade dos detritos nucleares ou o tempo não linear.

Dando expressão a abordagens polifónicas oriundas da ciência, da filosofia, da estética, da arte, do senso comum e das suas próprias memórias pessoais, Isabel Carvalho procura dar visibilidade a uma “partilha do sensível” que relaciona a poesia e a política até ao ponto da sua idealizada e produtiva indistinção.

 

 

 

Catarina Rosendo (CR): Inauguraste no dia 24 de Setembro na Galeria Quadrada Azul do Porto uma exposição chamada Museu Mineiro que vem na sequência do trabalho que desenvolveste no projecto Gruta, de Hugo Canoilas [na Quadrado Azul de Lisboa], intitulado Comunidade das grutas, novas descobertas. E estás ainda a preparar um novo número da revista Leonorana, também ele dedicado à temática nuclear. Não obstante a actualidade do tema, por causa da invasão da Ucrânia e das sucessivas ameaças nucleares, porque é que decidiste trabalhar este assunto e como é que ele dá continuidade a questões que já te interessam há mais tempo como, por exemplo, o ambiente?

 

Isabel Carvalho (IC): A questão do nuclear surgiu como uma espécie de epifania, numa conversa entre amigas, e julgo relacionar-se com a urgência em procurarmos dar respostas à actualidade. Mas, para mim, tem que ver muito provavelmente com algo que vem de trás e que se relaciona inquestionavelmente com as preocupações ambientais. Eu vejo o nuclear, enquanto assunto, talvez por causa dos estudos que finalizei o ano passado, como um dispositivo um tanto “barroco”, amplo o suficiente para me permitir uma abordagem abrangente de várias facetas da realidade. Digamos, a título de exemplo, que equiparo o nuclear à pérola iridescente que é usada como uma metonímia no barroco, ou o simples grão de areia, que na sua ínfima escala pode apoiar explicações aproximativas sobre a totalidade do universo... Encontrei no nuclear a mesma condensação de significados, porque é um tema que abre janelas para inúmeras perspectivas. É como uma lente sobre o real que me permite tocar em vários assuntos quase de uma só vez. Além das óbvias questões ambientais que o nuclear levanta, historicamente o feminismo esteve sempre muito ligado à luta anti-nuclear, aliás, teve um papel determinante em vários processos de desnuclearização. Assim como se junta à crítica colonial. 

Mas há uma perspectiva que me interessou em concreto, que foi a estética, ou seja, saber como é que a arte vai representando e tratando os avanços da ciência e que papel estes têm nas mudanças de paradigma estético a partir da chamada “era nuclear”. E, principalmente, como é que a arte, nas suas representações, reúne todas estas perspectivas críticas associadas ao assunto.

 

 

CR: No texto escrito por ti, que acompanha a exposição, referes como Robert Oppenheimer, cientista envolvido nos primeiros testes nucleares realizados em solo norte-americano, descreveu as explosões nucleares como um “espectáculo”. E enquadras este comentário na estética do sublime. 

 

IC: A associação à estética e à arte é interessante e levanta muitos desafios. Em primeiro lugar, foi assim, desde o primeiro momento, que o nuclear foi visto, como “espectacular”. Oppenheimer foi o primeiro a perceber que o que tinha diante de si implicava demasiado poder, sendo o nuclear um superpoder a partir do qual deixou de haver volta atrás. E a única coisa que lhe ocorreu diante da explosão do primeiro teste, como reacção, foi citar um poema hindu em que um “brilho de mil sois” é equiparado ao “esplendor do poderoso”. Oppenheimer viu beleza naquilo e uma espécie de espiritualidade atemorizante, como também o fim dos tempos, mas não as suas consequências futuras. Esta reacção, na verdade, é hoje quase um lugar comum, e praticamente tornou-se aceitável, mas há quem ainda espere que ele peça desculpa, também por estes comentários. 

