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Outras Lembranças, Outros Enredos

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José Marmeleira

Certas tarefas, pela sua ambição e fôlego, afiguram-se, desde o primeiro momento, como difíceis, senão impossíveis. Tome-se, como exemplo, aquela a que se propõe Outras Lembranças, Outros Enredos, patente na Cordoaria Nacional, com a curadoria de Luiza Teixeira de Freitas e Bernardo Mosqueira: mostrar duzentas obras de uma colecção de arte extensa, diversificada, plural, que cobre continentes, períodos históricos e categorias artísticas. Referimo-nos à Coleção Teixeira de Freitas, pensada e construída pelo coleccionador Luiz Teixeira de Freitas sensivelmente entre 2001 e 2014. É dela e com ela que se faz o percurso proposto pelos dois curadores ao longo dos espaços esvaziados, frágeis e envelhecidos do edifício. 

A apresentação da colecção — a primeira realizada em território português — nasce de um contexto e é definida por um enquadramento curatorial. O primeiro é indissociável do Bicentenário da Independência do Brasil, no âmbito do qual surgiu o convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Instituto Camões. O enquadramento curatorial desdobra-se em cinco núcleos que atribuem um sentido à descoberta da colecção representada: Outras Lembranças, Outros Enredos [que, precisamente, dá o título à exposição]; Os Atlânticos: Tramas, Distâncias, Abismos; Ruínaconstrução; Estudos sobre a Liberdade e, por fim, Poesia e Fábula: Linguagem e Apoteose. No espaço, destituído de paredes e sem a ordem do white cube, cada núcleo forma-se enquanto passagem para o seguinte. Tal condição atribui uma fluidez à experiência do espectador que se torna, a dada altura, caótica e algo dispersa. O visitante deambula e, com facilidade, se perde dos princípios mais orientadores. Simplesmente, encontra as obras. E essas obras podem ser um desenho de Lourdes Castro, uma série de composições de Walid Raad, uma construção de Pedro Cabrita Reis ou a aparição surpreendente das desconstruções de Gordon Matta Clark.

Proporcionar o encontro com as obras da colecção é, certamente, uma das grandes virtudes de Outras Lembranças, Outros Enredos. Mas a mais importante talvez seja a de desenhar uma panorâmica dos seus principais elementos: a presença da arte latino-americana, da qual se recortam nomes incontornáveis da arte realizada no Brasil, a visibilidade das estratégias [visuais e formais] do conceptualismo, esse objecto a que chamamos "livro", as conexões da arquitectura  com a arte e, finalmente, o lugar consagrado a uma certa produção artística originária do Médio Oriente. Mais do que os enredos concebidos pela curadoria, organizam a exposição, atribuindo-lhe um sentido que modera o seu escopo esmagador e diversificado.

No primeiro núcleo, recorta-se a solidão do artista face ao mundo que o confronta e que ele confronta. Trata-se de pensar a História [e as histórias], não com as pretensões do conhecimento, mas sob a modéstia inconformada e curiosa da arte. O tom pode ser introspectivo e poético — patente nas peças de Hans Haacke [Condensation Cube] ou de On Kawara [One Million Years], ou mais concreto e mundano. Neste último caso, o artista surge inserido num contexto social, político e cultural e disso dão conta os trabalhos de Mauro Restiffe, Gonçalo Preto, Rivane Neuenschwander ou João Onofre. O nexo entre a realidade interior do artista e a realidade exterior do mundo não se manifesta de um modo programático. Vai-se intuindo entre as obras no espaço.

A passagem para o conjunto seguinte [Tramas, Distâncias, Abismos] é assinalada de um modo discreto e livre. Embora o visitante possa consultar um painel que indicia a entrada no novo núcleo, as obras dizem-no subtilmente. Evocado pelos curadores sem qualquer peso mistificador ou romântico, o Oceano Atlântico surge transfigurado qual memória e motivo sem que tal se torne óbvio. Como escrevem os curadores, é à volta de tramas, distâncias e abismos que as obras nos colocam, mas sem nos dizerem como. Esta recusa [em explicar ou traduzir] liberta o espectador para as ilusões que a peça de Carol Bove desperta, para os traumas [e tramas] que prendem Ouro e Paus de Cildo Meireles ou para simplicidade dramática de Un Charco de Sangre de Jorge Macchi.

 

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Redes, superfícies, mapas e histórias vão-se entrelaçando e deslaçando num movimento que, a pouco e pouco, vai revelando outras imagens e outros objectos. Em Ruínaconstrução emergem alusões à arquitectura, às ruínas, à casa, ao mundo do artifício humano na sua maior tangibilidade.  Trabalhos de Helena Almeida, Ana Vieira, Fernanda Gomes, Pedro Cabrita Reis, constituem uma cartografia que o visitante explora entre linguagens, histórias e territórios. De São Paulo [com Marcelo Cidade] à Palestina [com a impressionante instalação de Bisan Abu Eisheh], do Líbano [com Walid Raad] à Casa Luis Barragán [no México], com uma notável série fotográfica de Damián Ortega, a exposição transforma-se numa viagem por tempos e espaços.

Ocasionalmente, essa experiência pode tornar-se demasiado intensa. As obras expostas em segundo plano competem com aquelas que temos mais próximas de nós, o que está no fundo enubla, por vezes, a peça que acabamos de encontrar. A área ampla da Cordoaria solicita uma constante atenção que se transforma em desatenção, mas esse é um risco assumido pela apresentação das obras e pela narrativa que as sustenta. No conjunto seguinte [Estudos sobre a Liberdade], a sensação não desaparece, mesmo se não faltam momentos em que a experiência se torna mais contemplativa [diante de obras de Lourdes Castro ou Jorge Queiroz] ou implica — pela disposição no espaço —um tempo mais lento, como reclama a instalação Ressaca Tropical de Jonathas de Andrade.

Podemos dizer que esta exposição — que é a apresentação de uma colecção — é feita de baloiços diferentes e, que, por isso, não se deixa domesticar por uma linha temática, disciplinar ou pelo desenho de um só território? A resposta é afirmativa e anuncia uma leitura que na última sala [com instalações de Abraham Cruzvillegas e Adrián Villar Rojas] se torna mais evidente. Ela é composta dos cruzamentos que se expandem e abrem com a heterogeneidade irrequieta da arte. A mesma heterogeneidade que, insatisfeita, não cessa de nos colocar, entre o passado e o futuro, questões irrespondíveis. Sobre a arte e a história.

 

Coleção Teixeira de Freitas

 

Comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil

 

 

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

 

O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

 

 

 

 

 

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Outras Lembranças, Outros Enredos [2022]. Vistas gerais da exposição na Cordoaria Nacional. Fotografia Bruno Lopes. Cortesia Cordoaria Nacional.

 

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