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Lisbon roundup #7

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Isabel Nogueira

 

O ano caminha para o seu final. Muitas exposições aconteceram. Muito Mundo — bom e mau — aconteceu e aconteceu-nos. Para este Roundup seleccionámos três exposições que representam uma conceptualização e uma materialidade com características consideravelmente distintas entre si e que, simultaneamente, incorporam uma visível singularidade.

 

 

Roundup #7

Lisboa: vários locais

 

 

Angela Detanico e Rafael Lain: Corpos Celestes

@ Galeria Vera Cortês

 

O ponto de partida da exposição foi o nome de estrelas distantes pertencentes a três constelações, posteriormente convertidas na fonte “Helvetica Concentrated” e circunscrevendo-se cada letra num círculo. Cada grupo de círculos sobrepostos terá correspondência com uma palavra. Nesta exposição estes nomes  — Corpos Celestes — foram realizados em metal espelhado, formando esferas suspensas no ar. Esta é a explicação conceptual e formal do que o espectador encontra ao visitar o trabalho da dupla Angela Detanico [n. 1974] e Rafael Lain [n. 1973] na Galeria Vera Cortês. Este conjunto dialoga com a pintura Ora [Radiante], que significa Sol, e trata-se de uma folha de ouro sobre madeira, claramente solar, em formato de tríptico.

A visão é elegante e marcadamente espacializada, o que faz todo o sentido quando relacionamos o discurso expositivo com o objecto: as estrelas, e também com a sua disposição relativamente à observação da Terra. A duração de vida destes corpos celestes depende da sua massa, ou seja, da rapidez com que consomem o seu combustível. E este aspecto determina o seu brilho. O final de vida das estrelas com massa abundante representa uma supernova, isto é, uma grande explosão que lança a sua matéria e energia pelo espaço, dando origem a outras estrelas e novos planetas, numa espécie de eterno retorno.

Na verdade, e para o indivíduo comum, quer dizer, para o sujeito não cientista, uma estrela é uma abstracção. É uma bela luz no céu nocturno, assim como uma palavra é uma forma coreográfica abstracta que possui um significado. E, na verdade, percebemos que poderão — palavra e estrela — estar muito mais conectadas entre si do que aparentemente acreditaríamos. Por outro lado, esta conexão abrange o próprio ser humano, como parte integrante de um todo, que é, como sabemos, o universo. Neste sentido, podemos convocar a conhecida afirmação do astrónomo Carl Sagan: Somos todos poeira de estrelas. Esta premissa incorpora o tempo, isto é, somos resultado de um fim. A origem de algo resulta do final de outra coisa qualquer, numa organicidade até desconcertante.

O depuramento do trabalho da dupla Angela Detanico e Rafael Lain situa o espectador imediatamente num lugar, primeiro, de alguma surpresa no contacto visual com estes objectos; depois, de contemplação e suspensão espácio-temporal. A galeria [branca] apresenta-se como espaço de oposição ao universo/firmamento [negro] onde as estrelas são reveladas. E voltamos a uma bipolaridade circular, precisamente evocativa da circularidade dos próprios corpos celestes/objectos desta mostra. O início e o fim confundem-se e fundem-se. Saímos e, cá fora, já é noite. Estrelada.

 

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Angela Detanico e Rafael Lain, Corpos Celestes [2022]. Vistas de Exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia dos Artistas e Galeria Vera Cortês.

 

 

João Ayres: Nanquim Preto sobre Fundo Branco

@ Galeria Zé dos Bois

 

Esta exposição individual de João Ayres [1921-2001] coincide sensivelmente com o centenário do seu nascimento e reúne, com curadoria de Natxo Checa, um conjunto de desenhos e pinturas, produzidos entre 1947 e 1959, correspondendo, grosso modo, à primeira década de obra madura, imediatamente após a sua ida para a capital moçambicana, em 1946. Seria em 1947 que João Ayres realizaria a primeira exposição nesta cidade, juntamente com o seu pai, Frederico Ayres, também pintor, mas este de linguagem naturalista, expectavelmente de acordo com a sua afiliação geracional.  Por estes anos, ambos leccionariam no Núcleo de Arte, importante escola da época. Contudo, João Ayres vinha da vivência das problemáticas abstracção-figuração, que se prolongariam, em Portugal, até aos anos 70. Aliás, em 1973, seria apresentada em Lisboa uma exposição que teria precisamente o título Pintura Portuguesa de Hoje: Abstractos e Neofigurativos. João Ayres não participou, mas esta mostra asinala um claro exemplo de como esta discussão ainda fazia sentido anos depois, conceptualmente até de modo extemporâneo.

Mas, voltando ao período cronológico correspondente aos trabalhos apresentados, por estes anos, em Portugal, as gramáticas artísticas oscilavam entre o abstraccionismo, sobretudo o informalismo [movimento genericamente abstracto e poético, que surge na Europa a seguir à II Guerra Mundial], e a designada nova figuração [movimento, como o nome indica, de cariz figurativo]. A esta tendência de fundo, no caso de João Ayres, importa complexificar e acrescentar toda a matriz de um impressionante colorido africano a que grande parte da arte moderna não foi alheia. Podemos, de resto, afirmar que a arte moderna se inciou com um olhar atento sobre África, Brasil e Oriente, de que foram exemplos concretos as estampas japoneseas, as máscaras africanas, o brilho da cor brasileira, etc. Nesta exposição é possível ver um conjunto escultórico “Makonde” e máscaras  moçambicanas pertencentes à colecção pessoal do artista.