Mas para mim, o que ele anunciou sobre a impossibilidade de retrocesso é que deve ser revisto. Devemo-nos perguntar: e agora, o que fazer com isto? Há um texto de Jacques Derrida em que ele fala especificamente de energia nuclear, na perspectiva da inevitabilidade da sua descoberta e dos seus usos, pois, dada a frenética vontade humana de superação, principalmente pelos cientistas, o que aconteceu tinha que acontecer mais cedo ou mais tarde. O que é uma coisa estranha, não é? Já Karen Barad [em After the End of the World: Entangled Nuclear Colonialisms, Matters of Force, and the Material Force of Justice] comenta Derrida e crítica estas ideias, desde logo a ideia de progresso ilimitado, a luta desenfreada, a aceleração, e fornece-nos perspectivas e propostas felizmente muito mais apaziguadoras. Ela incide numa questão que me parece muitíssimo pertinente: a procura [e o encontro] de formas de justiça. 

 

 

CR: Como trabalhaste, em concreto, os aspectos estéticos do nuclear nas obras produzidas para a exposição Museu Mineiro

 

IC: Talvez comece por expor-te um pouco do processo. O assunto do nuclear está obviamente relacionado com as lutas ambientais e por isso escolhi como primeiro interlocutor o José Carlos Marques [editor e presidente da Campo Aberto — Associação de Defesa do Ambiente], porque já antes tínhamos falado sobre Ferrel e o Festival pela vida contra o nuclear, um evento de 1978 que muito marcou o debate do nuclear em Portugal. Foi a partir destas conversas que o nuclear me interessou para perceber especificamente o contexto português e sobretudo para perceber melhor onde assentava a ideia de que Portugal é um país politicamente neutro em termos nucleares, o que resulta francamente de uma cegueira ou ignorância, ou mais até de uma opacidade intencional, porque Portugal nunca foi um país isento nessa matéria. Foi isso que me levou a trabalhar duas situações especificamente portuguesas: primeiro, aquela que abordei no projecto da Gruta, relacionado com a Guerra Fria a partir da descoberta da existência de um sismógrafo norte-americano no Instituto Geofísico do Monte da Virgem, em Gaia, para intersectar actividade sísmica artificial resultante de testes nucleares realizados em todo o planeta, agora tornado num lugar importante do “turismo nuclear”. E esta agora, relacionada com as minas da Urgeiriça que, além do mais, contém memórias pessoais associadas. 

Os meus pais passavam férias nesta zona — num hotel mesmo ao lado das minas, que ainda hoje existe e está em pleno funcionamento —, que tem risco de radioactividade por causa da extracção de urânio [e antes, de rádio]. Comecei a investigar nos arquivos da RTP, onde existem imensas entrevistas e documentários sobre esta matéria. Foi importante ainda um artigo publicado no jornal Mapa [“«Somos como os lagartos»: comunidade, luta e mineração do urânio na Urgeiriça”, de 2021 e assinado por Jaume Valentines-Álvarez, Jaume Sastre-Juan, Celia Miralles e Frederico Lobo], que me serviu de ponto de partida. Queria perceber qual era a história daquele lugar e o papel daquelas minas na história mundial. Estive muitos anos sem ir àquela zona, entretanto as minas foram desactivadas, mas quis voltar agora para perceber o que estava lá a acontecer e a primeira coisa que encontrei, em Julho deste ano, foi uma enorme lona à entrada das minas com letras pintadas à mão a reivindicar a criação de um museu mineiro que faça justiça à história daquela povoação. É a partir daí que construo a primeira narrativa que abre a exposição, uma espécie de conto sci-fi que também deu estrutura à elaboração das peças e à sua disposição no espaço da galeria. Talvez seja um pouco do senso comum dizê-lo, mas as peças não ilustram nem aspectos concretos desta investigação, nem são traduções literais do assunto em si, elas condensam de forma mais ou menos consciente (e muito por intuição no próprio fazer) múltiplos significados. Cada uma delas deverá fornecer pistas para se entender o âmbito das preocupações presentes. Mas, respondendo à tua pergunta, imagino que a peça Epistemologias civis: Por um museu mineiro seja, pela sua escala e pelo representado [pulmões, órgãos, a par dos interstícios do solo], a que pretenda tratar a memória e a justiça que é reivindicada. 

