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Lisbon roundup #2

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Isabel Nogueira

 

Esta rubrica da Contemporânea elege quatro exposições circunscritas a um tempo e lugar específicos. Um dos objectivos é mapear o cenário artístico da cidade, identificar tendências de fundo e reflectir sobre as propostas escolhidas.

O ano está no fim. Escolhemos algumas exposições que levantam problemáticas e que propõem posicionamentos, estéticas e formas artísticas diversas e que, também por isso, nos interessaram explorar e convidar a uma breve reflexão.   

 

Roundup #2

Lisboa: vários locais

Tomaz Hipólito

Devolution 

@ Carpintarias São Lázaro

 

Tomaz Hipólito (n. 1969) apresenta uma mostra individual nas Carpintarias de São Lázaro, com curadoria de João Silvério. Devolution é o título desta instalação, que se desenvolve espacialmente pela antiga carpintaria industrial de largas janelas. A iluminação — natural e artificial — permite a construção de um ambiente encantório e visualmente depurado. Este depuramento materializa-se na exploração da linha e do desenho no espaço, numa clara problematização da própria singularidade do desenho, quer dizer, do desenho tanto como elemento definidor como enquanto elemento volátil e potencialmente esvoaçante.  Por outras palavras, o desenho apresenta-se na sua ontologia paradoxal de limite e de expansão.

As peças são híbridas, acentuando a singularidade da proposta. Trata-se de madeira/ramos de árvores — elemento natural — pintadas a negro e com pontuais acrescentos em material industrial, o que, contudo, não se torna evidente num primeiro olhar. E, uma vez mais, a materialidade se vai revelando e as componentes espacial e expressiva fundem-se. A atmosfera é silenciosa. Numa das paredes, uma projecção de vídeo — onde volta a surgir a imagem de ramos de árvores, numa repetição até gestual — confere ritmo visual e uma outra leitura ao conjunto, como se de uma janela para outra dimensão se tratasse. E abre-se um mise en abyme numa narrativa visual e conceptualmente expandida. E voltamos ao tempo e ao espaço, numa também possibilidade de raccord cinematográfico na sua promessa de continuidade narrativa.

Devolution funciona como um olhar que interroga a matéria e a materialidade da linha. É uma aposta curatorial bem conseguida, porque conteúdo/obra e lugar de exposição se valorizam reciprocamente numa organicidade e coerência estéticas. O dia vai caindo e a luz outonal modifica subtilmente a visibilidade do espaço. As peças ganham mudanças na sua revelação perante o olhar que as observa. No dia seguinte outra luz complementará a artificial. Novas leituras poderão eventualmente surgir. A Natureza pode sempre surprender-nos, dentro e fora do espaço expositivo. Amanhã, logo se vê.

 

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Tomaz Hipólito. Devolution. Vistas gerais da exposição e da performance nas Carpintarias de São Lázaro. Fotos: Eduardo Sousa Ribeiro. Cortesia do artista. 

 

Matéria Luminal 

@Museu Coleção Berardo

 

A exposição, como o título o faz antever, toma a luz como ponto de partida. É um tema abrangente e evocativo que, sobretudo em artes visuais, pode efectivamente abarcar uma grande variedade de propostas. A curadoria é de Sérgio Mah e façamos uma breve reflexão sobre esta mostra, que reúne obras de 38 artistas portugueses, desde os anos 60 até à actualidade. Numa primeira visão, percebemos imediatamente que as escolhas são seguras, no sentido de não surgir nuhuma peça que se afaste deste enquadramento ou que gere especial disrupção, tanto na hipótese de se tratar de uma obra difícil de enquadrar — ou não imediatamente enquadrável no tema —, como de se apresentar um artista eventualmente menos consensual.

