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Carta a um Amigo

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Eduarda Neves

Nenhuma linha para o medo 

 

 

Não deve admirar-nos que uma esfinge nos encare quando olhamos o rosto da liberdade.

Heiner Müller

 

 

Querido amigo, acabo de chegar de Paris. Devo confessar-te que assistir ao espectáculo Liberté d´action, de Heiner Goebbels, no Théâtre du Châtelet, foi uma experiência rara1. A homenagem à autonomia de Henri Michaux — cuja obra sempre nos confrontou com uma poética impetuosa — espelhava o privilégio de todos os que nunca deixaram de viver nas alturas. No final, as palavras do artista na voz do notável intérprete David Bennent:

Une ligne rencontre une ligne. Une ligne évite une ligne. Aventures de lignes. Une ligne pour le plaisir d’être ligne, d’aller, ligne.
Une ligne rêve. On n’avait jusque-là jamais laissé rêver une ligne.

Dois pianistas, um performer, um encenador e um pintor-escritor. A liberdade em cena. Uma hora e quinze minutos de corporeidades abertas a uma poética ritmada que torna este acto colectivo num momento de radical entrega à prática artística. Múltiplas linhas. Nenhuma para o medo. A lição. 

Neste país que não é o teu, descobrimos que a eleuthería não reside na natureza das coisas mas é crucificada pela ordem das coisas. Sim, também nos cumpre escutar vozes distintas. Estrangeiras. Correr o risco de desafiar os protagonistas. A liberdade vive-se, não se evita. Como uma história de amor. Revejo um texto de Cornelius Castoriadis no qual o filósofo argumenta que em nenhum lugar deve existir uma posição ou um estatuto garantido a priori e que o objectivo da política é a liberdade — liberté d´action, acrescentaria eu com Goebbels. A autonomia. Nada mais que um work in progress, sempre inacabado e sem ponto fixo. Ando há alguns dias para te contar uma história a que assisti esta semana. Cinco mulheres entram no autocarro. Através das conversas entre elas, percebo que limpam casas situadas num local da cidade que é habitado por pessoas com grande poder económico. Uma daquelas mulheres, sentada, dirige o olhar para um homem que acaba de entrar. Num tom de voz elevado e assertivo, lá bem do fundo do autocarro, diz: “acabou de entrar o sorriso mais bonito do dia ... de todos os dias”. O homem olha para ela e sorri. Sorri em inúmeros momentos durante a viagem, ligeiramente embaraçado com tantos olhares. Contudo, era a figura da Eurídice que o adormecia. As outras mulheres riam. Os passageiros suspensos na sua condição de espectadores. Mais de vinte e oito contados rapidamente. “A vida que penetra em tudo”, afirma Ingmar Bergman em Persona. A liberdade é uma acção. Encontro Goebbels no meu quotidiano. Não há outro caminho. 

A fatalidade torna-se palavra envelhecida. Neste país que não é o teu, querido amigo, aumentam as formas de policiamento e controle, as estratégias de propaganda e as imagens consoladoras. No entanto, quando uma linha faz sonhar outra linha, todo o gesto subverte e participa nos múltiplos caminhos do risco desviado. Por aqui, a crítica ao regime do art world não é bem vinda — a única possibilidade de crítica interna é que opere sobre geografias além fronteiras. Paradoxos lógicos. Com a distância adequada somos fortes na heterodoxia à qual Eduardo Lourenço atribuiu “a obrigação de suportar a liberdade humana.”2 Porque não reconhecer que uma boa parte das ideias que circulam obedece a um discurso mascarado e que a cobardia tende a organizar-se como uma espécie de pena de morte? Certamente que a lição de Brecht não te é desconhecida. Escreveu:

que a arte ambiciona (...) poder exprimir-se livremente.3

E não é essa, aliás, a ambição do próprio pensamento? A de se constituir como práxis errante que conhece a intensidade da sua transformação nas lutas e resistências a um qualquer a priori universal? Um espaço de contingências que se desprendem para fazer irromper e provocar o desconhecido?