 

 

CR: Além dessa narrativa escrita, as obras que pontuam o início e o fim da exposição são dois objectos feitos com vidros pintados. Nessa narrativa, mencionas algo como observar o espectáculo estético do nuclear a partir de uma janela. Gostava de perceber qual é a função desta ideia de janela: enquadramento, separação, mediação?

 

IC: A obra da entrada chama-se Sol acidental. Tinha esta exposição agendada há mais tempo mas foi sendo adiada. Entretanto, tínhamos acabado de passar por uma pandemia, estávamos a atravessar uma guerra e eu sentia que já não éramos os mesmos, éramos outros. E nós, artistas, já não podíamos estar a pensar com pensávamos em 2018 ou 2019. Houve um salto temporal enorme e eu perguntei-me como é que representamos o agora, no presente? Normalmente, começo os meus trabalhos praticamente a partir do zero, mas aqui estava a sentir ainda mais dificuldades em construir algo. Percebi que, para mim e quase por uma questão de sobrevivência depois da pandemia, o tempo tinha deixado de ser linear e comecei a desejar que assim permanecesse. Estranhamente, de certo modo, isso era compatível com ideias subjacentes aos comentários de Oppenheimer no que concerne ao nuclear como implicando a destruição do tempo linear e como tem sido interpretada a passagem do mesmo poema hindu que antes falámos: “Agora, tornei-me na Morte, o destruidor de mundos”. 

Facilmente se percebe que é por isso que uma parte das teorias do tempo se dedica à questão nuclear. Karen Barad também aborda isto, ao dizer que o nuclear trespassa aquilo que nós entendemos como passado, presente e futuro, porque o nuclear está além disso, é um material que vai ficar para além da própria existência humana, tal como já existia antes. Não é por acaso que há tantos cientistas a trabalharam as questões do nuclear oriundos da física quântica; eles são mais ágeis a lidar com a noção do tempo e a questionar a sua linearidade. 

Há outra questão interessante dentro da estética que é a relação entre o nuclear e a semiótica e que envolve o tempo no modo como procura gerir a informação relacionada com a actividade nuclear. Por exemplo, como se pode preservar, em futuros distantes, a memória de locais onde estão localizados aterros de resíduos? Os aterros são arquitecturas solidamente construídas para durarem cerca de cem mil anos, mas eventualmente deixarão de ser eficazes, porque os resíduos duram muito mais tempo do que isso. A semiótica procura dar resposta ao problema de chamar a atenção da espécie supostamente humana, que então existirá, para essas questões e para os seus perigos. Isto entrou já há muito tempo no domínio da ficção científica na cultura popular, mas tem vindo a tomar parte das discussões reais e, principalmente, a suscitar interesse da crítica da arte e da estética. Há já várias propostas e algumas bem extravagantes: a de Stanisław Lem foi a de integrar no ADN de flores esse tipo de mensagens; outros defendem que é preciso fazer esculturas monumentais inóspitas e até repugnantes em cima dos aterros, impedindo as pessoas de lá chegar; os linguistas dizem que a linguagem verbal vai sofrer tantas mutações que a informação escrita será incompreensível... Enfim, é uma discussão interminável que implica pensar agora num tempo futuro completamente indeterminado. 

Voltando à peça Sol acidental, essa janela é, portanto, uma janela de transição de tempo [do linear para outro], uma espécie de portal por onde se entra para a exposição. É um sol acidental que tem a função de representar, enquanto imagem, uma óbvia explosão transformadora, mas corresponde também ao facto de eu ter trabalhado sem sentir que pertenço a nenhum tempo em concreto. Alguém disse que, das peças expostas, algumas pareciam modernistas, e talvez seja porque as minhas referências atravessam muitos tempos. No limite, se estou a abolir o tempo, estou a abolir o estilo, ou aquilo que é compreendido, pelos outros, como a uniformidade do meu trabalho. 