A abrangência temporal, até historicista, da exposição reporta-se desde o período dos pressupostos da neovanguarda internacional dos anos 60 e 70, na sua interpelação objectual e conceptualista, em sentido lato, até ao eclectismo pleno de possibilidades operatórias da contemporaneidade. Ligado a um minimalismo de fundo, destacamos a obra depurada de Ângelo de Sousa (1938-2011), concretamente a bela peça Slides de cavalete (1978-1979), na qual o ritmo do som e as imagens desmaterializam a sala numa espécie de caleidoscópio. Nas problemáticas da imagem e na relação entre fotografia e pintura podemos conferir enfoque às obras de Luís Noronha da Costa (1942-2020), ou sentir a força da pintura solar de Eduardo Nery (1938-2013) ou de António Palolo (1946-2000), em certos momento evocativa de uma pop art elegante. As pinturas totais a negro de Fernando Calhau (1948-2002) são mergulhos de escuridão e, consequentemente, de luz. Recordando um belo texto de Ernesto de Sousa (catálogo EXPO/AICA/SNBA 1972): «Os ídolos caem do altar. Um a um. O homem torna-se aproximativo, irremediavelmente finito. Mortal. (…) Só nos resta o vazio. (…) O Calhau “senta-se ao cavalete” e pinta o horror. É um pintor naturalista, verista, realista. Só que já não pinta aquele poético cantinho na ribeira, o açude, o pôr do sol (…) Pinta o que vê e — como também advertia Tristan Tzara — tudo o que se vê é falso. (…) Mas o vazio aqui é coragem». Certamente que sim.

E, neste contexto, as obras de Helena Almeida (1934-2018) ou de Lourdes Castro (n. 1930) são também notáveis apropriações de luz e de problematização conceptual e estética. Sensivelmente no centro do espaço expositivo, um pequeno compartimento recebe uma luminosa instalação de Julião Sarmento (1948-2021), que este ano nos deixou. As esculturas de Rui Chafes (n. 1966) e de Manuel Rosa (n. 1953) provocam um conseguido efeito de sombra/volumetria nas paredes, numa forma enxuta e consistente. As plavras “luz” e “sombra” repetem-se neste léxico verbal e visual. Uma não é sem a outra, como se sabe.

E, continuando este breve percurso, detenhamo-nos noutras peças da exposição, como a de Silvestre Pestana (n. 1949) — uma bela inusitada conjugação de fotografias com lâmpadas —; ou uma explosão de luz e sonoridade de Alexandre Estrela (n. 1971), cujo som vai ensombrando — e ainda bem — o percurso do espectador; ou um introspectivo par constituído por um candeeiro e uma lâmpada — de João Paulo Feliciano (n. 1963); ou as imagens a preto e branco, dramáticas e intensas, de Paulo Nozolino (n. 1955); ou ainda uma pintura de grande dimensão evocativa de universos cósmicos e luminosos, de Rui Toscano (n. 1970). Naturalmente que poderíamos continuar. Como afirmámos inicialmente, as escolhas são seguras. Há peças que respiram bem; outras que talvez estejam um pouco mais ofegantes no seu espaço, mas a luz vai-se revelando com a sua complexidade, eloquência e poesia.

 

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Matéria Luminal. Vistas da exposição Museu Coleção Berardo. Fotos: David Rato. Cortesia de Museu Coleção Berardo.

 

Edgar Massul

Bafo

@Appleton Square

 

Continuamos na respiração. No bafo ou no sopro, na respiração calma ou ofegante. Bafo é o nome da peça/instalação que Edgar Massul (n. 1963) mostra no espaço Appleton Square. A peça é bem conseguida, imediata e orgânica, sem necessidade de responder à pergunta — embora possivelmente retórica, claro — que introduz o texto da folha de sala: «O que é isto?». Isto é um convite a estar e a respirar consigo e com o Outro. Respirar só deixa de ser imediato quando se pensa no acto ou se adoece. De resto, faz-se naturalmente, está lá. Acontece. E, além disso, é o fôlego que permite o movimento e a acção. O respirar é a origem, ou o grito é a origem, se preferirmos.

O próprio formato irregular da peça convoca esse sopro orgânico, numa espécie de balão gigante que comporta tudo dentro de si, portanto, a vida, e também a morte, quando o respirar pára. O bafo rende-se e o tempo acaba. Um dia chegará essa paragem e outros sopros começarão a sua existência. E assim sucessivamente, como a noite, o dia, as estações do ano. Tudo formas de organização de algo etéreo e incontrolável. O ar vem de fora, vai para dentro e volta para fora, num circuito perfeito. Nesta instalação, uma vela vai permintindo uma iluminação cálida do espaço, apenas o suficiente para o espactador se situar e ver levemente a peça central, quer dizer, o bafo. Uma vez situado, deixa-se ir com ele, com o respirar.

