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Nova Temporada de Exposições do Arquipélago: Centro de Artes Contemporâneas

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Sofia Nunes

 

A programação de exposições do Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas para o próximo ano arrancou no dia 24 de setembro com a inauguração simultânea de duas mostras individuais de Carla Filipe e Margarida Andrade e uma nova intervenção com o Transformatório de Susanne Themlitz, este último iniciado em março passado sob a curadoria de João Mourão. Tratam-se de propostas bastante ecléticas, embora todas sejam tangíveis à realidade local, à sua história, aos seus agentes e artefactos. 

Em Confissões de uma baptizada, Carla Filipe apresenta duas instalações de natureza arquivística, unidas pela crítica que dirigem às estruturas patriarcais da Igreja Católica e da Política. Para a primeira sala, a artista concebeu um “papel de parede” impresso a preto e branco com imagens sobrepostas de grades de ferro dos conventos femininos, à luz dos exemplares existentes nos museus Carlos Machado, em Ponta Delgada, e Santa Joana, em Aveiro. No entanto, o sentido de clausura que estas grades representam é profanado. Ao colar sobre estas imagens desenhos dedicados a mulheres portuguesas que participaram na vida pública e intelectual do país em diferentes momentos da história, através das suas atividades de cunho emancipatório — como as micaelenses Alice Moderno, Madre Margarida do Apocalipse e Natália Correia —, Carla Filipe não só expande aquela condição de isolamento feminino para fora do convento, transformando-a numa condição geral da mulher portuguesa, o seu pano de fundo, como também a contraria, quando cita os escritos transgressores daquelas mulheres ou quando acrescenta anotações pessoais, desenhos de santas e figuras bíblicas, num animado registo de derrisão cacofónica em que a moral e a liderança masculina católicas são pervertidas.  

Já na segunda instalação, mais esquemática e direta, dada a lógica dialética empregue, embora viva de contrastes cromáticos, é a exclusão da mulher, face à representação visual e às narrativas dos movimentos políticos contrarrevolucionários surgidos em Portugal depois do PREC, que é subvertida. Fotografias e notícias alusivas às manifestações da Frente de Libertação dos Açores, na cidade de Ponta Delgada, em 1975, e à campanha de Ramalho Eanes para a Presidência da República, em 1976, preenchem as superfícies de cinco bandeiras pendidas. Se as fontes recolhidas descrevem os acontecimentos no masculino, os corpos dos seus atores adquirem uma fisionomia andrógena pela colagem de rostos femininos anónimos. Neste gesto de sabotagem irónica, impulsionado pelas imagens das protagonistas da Reforma Agrária, impressas nas restantes bandeiras, a par do rosto de Maria de Lourdes Pintasilgo, carimbado em série, implica-se um desejo de igualdade de género eventualmente sobredeterminado por uma recorrência ideológica mais simplista.

A questão do género, encontramo-la, de novo, na exposição de Margarida Andrade, embora tratada numa perspetiva antropocénica. A exposição No futuro também se usavam pincéis parte de um livro de ficção, A Décima Ilha, no qual a jovem artista, natural de São Miguel, especula uma história passada no futuro com contornos pós-humanos. O humano foi extinto e substituído pelas novas espécies dominantes, as “ultra-humanas”, criadas geneticamente a partir do género humano antes de este desaparecer da terra. "As navególogos", subespécie das ultra-humanas, têm uma missão: encontrar a Décima Ilha, que se formara a partir da soma de nove ilhas independentes. As analogias com o arquipélago açoriano vão crescendo, enquanto a expedição se desenrola por entre crenças animistas, religiosas, avanço tecnológico, formações geológicas, plantas, hibridismos de género e toxicidades. Chegado à Ilha, o grupo depara-se com achados arqueológicos, peças cerâmicas e pinturas, os mesmos que encontramos na exposição. Na passagem do literário ao objeto, Andrade parece querer gerar uma arqueologia retrofuturista do próprio humano, colocando o espectador a observar-se no futuro a partir de uma reminiscência dos seus modos de vida ancestrais, prévios à chegada da grande indústria. Pena que estas múltiplas variações de humano, a coexistência de tempos diferentes ou a mistura de géneros, saberes e credos, enquanto ecologias potencialmente interessantes, não tenham melhor concretização no contexto expositivo. Atuantes na narrativa do livro, também ele exibido, como achado encontrado, tendem, no entanto, a perder leitura no conjunto da exposição. 

Próximo do terreno da arqueologia está também o Transformatório, conduzido por Susanne Themlitz. Ao longo dos últimos seis meses, a artista tem transformado as caves do Arquipélago num laboratório de apresentação de infinitas matérias dispostas sobre tampos de mesas, cuja arrumação lembra os métodos expositivos arqueológicos de finais do século XIX, mas sem a sua estrutura de organização racionalizada. Desenhos, peças cerâmicas, espécies minerais, lupas, objetos etnográficos, pinturas, corais, potes de vidro, esculturas, animais embalsamados convivem por continuidades e descontinuidades, desvios e contágios, ressonâncias e silêncios, numa teia de materialidades que tanto incitam à observação microscópica, atenta às particularidades de cada matéria, como às afetações recíprocas envolvidas naquela rede. Aqui, matéria significa espaço intersticial, elemento vivo, em que o próprio bolor da humidade das caves participa como agente transformador; mas é igualmente espaço coletivo, intervencionado pela própria comunidade de São Miguel. Ao lado de Themlitz, curadores de museus locais, alunos e professores do secundário, crianças, utentes de centros de dia têm acrescentado novos elementos ao projeto, alargando em conjunto as possibilidades de vida da matéria.

O Arquipélago volta assim a afirmar uma programação fortemente enraizada no envolvimento local, assumindo a comunidade como ideia que se ficciona e negoceia nas suas mais variadas coexistências (humanas e não-humanas) e onde o feminino adquire um lugar de enunciação preponderante.

 

Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas

 

 

 

Sofia Nunes. Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém [2000 a 2007]. Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa [2009 a 2011]. Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 

 

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Exposição Margarida Andrade (c) Álvaro Miranda (1)

Imagens de exposições: Transformatório de Susanne Themlitz; Confissões de uma baptizada de Carla Filipe; No futuro também se usavam pincéis de Margarida Andrade no Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas, São Miguel, Açores, 2022. Fotos: Álvaro Miranda. Cortesia de Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas.

 

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