Na verdade, e no que a João Ayres respeita, mais do que uma ligação ao surrealismo ou ao neo-realismo, movimentos artísticos, de qualquer modo, em iminente desaceleração, Ayres queria ser esteticamente moderno. Este parece-nos de facto o enquadramento mais acertado para a obra de um artista com um colorido e um traço notáveis, de pendor absolutamente modernizado e geometrizante, e portadora de visível singularidade. Contudo, claro que a representação sensível e humanizada de temáticas realistas, como a vida dos trabalhadores na doca de Maputo, ou do tocador de berimbau, permitem problematizar visões, e inclusivamente convocar, neste sentido, e sobretudo nele, o neo-realismo equanto corrente artística de meados do século XX, com um carácter ideológico marcadamente de esquerda, reactivo ao fascismo e assumido veículo de resistência.

Esta procura de modernidade vinha já, pelo menos, do tempo em que Ayres expôs no Porto, em 1944, com um grupo de artistas descontentes com um país fechado, ditatorial, culturalmente periférico e ruralizado. Eram as exposições de Os Independentes [1943-1950]. Uma década depois, em 1955, João Ayres realizaria uma exposição individual no Museu de Arte Moderna de São Paulo, momento naturalmente impactante na sua carreira e visibilidade. Foi no regresso a Moçambique que produziu os desenhos a tinta-da-china [tinta naquim no vocabulário da época] que integram esta exposição e que lhe dão título. Trata-se de trabalhos abstractizantes, perfeitamente em consonância com a estética modernista, que inicia a sua narrativa, ainda no século XIX, precisamente com o caminho da abstracção. As formas geométricas acabaram por ser a matriz da vanguarda russa, sobretudo no suprematismo, mas também da Escola da Bauhaus, do Neoplasticismo ou, mais tarde, do Movimento Concreto brasileiro. Em suma, tanto do ponto de vista dos movimentos artísticos como das gramáticas plásticas é possível ensaiar diversos enquadramentos da obra de João Ayres, representativa de uma encruzilhada de tendências, geografias e culturas, e que vale a pena redescobrir.

 

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João Ayres, Nanquim Preto sobre Fundo Branco [2022]. Vistas de Exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia da Galeria Zé dos Bois.

 

 

Nuno Cera: Janela Infinita

@ Galeria Miguel Nabinho

 

Chove muito e o movimento nas ruas diminui. Entramos na galeria e o silêncio acompanha-nos. Mas a água também. Descemos as escadas e a visão abre-se precisamente sobre a água do mar e, pontualmente, sobre a água do rio, como o Danúbio. Mas, vamos simplificar e assumir que Janela Infinita, de Nuno Cera [n. 1972], é uma exposição fotográfica sobre o mar [Atlântico, Mar das Baleares, Baía Tai Van, etc.]. E iniciemos por uma premissa, a nosso ver, fundamental: mesmo acompanhado, o mar olha-se sempre só. Nesta contemplação activa o mar assume uma dimensão difícil de circunscrever, mas que corresponderá fisicamente ao lance de vista, ao alcance do olhar. Contudo, metafórica e emocionalmente, poderá convocar um universo sem fim, claro.

Todas as fotografias estão dispostas verticalmente e todas colocam o espectador em cima da água, numa totalidade de enquadramento. Exceptuando uma: a imagem que nos mostra um intenso azul ultramarino e a linha do horizonte. Do ponto de vista cromático, as peças incorporam a subtileza da luz reflectida na água, nas suas gradações de rosa, azul, verde ou castanho sépia. De algum modo, estas gradações recordam também a fotografia do século XIX, no seu classissismo irrepreensível do momento em que a imagem fotográfica ainda procurava a magia e o perfeccionismo da pintura, visíveis, por exemplo, nas fotografias do mar de Gustave Le Gray que, com outros, nos anos 50 do século XIX, partia em França na célebre “Missão Heliográfica”. Depois a fotografia seguiu — e bem — o seu caminho. As imagens de Cera reúnem algo de clássico, que de algum modo sobrevive ao tempo, mas também um evidente dinamismo no modo como a água é olhada e como nos olha de volta. E que aparece e desaparece, como uma onda. O mar e o espectador tornam-se num só. E voltamos à solidão do enquadramento — real ou imagético — do mar e da sua massa imensa.

Um outro aspecto chama a nossa atenção. A ideia de janela é sedutora e operativa. Segundo o teórico e arquitecto renascentista Leon-Battista Alberti, no seu tratado De pictura [1435], o quadro define o limite da imagem e abre para um mundo imaginário do seguinte modo:

[…] traço sobre a superfície um quadrilátero de ângulos rectos tão vasto como desejar, que desempenhe o papel de uma janela aberta, através da qual a História possa ser apreendida no seu todo.

A pintura seria a intersecção plana da pirâmide visual [“véu”]. O quadro seria, portanto, através do uso da perspectiva linear, “uma janela aberta sobre a História”, isto é, uma superfície transparente e transitiva numa presumida temporalidade da imagem fixa. A paisagem e a arquitectura são precisamente dois assuntos que se destacam na obra de Nuno Cera, ambos incorporadores de espacialidade e de tempo. Na verdade, e como acreditou Merleau-Ponty na sua derradeira obra [L’oeil et l’esprit, 1960] a relação do Homem com o Outro e com a Natureza passa pelo ver, isto é,  a visão seria um meio de “sair do Eu” e, acrescentamos nós, de a ele voltar depois do Mundo. Mesmo acompanhado, o mar olha-se sempre só.

 

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Nuno Cera, Janela Infinita [2022]. Vistas de Exposição. Cortesia do Artista e Galeria Miguel Nabinho.

 


 

 

 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

 

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