 

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CR: Algo que notei nestes trabalhos e que é diferente de outros anteriores, é a utilização da cor. Ao contrário dos tons mais escuros e ocres que tens usado nos últimos anos, estas obras são quase todas muito coloridas, esfusiantes até, por vezes decorativas, desde logo o Sol acidental, de que há pouco falavas. 

 

IC: Quis fugir do cânone um pouco impositivo das gamas cromáticas mais restritas, o preto, o branco, o cinzento. Quis recuperar a ideia de que a vida [e a sua representação] pode ser muito colorida, um arco-íris. Estou do lado de uma arte que também ela seja representativa da multiplicidade da vida, ou das vidas. Pareceu-me interessante não ter receio de uma expressão que pode ser agradavelmente bonita. Passámos séculos a penalizar o deleite do olhar e a penalizar o belo que não fosse um belo restrito. Quis questionar isso e começar a integrar no belo o conotado com o acessório e o desnecessário, e a introduzir-lhe outras facetas. Isto passa também por recusar um pouco a melancolia e abraçar a vida mais por inteiro, ter mais que uma voz [enquanto forma de expressão], ser mesmo polifónica. Isto também tem que ver com o cuidado e o cuidar de si, cuidar das múltiplas vozes que cada um tem em si e não ficar cativa de uma expressão só. 

 

 

CR: Tens uma obra que se chama Cintilografia, que é uma palavra bonita, musical, cintilante até, que se reporta a uma exame da medicina nuclear que é invasivo porque implica a indução de radioactividade nos tecidos e nos órgãos para gerar imagens de alto contraste, muito coloridas. O teu uso da cor tem alguma coisa que ver com o facto de a radiação ser um dos eixos desta exposição, de atravessá-la como atravessa todas as coisas? 

 

IC: A radioactividade atravessa tudo mas não há nenhum sentido humano que a capte; ela não se vê, não se cheira, não se sente... Os efeitos que ela provoca são dificilmente comprováveis e a doença prolongada por efeito da radioactividade é dificilmente justificada, o que sublinha ainda mais o problema de justiça social. Estou a pensar na população da Urgeiriça, muito exposta à radioactividade durante a mineração/extracção do urânio. A reivindicação por um Museu Mineiro tem a ver com isso, com o provar, de forma concreta, a exposição daquela população à radioactividade e os seus efeitos na saúde e no meio ambiente a curto e a longo prazo. Eu e a Vanessa Badagliacca, no número da revista Leonorana que estamos a preparar, descobrimos a Rosalie Bertell, cientista e activista, cuja luta foi provar precisamente a subtileza da radioactividade e sobretudo a dificuldade em verificar a existência dos seus efeitos. No fundo, a cintilografia é um processo da medicina nuclear muito usado para identificar as degenerações provocadas pelas radiações, usando-as! Gostei da palavra “cintilografia”, é mais bonita que “radiografia”, é cintilante até para o ouvido, sim, mas esconde horrores. Talvez a beleza da palavra e da obra nas escolhas cromáticas que tu falas, coloquem em jogo mais uma vez o sublime, o jogo entre o belo e o horrível. O resultado final da peça é contudo um pouco brutal, porque apresenta uma parte óssea indefinida entre o externo, o tórax e a coluna vertebral, mas em transformação, como num processo de corrosão interna. Resultou assim porque quis que esta peça, a par desse exame, servisse de “prova”. Neste mesmo sentido, encontro na actualidade vários artistas, principalmente a usar fotografia, que estão a trabalhar com a radioactividade como forma de produzir imagens de “prova” — uns a usar líquidos radioactivos para revelar imagens, outros a irem para zonas contaminadas para revelarem as suas imagens por processos para mim incompreensíveis porque não domino técnicas de fotografia. São imagens belas, mas que na sua poética testemunham os efeitos nefastos da radioactividade. Note-se que a fotografia foi uma das área que mais evoluiu com a vulgarização da matéria nuclear ao mesmo tempo que foi a forma mais usada para denunciar os seus efeitos e divulgar algumas das atrocidades cometidas. 

 

 

CR: O teu trabalho costuma dedicar uma atenção especial à linguagem. A obra Reclamar intra.actividade pode ser um exemplo disso?