Na mitologia o sopro aparece várias vezes como possibilidade de mutação, de alteração, por artes mágicas, de uma qualquer realidade. O mais forte é provavelmente o sopro de vida. Por exemplo, o sopro que Atena lança sobre Pandora (“aquela que tem todos os dons”), permitindo-lhe ter vida e deixar de ser apenas uma bela estátua criada por ordem de Zeus. Ou Pigmalião, escultor e rei de Chipre, que se casou com a escultura de marfim que ele próprio esculpiu, que se transformou numa mulher sob a bênção/sopro de Afrodite.

Bafo convida a estar, a ouvir e a deixar a própria respiração acontecer e guiar — até musicalmente —, a imaginação ou o próprio vazio. É uma proposta que traz consigo simplicidade e alguma inquietação, comportando, por isso, frescura. A, afinal, inusitada frescura do bafo.

 

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Edgar Massul. Bafo. Vistas da instalação Appleton Square. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista.

 

Arqueólogas do Afeto

@Galeria Bruno Múrias

 

São cinco as artistas que trazem um trabalho coeso, emotivo e poltizado à Galeria Bruno Múrias, com curadoria de Renata Felinto. A visão geral é intensa, colorida e delicada, ao mesmo tempo. A janela principal da galeria está aberta e permite ver imediatamente um conjunto de jarras no chão, com flores e facas dentro. E o tom da exposição está definido. E bem definido. Num certo sentido, ser mulher é isto. Ou também é isto: a beleza e sensibilidade da flor, e a acutilância e a força da faca.

Trata-se de artistas afro-brasileiras que produzem obra que reflecte e questiona os afectos, o ser mulher, a sociedade, a tradição, a Natureza, a mundo, a opressão, a beleza, a sensualidade, o patriarcado, o machismo, entre outras emoções, estados e categorias. A posição desta mostra é crítica mas consegue ser, curiosamente, solar, ao apontar uma luminosidade sobre uma espécie de devir. E esta tónica é, a nosso ver, contundente. A interseccionalidade ou seja, a discriminação e a violência que assentam na combinação de vários fundamentos discriminatórios, como género, orientação sexual, idade, etnia, religião, etc. apresenta-se de modo assertivo e, ao mesmo tempo, metafórico.  

Erica Malunguinho (n. 1981) é a autora da peça atrás referenciada — Sem título (Engoli facas pari caminhos Ou onde queres a dor sou revolução) —, que constitui um magnífico exemplo do que acabámos de afirmar. Além de artista foi a primeira mulher transexual a ser eleita deputada estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2018. Hariel Revignet (n. 1995) incorpora no seu trabalho uma ideia de cura pela Natureza e pelos afectos, num modo ritualista e de regresso, até performativamente, a uma ancestralidade sapiente, talvez hoje perdida. A peça Tecnologia ancestral: afeto das ervas resume de modo claro esta postura.

Kika Carvalho (n. 1992) no seu desejo de produzir novas narrativas, apresenta pinturas de um dominante e intenso azul ultramarino que retratam divas negras brasileiras, como a incrível Elza Soares ou Ruth de Souza. Mariana Rodrigues (n. 1995) tem uma linguagem pictórica de pendor abstractizante e de colorido forte e luxuriante, como aliás, de um modo geral, todo o conjunto expositivo. Rosana Paulino (n. 1967)  apresenta um olhar mais panorâmico e instrospectivo da vivência da mulher nas suas várias etapas e subtilezas. Búfala e Senhora das Plantas problematizam este universo, mediante uma pintura viva e directa. E efectivamente, estamos perante afectos que, a seu modo, ainda acreditam e lutam por um mundo mais belo.

 

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Arqueólogas do afeto. Vistas da exposição na galeria Bruno Múrias. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da galeria Bruno Múrias. 

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