 Num célebre texto4 —  sobre o qual me recordo de já ter sido assunto das nossas conversas — defendeu Michel Foucault que trabalhar com o pensamento implica mostrar as formas e evidências adquiridas de que este se reveste. Não continuar a pensar como se pensava, implica um treino e exercício constantes. Um trabalho que se opera, antes de mais, sobre si mesmo. Os actuais protestos das mulheres no Irão merecem um tratado sobre a coragem que é também uma das formas do sonho. Elas sabem que toda a espécie de censura é tributária da impotência e que a liberdade encontra a sua audácia quando é praticada. Retomo o díálogo de Antígona com Ismena, sobre Creonte:

Ele não admite que o seu édito seja menosprezado. Se alguém mostrar que o ignora, morrerá lapidado pelos tebanos. É o que estão a preparar-te. Agora tens de mostrar se és bem-nascida ou mulherzinha de nobre prosápia.5

A imaginação é um músculo disse Peter Brook — acredito, querido amigo, que o mesmo ocorre com a liberdade e o pensamento. Desde que a liberdade se tornou démodé e acomodada numa certa epoché ideológica, aumentou a possibilidade de a instalarmos sob o signo do exílio — o apagamento estratégico imobiliza a vontade e potencia a derrota da matéria do mundo. Quanto à moralidade nacional — a que melhor conheço é a do país onde vivo — não deixa de ser respeitosa e servil configurando o modo de vida dominante e a clássica relação causa-efeito. No território da crítica da arte, a liberdade tem a forma de uma “prateleira dourada” com função decorativa. Quase sempre cerimoniosa e aparentemente desacreditada. Considerar a liberdade  na sua dimensão teórico-prática e reivindicar o seu exercício, tornou-se para alguns, cinicamente, um acto excêntrico e desnecessário, exotismo ultrapassado de todos os que conservam ilusões despropositadas — a liberdade reduzida a um falso problema. A fábrica do consenso e das ideias normalizadas pelo desgaste da comunicação impõem a grande disciplina da existência resignada. Porém, querido amigo, outras vozes não desistem de murmurar. Obstinadamente:

por achar que os materiais caros estão sendo impostos por um pensamento estético de uma elite que pensa em termos de cima para baixo, lanço em confronto situações momentâneas com o uso de materiais perecíveis, num conceito de baixo para cima.6

Morreu Jean-Luc Godard. Dizem que por vontade própria. A coragem que explode. Nunca tantas vezes quantas as que a lei se dissimula. Há muito que, escondidos numa sala, imaginamos filmes e vidas sem a duração standard. Como em Film Socialisme — “a liberdade é cara”. Ensinou-nos o cineasta que um manifesto pode deslocar o universo e que o horror silencioso do poder destrói. Como em Liberté et Patrie, há que ser capaz de “atravessar o grande charco”. 

 

Post scriptum — com um outro amigo acabo de fechar um projecto para 2023. Decidimos escrever um livro sobre postais. A liberdade continuará por aqui. É num reino sem fronteiras que escapamos da polícia.

 

Danh Vō, We the People [2011-14]. Vista de Instalação JULY, IV, MDCCLXXVI, Fridericianum, Kassel, 2011. Fotografia: Nils Klinger.7

 

 

 

 

 

Eduarda Neves. Professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

 

 

 

 


1Espectáculo apresentado no Festival d’Automne, em 28 de Setembro, 2022.

2Eduardo Lourenço — Heterodoxia I . Lisboa: Editora Gradiva, 2005, p. 14.

3Bertolt Brecht — Estudos sobre teatro. Para uma arte dramática não aristotélica. Lisboa: Portugália Editora, 1964, p. 164.

4Michel Foucault — “Est-il doc importante de penser?”, in Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994 , vol. IV, pp. 178-182.

5Sófocles — Antígona. Lisboa: Editorial Inquérito, s/d, p. 16.

6Artur Barrio — “Manifesto” [1969] in Glória Ferreira e Cecília Cotrim[org.] —Escritos de artistas. Anos 60/70.  Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2006, p. 263.

We The People é uma réplica 1:1 da Estátua da Liberdade [Nova Iorque] de Frédéric Auguste Bartholdi, recriada pelo artista Danh Vō [b. 1975] em cerca de 250 peças individuais. A versão segmentada de Vō é fiel ao original, utilizando as mesmas técnicas de fabricação em cobre. No entanto, ele não pretende montar todas as peças da estátua. Em vez disso, We the People convida-nos a experienciar este ícone mundialmente famoso à escala humana, e a reflectir sobre o significado da liberdade a partir de múltiplas perspectivas.

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