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André Romão: Noite

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José Marmeleira

 

Nesta exposição de André Romão há várias coisas que ressaltam aos olhos de quem chega: a presença de estranhos focos de luz que, no cubo branco, parecem assemelhar-lhe a pequenas chamas. A aparição suspensa de formas em madeira que parecem replicar fragmentos de esculturas religiosas. E a vista de um corpo que, incompleto e disposto sobre um volume concreto, se assemelha a uma figura espectral que, se diria, viva. Não durará esta ilusão. A criatura, que parece olhar-nos de volta, é afinal uma escultura construída com uma máscara e uma tapeçaria com 400 anos. E aquelas chamas, que o branco da galeria não apaga, são afinal luzes [lâmpadas] alimentadas pela electricidade. Mas este regresso ao real [e ao quotidiano] não será completo.

 

 

Como noutras exposições, em especial na notável Fauna [no Museu Coleção Berardo, com curadoria de Pedro Lapa], o espectador duvidará amiúde do que está a ver, sem perder a razão. Sabe que entrou no universo ficcional — estético, conceptual, formal, visual do artista — e, no entanto, não raras vezes, se perderá numa penumbra iluminada e habitada por criaturas.

Poderíamos aventar uma explicação instrumental — e sempre precária — para o sucesso destes efeitos. André Romão é um artista com talento cultivado para pensar as relações entre coisas e ideias e para dispor, no espaço, essas mesmas relações. De novo, pense-se em Fauna e no modo como cada obra aparecia enquanto corpo de associações, situando o visitante numa zona liminar, entre o animal e o humano, a noite e o dia, o material e o imaterial, a razão e o sonho.

Em certo sentido, podemos estabelecer um parentesco entre os dois momentos. Sim, há continuidade, mas também uma leve inflexão. Em Noite redescobrem-se caminhos que já haviam sido abertos em Fauna e que, de facto, persistem na Galeria Vera Cortês. Vejamos três: — A convicção de que arte, sendo um modo de pensamento, recolhe ideias [e a sensibilidade que elas trazem], sem, todavia, a elas se subordinar. — Uma relação poética, livre e singular com as coisas que permita re-sensibilizar a nossa relação com a vida e mundo. — Um à vontade desapaixonado na sua paixão pelas coisas que encontra ou descobre: poesia, literatura, música, arte, ciência.

Em Noite, ressoa, contudo, outro tom, outro acorde que se diria mais íntimo, mais profundamente singular e solitário. É como se esses modos de ver e trabalhar se debruçassem sobre si mesmos, delicadamente distantes de discursos exógenos e determinados. Não será despropositado intuir nesta exposição, logo que nela entramos, um desejo — que talvez já ressoasse na anterior — de aproximar, subtilmente a arte da magia [e do sobrenatural], de colocar a hipótese de que uma certa relação de culto com os objectos artísticos ainda permanece, senão pertinente, latente. Ora, se assim é, André Romão não é movido pela melancolia ou por um desejo reparador [de traumas, feridas ou ausências]. O seu olhar é eminentemente poético e transfigurador, mesmo sendo sensível aos modos hodiernos de pensar e compreender a vida e a arte. Reformulando, André Romão não é, por exemplo, um artista indiferente a modos de ser e estar não-humanos, sejam estes biológicos ou não biológicos [coisas].

 

 

Nesta exposição, interessa-lhe menos esboçar um ponto de vista, mas antes oferecer ao visitante um topos em que as coisas [quais seres] podem estar vivas e mortas. É nesse sentido que podem ser encontrados os fragmentos escultóricos nos quais observamos, como se emergindo do tempo, formas originárias de ex-votos. Diz-nos o artista — por meio das legendas — que provavelmente são originários de países e de séculos específicos. Esta incerteza é produtiva: permite ao visitante interpretar as temporalidades que, para lá do tempo histórico, animam as peças: afinal não se reclama aqui a posição do arqueólogo ou do historiador.

Observamos, apenas, a passagem do tempo: uma metamorfose lenta desenhada pelos veios geológicos representada na matéria carcomida e gasta do que foi o corpo de uma árvore. Numa época, objectos com um uso religioso, as esculturas voltaram a ser o que sempre foram: madeira. E, assim, regressam, sem mais, ao processo biológico de onde foram arrancadas. Acontece que elas continuam, pelo acção de André Romão, no mundo do artifício humano: e aí não reaparecem sem intervenção fabuladora e alquímica do artista. Ora surgem iluminadas [com lâmpadas] em The Visitor [left] e The Visitor [right], ora enxertadas com elementos naturais em Grafting [dead wood].

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Como interpretar estes gestos de André Romão? À superfície, presumir-se-ia um pathos melancólico, face à sobrevivência da arte depois da magia e da religião — como se o artista ansiasse por um outro tipo, mais enigmático, de reparação. Mas o que se percebe é o oposto: um desejo silencioso de vitalidade que atravessa, pela luz [assinale-se a presença da eletricidade em seus objectos mais mundanos], pelo fazer escultórico e pelas ideias, todas as esculturas. André Romão não nos recebe numa elegia, mas num lugar onde as [suas] criaturas se animam, parecendo desafiar a gravidade [sensação que os plintos transparentes acentuam].

Ora, estas criaturas não têm uma condição apenas material ou escultórica. Têm contornos espectrais, elusivos, lacunares, mesmo quando são produtos de adições do artista [Prósthesis]. Olham-nos do escuro [Ancient Woods e A Touch of the Fox/Sunâmbulo] como se tivéssemos invadido a sua noite. Olham-nos assustadas, expectantes, não totalmente humanas, não totalmente animais. Ou somos nós que as olhamos? André Romão dá-nos uma pista [no título e nos poemas que podemos ler na parede]: podiam ser raposas, animais que até hoje permanecem um mistério irrespondível para a cultura humana. Seres esquivos, perigosos, nocturnos e belos vivem num espaço liminar ao qual nunca temos a certeza de ter acesso. Talvez seja essa a única melancolia produtiva a que André Romão se permite, a sua fábula. A de se imaginar outro — animal — para lá de qualquer controle ou lei enquanto artista. E esse foi, e ainda é, um desejo perseguido pela poesia e pela a arte: o de vencer, furtiva, os seus limites na noite do sonho e da imaginação.

 

 

 

 

André Romão

 

 

Galeria Vera Cortês

 

 

 

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

 

 

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André Romão, Noite (2022). Vistas de Exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia do Artista e Galeria Vera Cortês.

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