 

IC: Ao trabalhar um assunto como a reivindicação de um Museu Mineiro em Urgeiriça, não me ponho fora da reivindicação daquelas pessoas, é uma questão de justiça social e ambiental de que faço parte porque vivo no mesmo país e planeta que aquelas pessoas que estiveram directamente expostas. Estamos todos, em maior ou menor grau, expostos. Há e tem que haver uma solidariedade geral. Em muitos dos meus trabalhos, penso que a linguagem mais adequada é a verbal e então uso-a. Noutras situações, dispenso-a completamente. Aqui pretendi usar vários recursos expressivos para juntar várias vozes, várias formas expressivas, de modo a que a mensagem, que é de pertinência global, de alguma forma passasse. O meu objectivo tem sido intra-agir mais, entrar em intra-actividade [expressão muito usada por Barad], retirando um pouco da importância que o discurso verbal tem. Não se trata de o dispensar, longe disso, mas de reclamar outros discursos, entender que outras formas de comunicação estão para nós disponíveis, e percebendo que a recepção é igualmente múltipla. O nosso corpo dispõe-se a expressar-se e a reconhecer signos de muitíssimas [outras] maneiras. 

 

 

CR: Sempre escreveste bastante, desde a tua actividade nos blogues, passando pela revista Leonorana, pelas performances baseadas em exclusivo na palavra e na oralidade, e pelos vários textos [ensaios, parábolas, contos, etc.] que publicas. De que forma é que a escrita é uma parte do teu pensamento visual ou vice-versa? 

 

IC: Não acho que escreva muito e comecei a escrever já muito tarde, já por volta dos trinta anos. Sempre senti que uma só forma de expressão era insuficiente. Apesar de já não pensar exactamente assim, para mim a imagem verbal, proporcionada pela palavra, era mais forte do que a imagem em si, no impacto no leitor ou num auditório em geral e até em mim mesma. Achava que se dissesse tudo numa só frase que fosse exacta [do que pretendia dizer] quase que não era preciso fazer mais nada. Mas isso estreitava muito a minha actividade. Comecei a procurar utilizar menos texto e explorar mais os limites da linguagem plástica. 

 

 

CR: A Clara Batalha é autora do desenho que acompanha o texto com que abres a exposição e é também co-autora da obra Friso de geóglifos, uma das obras em gesso apresentadas. Penso que a Clara Batalha aparece pela primeira vez no teu projecto editorial Navio vazio, por volta de 2010-2012. Quem é ela e como é que aparece? Porque é que a escolhes para assinar alguns dos teus trabalhos?

 

IC: A Clara Batalha estudou artes decorativas e geometria. A biografia dela encontra-se facilmente em vários lugares porque a fui disseminando por aí. Ela apareceu quando eu senti que precisava de sair de um conjunto de expectativas demasiado rígidas, conceptuais, cinzentas, que estreitavam demasiado a minha acção. A Clara Batalha apareceu com a sua geometria e as suas artes decorativas como quem aparece com uma caixa de costura, daquelas que as avós tinham cheias de novelos e botões, e fizemos várias coisas juntas. Normalmente, os trabalhos de que eu mais gosto são aqueles feitos em colaboração com ela, essa entidade fantasmagórica que me aparece e que me ajuda a incorporar aspectos que eu sozinha não era capaz de explorar por timidez. 

O Friso de geóglifos é precisamente a obra de que eu mais gosto nesta exposição. É aquela que, de cada vez que olho para ela, me leva a imaginar mais do que lá está, a multiplicar formas possíveis para além daquelas que estão concretamente presentes. Esse friso inicialmente era um poema, era uma linha escrita através da qual eu queria experimentar e perceber na prática, como exercício, como é que o nuclear teve influência na literatura e na poesia, porque tinha lido muito sobre isso, sobre a mudança de paradigma estético que se assistiu também nesta área. Mas quando estava a escrever o tal poema, pareceu-me mais interessante deixar de o escrever para o desenhar, deixando as palavras para trás e concentrando-me nas imagens que iam surgindo. Fui abrindo espaço para aparecerem imagens não só a partir dos pedaços iniciais dessa linha de poema [onde ainda habitavam letras], mas também imagens aéreas de paisagens, configurações de figuras humanas e animais, presenças atomizadas, e por aí além. Tornou-se num friso mutante que, pela imaginação, não me parece ter fim. 

