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Conversa com Marta Mestre

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José Marmeleira

Desde o fim de 2020, directora artística do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Marta Mestre desenha, numa conversa com a Contemporânea, um panorama do que foi o último ano e meio do seu programa artístico. E, apontando ao horizonte do futuro, reflecte sobre o museu, a colecção e a obra de José de Guimarães e o seu tempo que é [também] o nosso.

 

 

 

José Marmeleira (JM): Comecemos esta conversa noutra geografia, o Brasil, onde viveste durante oito anos. Em 2010, começaste a trabalhar enquanto curadora assistente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Seis anos depois, foste curadora-convidada na Escola de Artes Visuais Parque Lage, no Rio de Janeiro. E, entre 2016 e 2017, foste curadora no Instituto Inhotim, em Minas Gerais. Hesito em chamar este período de passagem, isto é, de algum modo ainda está contigo, ter-te-á formado profundamente enquanto curadora. Portanto, e indo directamente à pergunta, o que trouxeste do Brasil para Guimarães nessa condição?

 

 

Marta Mestre (MM): A tua pergunta é difícil. A escala das duas experiências é avassaladoramente distinta e só as consigo aproximar enquanto exercício especulativo, com um quê de anedótico. O Brasil que experienciei entra em choque com a realidade de Guimarães. No Brasil, são duzentos milhões de habitantes, em Guimarães são cento e cinquenta mil. Daí que o trabalho que procuro fazer no CIAJG tenha necessariamente de incluir processos de aproximação e mediações. Por mais que vivamos num mundo globalizado, o repertório que carregamos connosco deve possuir uma dimensão dinâmica com o que temos pela frente, uma forma de tradução.

Mas, sem dúvida, ter vivido e trabalhado no Brasil deixou marcas. Foram oito anos essenciais na minha formação. Anos de abertura para outras perspectivas sobre o mundo, outras formas de fazer curadoria e gerir instituições. A América do Sul, e em particular o Brasil, estabeleceu um contra-ponto importantíssimo à hegemonia da arte europeia e norte-americana, através de artistas, pensadores e estéticas de corpo inteiro. Lygia Clark, Helio Oiticica, Glauber Rocha, Artur Barrio, Bispo do Rosário, José Bezerra, Lygia Pape, Ailton Krenak, Mário Pedrosa, são referências máximas para mim. Volto a eles vezes indefinidas, os seus trabalhos moldaram a minha forma de olhar para o contexto da arte. Há uma dimensão política em vários destes artistas, um olhar crítico que sempre me interessou, menos contemplativo, mais urgente.

O Brasil proporciona uma experiência da multiplicidade a alguém que aprofunde o conhecimento sobre o país, as pessoas e a sua cultura A evidência do múltiplo, na arte, na natureza ou no humano deixa cair sobre terra visões categóricas e unívocas. Essa multiplicidade gera, no que à arte diz respeito, uma diversidade de formas de criar que historicamente se diferenciam do que poderíamos considerar o cânone europeu e norte-americano, que não existiram em função da validação por esse mesmo cânone. Antes pelo contrário, fizeram o seu próprio caminho.

 

JM: Como sintetizarias essa diferença?

MM: Diria que o contexto social, económico e histórico são distintos. A vida ocorre plenamente nas ruas, a arte não tem sempre o recorte da galeria, do museu. A institucionalidade é, na sua maioria, precária. Ou como diz o crítico brasileiro Rodrigo Naves, referindo-se à inconstância do projeto construtivista e moderno no Brasil, a “forma é difícil”. E essa “dificuldade”, essa impureza, abriu caminho a uma arte muito próxima à vida, na sua dimensão relacional. Esta perspectiva colabora para ultrapassar o impasse ontológico do Ocidente, que é a questão da representação. Como passar da representação para a relação? É uma pergunta que nos conduz ao cerne da questão da imagem, da mimesis…

No caso da coleção do CIAJG, na medida em que é uma evidente produção do “outro” no contexto da arte, essa pergunta é essencial. Parece-me necessário equacionar o sistema ocidental de produção de diferença, a partir de outros pontos de vista, e o Brasil tem uma vantagem nesse debate, como sabemos. Como diz o James Clifford: “e se a identidade for concebida, não como uma fronteira a ser defendida, e sim como um nexo de relações e transações no qual o sujeito está ativamente comprometido!”

