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Rui Chafes: Chegar sem Partir

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Isabel Nogueira

Quanto tempo vai durar a penumbra?

Os olhos vão-se adaptando vagamente à sala, quase sem luz, que permite observar subtilmente cinco belas peças dispostas na parede: Tranquila ferida do sim, faca do não [2013/2018]. E, independentemente da validade e do efectivo interesse que todas as peças da exposição despertam, esta proposta de discreta visão e de forte sensorialidade e abandono é, em nosso entender, a melhor e a mais inusitada da mostra de Rui Chafes [n. 1966] no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, e que se prolonga pelos jardins — destacamos a poderosa peça Comer o coração [2004], uma colaboração escultórico-performativa com Vera Mantero — com curadoria de Philippe Vergne e Inês Grosso.

 

 

Além da tridimensionalidade objectual que a escultura enquanto linguagem e disciplina convoca, nesta sala, a qual, e logo após a peça supensa Sudário [2018], abre o percurso expositivo, o convite é à vivência efectiva do espaço e da espacialidade, praticamente sem referências. Há um convite a ser-se humano, no sentido até do inevitável toque entre as pessoas que ali estão à procura de uma saída, que soltam palavras, até palavrões, mas que, aos poucos, se vão rendendo. E nesta rendição a relação obra-espectador acontece. O lusco-fusco torna-se numa possibilidade estética e imersiva. O espectador, se assim o entender, poderá permanecer indefinidamente aqui, numa espécie de limbo entre imaginação e realidade. E esta ideia pode também reportar-nos a um aspecto genericamente identificável na obra de Chafes, além de todo o seu reconhecível depuramento e sofisticação formais. Trata-se de um romantismo denso e potencialmente historicista e sedutor.

A estética romântica assinalou o início do abandono do princípio da imitação, o qual, como se sabe, seria absolutamente retomado com o começo da arte moderna. A arte romântica assume-se como uma projecção do interior, como expressão contundente de um universo íntimo, particular, inquietante. E, neste contexto, seria atribuído um claro valor à imaginação e à fantasia, tornando-se incluisivamente esta última numa faculdade estética, quer dizer, de fruição. E, portanto, voltamos à sala de partida e à sua densidade de penumbra, recolhimento e silêncio, e que tão bem reflecte este universo romântico. Aliás, na organização pendular da história da arte, seria ao gótico — também ele denso, de carácter melencólico e de estilização formalista — onde o romatismo largamente iria beber. E, particularmente no caso do romantismo alemão e inglês, a beleza aproxima-se de verdade, numa expressão do interior para o exterior. É conhecida a frase de Novalis evocativa desta questão:

 

«Ele [ser humano] vê a partir de dentro e não para o interior. Sente a partir de dentro e não para o interior»,

 

autor que seria profusamente citado, por exemplo, por Walter Benjamin em Dois poemas de Friedrich Hölderlin [Zwei Gedichte von Friedrich Hölderlin, escrito em 1915-1916, publicado em 1955], que precisamente discorre sobre uma clara distinção entre distracção — colectiva — e recolhimento — individual. O recolhimento perante uma obra de arte seria capaz de fazer o indivíduo “mergulhar no abismo”, enquanto a massa abarcaria a obra de arte no seu alcance superficial, ou na sua imediatez. A “aura” torna-se num dos conceitos determinantes da estética de Benjamin e a sua definição aparece, segundo cremos, pela primeira vez, no texto Rua de Sentido Único [Einbahnstrasse, 1928].

 

E continuamos este percurso, debruçando-nos sobre mais algumas peças e ambientes. Burning in a forbidden sea [2011] é um trabalho notável, concretizado numa peça que se expande pelo espaço, como uma aranha ou anémona gigantes, envolvida num verde intenso e com componente sonora. E o conjunto torna-se quase irreal, mais uma vez, localizado numa zona de transitividade entre espaços e desafiando o binómio realidade/imaginação. Também o trabalho A não ser que te amem [1987] é incorporador destes aspectos. Desta vez, numa atmosfera de um intenso azul ultramarino, semelhante ao International Klein Blue, patenteado pelo artista francês em 1960, e que este genericamente definiu como “zona de sensibilidade pictórica imaterial”, etérea e profunda. As peças de Rui Chafes contorcem-se no espaço, como fitas gigantes ou tentáculos impossíveis de deter ou de agarrar. A espacialização é total. Outro aspecto aqui importa: a não distracção do espectador. Os ambientes são intimistas, eventualmente claustrofóbicos, oscilando entre um grau de conforto e de desconforto, por vezes convidativos à meditação e ao recolhimento.

 

 

A determinada altura, no chão encontra-se um par de sapatos em tamanho natural. Estão um pouco elevados do chão e aparentam estar calçados por alguém que os movimenta. Mas, claro, não está ninguém. É uma das peças mais surpreendentes do conjunto, no seu — pequeno — tamanho, singeleza e na vida/presença que ali se adivinha. Mais um momento de humanidade nesta exposição. Esta relação intimismo- exteriorização; quotidiano-arte convoca, por exemplo, o ensaio de Arthur Danto, The Transfiguration of the Commonplace [1981], onde a arte é compreendida como exteriorização de uma forma de ver o mundo a partir do interior, ou seja, como um espelho, entre a transparência e a opacidade. Finalmente, destacamos a peça Medo não medo [1988/1998]. Trata-se de tubos de metal, que imediatamente evocam lanças, que cruzam todo o corredor da saída. Entra-se por uma faca e sai-se por uma lança. Não só o olhar, mas os restantes sentidos são convocados nesta exposição, que faz dela, por conseguinte, uma reinventiva maneira de mostrar a obra de Rui Chafes.

O Mundo é um lugar de muitas possibilidades. Lá fora está sol dourado de Outono.

 

 

 

Rui Chafes

 

 

Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea

 

 

 

 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

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Rui Chafes, Chegar sem Partir [2022]. Vistas de Exposição. Fotografia: Filipe Braga, Fernando Guerra | FG+SG. Cortesia Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea.

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