 

 

CR: No teu site dizes que a Clara Batalha é um pseudónimo. Mas ela tem biografia e tudo. Não é antes um heterónimo?

 

IC: Isso são convenções, palavras que podem fazer alguma justiça à sua presença. Eu estou completamente desinteressada disso, para mim ela é muito real. E é bom este desdobramento identitário. Quer dizer, a ideia de heterónimo tem um certo peso na cultura portuguesa, mas para mim a Clara Batalha é uma presença que me acompanha, e com ela experimento uma relação que, podendo ter os seus momentos conflituosos, me apazigua. Por isso é que a Clara se chama Batalha. 

 

 

CR: A propósito do Friso de geóglifos, gostava que falasses um pouco do modo como tens recorrido, ao longo dos últimos anos, ao gesso. Porquê este material e como o usas?

 

IC: Não trabalho apenas com gesso nestas peças, trabalho também e principalmente com barro. O barro é a matriz de tudo aqui presente. Desenho as peças em barro e enquanto está húmido faço a transposição para o gesso. O que este processo permite, fisicamente, é um trabalho com o barro, como um material muito flexível, muito moldável, com o qual é possível experimentar bastante, e não encontro outro que me permita tanta margem de manobra. Independentemente daquilo que estou a trabalhar, recorro muitas vezes a esse material. No entanto, o barro nunca é exposto. 

Tem sido complicada, a recepção destes trabalhos por parte de quem os vê sob perspectivas muitos pragmáticas — não por quem os vê somente pelo que são, nem pela poética do material, mas pela permanência do tempo. O ferro, por exemplo, é sempre um material mais aceitável e, embora possa enferrujar e ter os seus acidentes, ninguém questiona muito o seu uso nem a sua duração e é recorrente nas arte visuais. Mas, para além de todo o seu historial na arte ainda é com surpresa que se vê o gesso e o barro a serem usados no desenvolvimento de um trabalho. Questiono-me se é por trazer consigo algo tipo de arcaísmo. 

Além do mais, estes materiais permitem-me ser auto-suficiente. Uma parte grande do que faço no meu quotidiano e nos meus projectos editoriais é em modo muito colaborativo, mas no meu trabalho artístico prefiro ser auto-suficiente, sem estar a pensar em delegar tarefas ou em pedir ajuda. Sou eu que tenho de o fazer, independentemente de, por vezes e para cumprir prazos, certas partes de peças serem, por exemplo, trabalhadas por um carpinteiro. Essa auto-suficiência para mim é muito importante. A juntar a isso, o gesso é um material que, embora não seja muito resistente, aguenta bem o tempo, pode sofrer os seus acidentes mas posso cuidar disso e refazer certos aspectos se for necessário. Finalmente, é um material pobre e é terra. Posso dizer que tenho estado a trabalhar com terra. Aliás, trabalho com duas terras, o gesso e o barro. Estou inserida numa espécie de ciclo. O próprio processo é interessante, porque equipara-se um pouco à gravura porque o que eu faço é gravar em terra aquilo que vai ser impresso noutro material que também é uma terra. 

 

 

CR: Uma vez disseste que gostavas do facto de o gesso respirar. 

 

IC: Sim. E é preciso ter muito cuidado com ele durante o armazenamento e nos transportes. As peças não podem ficar muito tempo guardadas sem estarem envoltas em material poroso, porque o gesso, como a terra, absorve as humidades, e é um material altamente permeável. Interessa-me essa organicidade, sim, e que respire como eu. 

 

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Isabel Carvalho, Museu Mineiro (2022). Fotografia: Filipe Braga. Cortesia da Artista e Quadrado Azul.

 

 

 

 

 

 

Isabel Carvalho

 

Quadrado Azul

 

Leonorana

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 

 

 

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