 

JM: Essa frase do James Clifford parece responder, com uma eloquência heurística, a muitos dos debates que agitam, quando não ferem, o meio artístico…

 

MM: Clifford, que cresceu em Nova Iorque e é da geração de muitos artistas que, nos anos 70, iniciaram os debates que, como dizes, agitam hoje o meio artístico. Embora hoje exista uma nova relação estreita entre economia e produção de subjetividade tomou conta da noção de identidade….

 

JM: Mencionas a palavra economia. Referes-te à economia enquanto ciência social ou está implícito no teu uso do termo o predomínio da ideologia do neoliberalismo?

 

MM: Se existe uma historicidade inerente à produção de subjetividade[s], podemos entender que o atual sistema capitalista [o neoliberalismo que define a nossa era] orienta a atual produção de subjetividades. O sistema da arte participa disso. Não sei se respondi à tua pergunta…

 

JM: Passou um ano e meio desde que iniciaste a tua actividade no Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Porventura é cedo para colocar esta questão, mas como descreverias neste momento a visibilidade pública do Centro Internacional das Artes José de Guimarães. É a desejável? Ou ainda persistem obstáculos que vão turvando o seu conhecimento e reconhecimento por um público mais alargado?

 

MM: Os últimos tempos têm sido intensos. A chegada a Guimarães não foi “ligeira”. Vivíamos uma pandemia e eu tinha acabado de ter um filho, mudara-me para uma cidade nova. Olhando para trás, dou-me conta de que conseguimos continuar a fazer um bom programa, trabalhar com uma equipa, contactar com os públicos, e isso deixa-me contente. Mas qualquer instituição tem as suas limitações. Não se consegue implementar mudanças apenas de um ponto de vista da curadoria. Não basta introduzir conteúdos críticos numa instituição, trata-se de fazê-la funcionar como um espaço verdadeiramente público, em estreita relação com o que se passa lá fora. Um espaço como o CIAJG tem um potencial por ser cumprido. Estamos na metade de um caminho que pode crescer proporcionando outras formas de participação, inclusive para além do programa de exposições. Isso é desejável e fundamental.

 

JM: O CIAJG, entretanto, já construiu uma história, tem uma história...

 

MM: Desde o seu surgimento, com a direção do Nuno Faria, o CIAJG defende um lugar experimental e especulativo. Essas linhas orientadoras e uma programação feita de raiz, que cruzou os vários territórios da arte e não só, estabeleceram um património afetivo, uma admiração por parte da comunidade artística que considero extremamente importante. No caso das instituições culturais, se essa admiração não existe ou se, tendo existido, se perde [e estou a pensar obviamente em casos específicos de museus em Portugal], o reconhecimento da comunidade artística desfragmenta-se. Nesse sentido, o CIAJG é e continua a ser um espaço onde os artistas querem participar, precisamente pelo programa artístico, pelos diálogos com as coleções, por ali sentirem uma energia que lhes permite extrapolar significados dos seus próprios trabalhos. Mas existem vários outros aspectos no plano institucional para que esta equação consiga ser dinâmica e agregadora. Dirigir uma instituição é sempre uma equação entre ideias, pessoas e recursos, que não é fácil, que requer um conhecimento especializado, treinado. Ter-me mudado para Guimarães resulta da percepção de que é necessário conhecer o lugar e as pessoas onde o CIAJG existe para, através daí, multiplicar a comunidade. Interessa-me uma relação “criativa” com quem conhece muito bem o território e tenho a certeza que este caminho será consolidado nos próximos anos.

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JM: Deixa-me ressaltar a expressão multiplicar a comunidade. Tem um significado que contraria a perpétua macrocefalia do tecido cultural e artístico português. Dito de outro modo, Lisboa e Porto ainda parecem ser as cidades. Como se contraria esta percepção?

 

MM: Não penso que exista outra forma de operar num horizonte temporal longo a não ser com uma estratégia de descentralização, que alie projetos e recursos. Mas isso não existe. Dou-te um exemplo, um equipamento como o CIAJG, resultado de uma cidade capital europeia da cultura, deveria ter um projeto de financiamento concertado com o Estado, à semelhança dos exemplos de Lisboa e Porto.

 

JM: E não tem...

 

MM: Não tem. A escala deste equipamento é muito grande. São quase 4.000 metros quadrados de área de exposições e programação. Que outro equipamento existe desta envergadura?

 

JM: Um dos eixos conceptuais do teu programa curatorial passa pelo recuperar das ideias de ficção e do narrar, do contar. Estas ideias, em especial as duas últimas, não desapareceram em absoluto da paisagem construída pela arte contemporânea, mas se recuarmos ao modernismo já é mais difícil avistá-las. E, então, se focarmos a nossa atenção num período largo da arte feita em Portugal, a sua presença é residual. Ora, tu afirma-las sem receio. São orientadoras do teu trabalho no Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Depreendo daí que o narrar e o contar de histórias são experiências que não consideras antitéticas ao campo mais “tradicional” das artes visuais. Porquê?

 

MM: De modo intuitivo, entendi que quando chegas a uma instituição cultural deves perguntar-te que novo relato queres construir? Como pô-lo em prática? Qual o vocabulário para o qual estás a convocar as pessoas? “Nas Margens da Ficção” enquadra a nossa programação por três anos. Indo um pouco em sentido contrário à tua pergunta, a ficção é uma etapa essencial do modernismo, na literatura, na filosofia, na fotografia, na própria história… A ficção estabeleceu a ideia moderna de que tampouco somos uma identidade, somos sujeitos que adoptamos uma multiplicidade de posições diversas, intermutáveis….

No caso do CIAJG, a razão para convocar os sentidos da ficção tem que ver com três fatores. Em primeiro lugar, relaciona-se com as coleções de objetos que, na sua maioria, se reportam a tradições do narrar e do contar que praticamente desapareceram. Gostaríamos de explorar a ideia de que os objetos existem [ou existiram] articulados a formas de narrar específicas, com inscrições em geografias variadas ao redor do mundo. Como se narram os rios a partir das concepções dos povos Dogon? Como estes povos narram os rios no mundo digital [entendendo, claro, o presente dessas comunidades no mundo globalizado]? O que a arte contemporânea tem que ver com isto? Em segundo lugar, a ideia de museu como “máquina de fições”, ou seja, a ideia de que as narrações historiográficas, ainda que estejam baseadas em realidades, operam como ficções. Modificam a percepção que temos sobre o passado, o presente e o futuro. A experiência da pandemia fez-me pensar o aspecto político da ficção, e na possibilidade desta regenerar o real. Não se trata de uma via “escapista”, mas uma via que possa ser ancorada numa ética, numa nova forma de nomear, entendendo, como refere o Jacques Rancière, que o real precisa de ser ficcionado para ser pensado. Por último, este programa lança-se como continuidade de “Para Além da História", o programa inaugural do CIAJG. O que pode ser equacionado “para além da história”? A ficção. Entre o relato inicialmente produzido para a abertura do CIAJG e aquilo que hoje o visitante encontrará estabelece-se uma diferença dialógica que faz o museu “permanecer”, exercitando-o de forma imaginativa.

 

JM: Tens razão no reparo que fazes acerca da ficção, mas quando mencionei a ideia de narrativa pretendia deixar implícita uma certa conexão à representação mimética do real. E foi precisamente essa conexão que muitos teóricos, filósofos e artista atacaram, dizendo que a arte não já não procurava representar ou significar nada que lhe fosse exterior. A relação com a narrativa ou com o storytelling veio, creio, a sair fragilizada dessa posição modernista e coube ao cinema — sob a força de diversos factores — reclamá-la. Bom, entretanto, já me dispersei. Deixo, finalmente, a pergunta: considerarias que os artistas têm vindo a reaproximar-se, nas últimas décadas, da experiência da narração e da narrativa?

 

MM: Terei sempre reticências em dar-te uma resposta cabal ao que perguntas porque depende do contexto de produção, inclusive geográfico, para onde estás a olhar. Se por um lado, a experiência da narração e das narrativas — a literatura, o cinema, as artes visuais — se constituem, ou se reconstituem continuamente, como formas nascidas da própria crise da experiência, por outro lado, a ideia de vínculo social, que a narração engendra, recompõe-se e prolifera nos novos ambientes digitais. Estamos a assistir a uma recomposição das formas de narrar, assim como da sociabilidade.

 

JM: Em termos de curadoria, identifico linhas de continuidade e descontinuidade com o trabalho de Nuno Faria no Centro Internacional das Artes José de Guimarães. No primeiro caso, permanece um pendor autoral que reflecte, se quiseres, afinidades artísticas e sensibilidades particulares. No segundo, identifica-se a presença de outras questões ou linhas temáticas, como sejam o museu, a história, os mitos ou as formas de narrar da pequena tradição. Queres comentar?

 

MM: Não me identifico muito com as “linhas temáticas”, porque isso vai ao encontro de uma ideia de programação como receituário de “valores”, que me parecem sempre imputados “de cima para baixo”. A boa consciência a dizer às massas o que elas têm de ver e aprender. O desafio é outro e é maior, como programar num mundo em transformação, inclusive do modo como as pessoas experienciam a cultura, num mundo rápido, de rápidos soundbytes? Como evitar fazer das “linhas temáticas” meros consumos culturais sem consequência? Como trabalhar um campo exploratório de exposições que tenham um fio condutor entre si? E que tenham plena liberdade de expressão? São questões que se levantam todos os dias no museu.

Este ano comemoram-se os dez anos do CIAJG. Entre outras fizemos três exposições que são importantes para seguir um caminho que está a ser realizado: A Língua do Monstro uma intervenção extensa do Pedro Barateiro que “esvaziou” o piso 1 do museu e que colocou ao centro um “monstro”, costurando esta história com uma seleção sumária e criteriosa de outros objetos. E, no piso de baixo, a exposição Amnésia & Dislexia do Yonamine, e que vai fundo na expressão plástica do mundo contemporâneo, com as suas texturas, mensagens e ritmos que se canibalizam entre si, com um certo lado apoteótico e de crise. Depois destas veio a exposição Heteróclitos: 1128 objetos. Deixamos para trás uma certa penumbra identificativa das montagens do CIAJG e acentuamos o aparato museológico que atravessa estes objetos, e que nos joga diretamente na crise da experiência dos objetos, das representações e dos sujeitos. Sempre fui avessa à ideia de que, franqueada a porta de um museu, deixam de existir os conflitos sociais e políticos do mundo. Mas também defendo o tempo lento e a poesia de produções artísticas que não escolhem essa visão.

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JM: Essa é uma posição sensata, equilibrada. Poderia resumir uma faceta do teu trabalho como curadora?

 

MM: Não sei se resumirá. Entendo a curadoria como pensamento e exercício que pode desmultiplicar os pontos de vista, ao invés de unificar, que pode acolher as contradições, os argumentos e os contra-argumentos, o avesso das coisas. Uma curadoria que se coloca do lado da opacidade mais do que da transparência. Opaco deve ser o signo da arte, na sua força revolucionária. O Jean-Luc Godard dizia: “não mostre todos os aspectos das coisas/ reserve para si/ uma margem de indefinição”. Gosto de artistas, curadores que trabalham com esse fim. Isso é diferente do papel institucional de um museu, que defendo que seja o mais claro possível na sua missão e valores.

 

JM: O trabalho com a colecção e a obra de José de Guimarães é um eixo importante da tua intervenção. Tens regressado a ela em todos os ciclos de exposições sob diferentes ângulos, como se em cada momento a redescobrisses. No âmbito da tua curadoria, qual é o seu lugar e significado?

 

MM: Essa é a pergunta essencial. Obrigada por a teres colocado. Penso que o trabalho de José de Guimarães e a sua coleção de artes africanas, pré-colombianas e arqueologia chinesas têm uma função “crítica” na ação que pretendo levar a cabo no CIAJG. É uma coleção que pode fomentar diversos pontos de vista. Que pode ter várias leituras, inclusive leituras que disputam entre si. Vejo esta coleção como um “documento” sobre a construção do primitivismo na arte portuguesa [a construção do “Outro”], relacionada com a inscrição colonial, do colonialismo português. Mas é preciso ter em conta outras informações sobre a mesma: estamos perante uma coleção privada de arte africana, adquirida em espaço europeu, num período pós-colonial [a partir dos anos 1980], por um artista, que dela ‘bebe’, se inspira e transforma, na sua própria criação. É preciso ter em conta também a encruzilhada dos anos 80 e 90, a eclosão de um mercado de arte à escala global, a disputa do cânone ocidental pelas “periferias” do mundo. Estávamos num momento que fortalecia a hegemonia neoliberal, o turismo, o mercado de arte, a circulação acentuada de objetos de culturas ditas “extra-ocidentais” ao redor do mundo. A exposição Les Magiciens de la Terre [1989], muito contestada desde a primeira hora e nas revisões posteriores que sobre a mesma se realizaram, influencia o projeto de José de Guimarães. É preciso ver aí as críticas à mercadoria. Daniel Buren diz-nos que são “objetos perdidos”, destituídos das suas funções originais, na avalanche de sentidos adulterados sobre a ideia de autenticidade, nas transações à escala global alimentando o paradoxo das nossas próprias contradições civilizacionais. Na senda destas reflexões, inauguramos Heteróclitos: 1128 objetos, que já tive a oportunidade de mencionar. É uma exposição que pensa a coleção e o seu papel. E esse título, algo estranho, irregular, acentua a condição dos objetos na nossa existência. É a filosofia a deixar o sujeito para se afetar pelas coisas, pelas “materialidades” de onde emergem as contradições. E que materialidades são essas que os objetos que guardamos emanam? Heteróclitos: 1128 objetos é, se quisermos, uma visão menos encantada, mais política e contraditória, mas também operativa desta coleção e do seu lugar. Nela apresenta-se a totalidade do acervo, os 1128 objetos que a compõem, havendo uma dimensão “quantitativa” que fricciona, no meu entender, o “artístico” sem o recusar. Os artistas que convidamos a participar, através de um conjunto de imagens em movimento que pontuam esta exposição, problematizam o gesto de expor dentro do museu, remetendo para a vida própria dos objetos, para a sua disfuncionalidade e captura.

Nos últimos anos vivemos num momento muito menos efusivo da nossa história, mas, sem dúvida, mais definidor da possibilidade de pensarmos criticamente o passado, junto a diferentes setores da sociedade. Guimarães é o lugar ideal para a coleção, na medida em que esta localização pode projetar uma crítica. Aqui Manoel de Oliveira filmou Conquistador Conquistado [2012], filme no qual vemos a história e a identidade a serem “performadas” através dos guias turísticos que trabalham na cidade. Em qualquer fim de semana, se visitares Guimarães, podes ouvi-los a enaltecer os feitos e as batalhas, naquela que é a “cidade-berço”. São hordas de turistas, e o filme olha com humor a realidade da experiência turística contemporânea, ao mesmo tempo que nos faz refletir sobre os relatos, as narrações [as ficções] da história. Penso que é ao encontro deste filme que, em certa medida, gostaria de chegar. Sermos “conquistados” por essas novas leituras para, inclusive, incorporar as suas condições críticas, é essencial.

 

 

 

Marta Mestre

 

 

CIAJG — Centro Internacional das Artes José de Guimarães

 

 

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

 

 

 

 

Fotografias de Attilio Fiumarella, ensaio visual sobre a coleção do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, 2022. Cortesia CIAJG.

 

 

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