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Derek Jarman: Dead Souls Whisper (1986 – 1993)

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João Sousa Cardoso

 

A SIDA, a militância, o jardim.

 

 

Le Crédac é um centro de arte contemporânea em Ivry-sur-Seine, cidade na periferia imediata de Paris, a sudeste da capital, criado em 1987, tendo sido um dos primeiros centros de arte em França. Em 2011, o Le Crédac mudou-se para a desativada Manufacture des Oeillets, um complexo industrial de escala americana, na tipologia arquitetónica das dailylight factories, em voga no início do século passado. O edifício encontra-se classificado como património e acolhe também o Théâtre des Quartiers d’Yvry, potenciando trocas entre a programação de artes visuais e a de artes performativas, numa estratégia política particularmente empenhada na formação cultural dos cidadãos, naquela que é uma das últimas e mais antigas câmaras municipais governadas pelo partido comunista em Île-de-France.

O Le Crédac vocacionado para a arte contemporânea produzida por artistas emergentes, permitiu-se nestes dias uma exceção: a mostra do britânico Derek Jarman (1942-1994), artista, cineasta, escritor, ativista pelos direitos da comunidade gay, jardineiro, um erudito precocemente desaparecido, aos 52 anos, vítima de SIDA. E o exemplo do seu trabalho acompanhado das circunstâncias pessoais e históricas em que tomou forma, auxilia-nos a refletir mais atenta e demoradamente sobre o sentido que a contemporaneidade atribui às noções de emergente, emergência e juventude na criação artística do nosso tempo. Quando as reduzirmos a uma classificação etária, encurtamos seguramente o horizonte do novo e amputamos qualquer coisa de vital no continuum em que se organiza o génio de uma cultura. 

Dead Souls Whisper (1986 – 1993), exposição de Derek Jarman[1], co-produzida com o Festival d’Automne à Paris, exigiu três anos de investigação e de recolha de informação junto de assistentes, amigos e amantes do artista. Dead Souls Whisper reúne cerca de cinquenta obras, congregando o cinema, a pintura brutalista e a assemblage, num confronto de manifesta fisicalidade, ao longo das três galerias com os amplos janelões de vidro toldados (também excecionalmente) por cortinas translúcidas de modo a coarem a iluminação exterior. A exposição termina numa sala de cinema, onde se assiste em exibição contínua — na versão original, alternando com a dobragem francesa — a Blue, o filme monocromático e a opus magnum de Derek Jarman.

O que de imediato suscita uma forte impressão na visita a esta exposição é a força plástica e a potência mágica das formas, a pulsão da urgência no sentido do gesto e na economia dos recursos, a omnipresença da morte que paira, solene e devoradora, sobre todos os trabalhos. E com isto, é sempre da energia da matéria que Jarman trata. Com a intrepidez única de uma voz política na cidade.

Dead Souls Whisper centra-se exclusivamente na pintura produzida no período cronológico entre 22 de dezembro de 1986, quando Derek Jarman foi diagnosticado com o resultado de HIV positivo e a data da sua morte, a 19 de fevereiro de 1994, na sequência de uma infeção oportunista. No intervalo de oito anos, sabendo-se doente, batalhando pela vida e lutando contra o tempo, o artista investe numa intensificação da produção artística, entre a fúria e a confidência, e numa intransigente militância opondo-se a todas as formas de violência de Estado, homofobia e descriminação sexual contra os seropositivos, os portadores de SIDA e os cidadãos gay (o termo LGBTQI+ encontrava-se ainda por inventar). 

 

 

Desde 1979, a Grã-Bretanha mantinha-se governada pelo executivo conservador de Margaret Thatcher e vivia num ambiente marcado pela repressão moralizadora contra qualquer tentativa de protesto e adverso a todos os movimentos de libertação que tinham agitado as sociedades nas duas décadas anteriores. A ideologia no poder era agora a do capitalismo disciplinador, produtivista e intolerante relativamente a todos os desvios à ordem imposta. Incluindo os desvios sexuais. No livro Chroma, no capítulo intitulado “Ver Vermelho”, Jarman recorda a vivência sexual aos vinte anos numa Londres grisalha[2] e reprimida: “Enquanto vocês se deitavam, eu lançava-me no Red Light District do Soho. O nosso mundo estranho e gay era prisioneiro das sombras. Nada a ver com as vitrines de Amesterdão ou de Hamburgo, onde as miúdas se exibem sob as luzes vermelhas. (...) No nosso mundo, uma luz vermelha intermitente avisava-nos das descidas da polícia. Apanhados em flagrante delito, esperávamos horas com um número num ticket como numa tômbola, antes de sermos interrogados e libertados. Papelada e papel timbrado administrativo. De regresso a casa, continuava só. Vermelho de cólera. Aquelas noites custavam caro, a conta bancária passava ao vermelho. Sacrifiquei tempo e dinheiro em busca deste sexo vermelho e forte que a legislação havia tornado difícil de encontrar. Deixei uma pilha de livros por ler e pinturas por acabar.”[3]

Jarman foi um dos principais ativistas no movimento de oposição à Section 28 (Cláusula 28), decreto de 1988 que proibia a "promoção" da homossexualidade nas escolas. Mas, sobretudo, o artista foi uma das primeiras e raras figuras públicas a declarar abertamente a sua condição de seropositivo, comprometendo-se naqueles anos de vida, a trabalhar para aprofundar a consciencialização sobre as sexualidades e o fenómeno de saúde pública que representa a epidemia da SIDA, então doença maldita.

Havendo frequentado o King's College desde 1960; a Slade School of Fine Art, a partir de 1963; e mantendo-se ativo num estúdio em Butler's Wharf, na década seguinte, a pesquisa artística de Derek Jarman desde cedo se mostrou implicada politicamente na afirmação da sua condição de artista homossexual, na luta pelos direitos civis e na defesa das liberdades. Mas a partir de 1986, este compromisso refletir-se-ia com redobrada radicalidade — no cinema, na pintura, nos escritos — no contexto do endurecimento das leis, da estigmatização da comunidade gay e da crescente perseguição de que era vítima. 

Nascido no seio de uma família privilegiada e conservadora associada à vida militar — o pai era um oficial da Força Aérea Real — e havendo habitado em diversas geografias na infância (Índia, Itália e outras paragens longínquas), sendo a vivência aos quatro anos de idade “na selva paradisíaca dos jardins da Villa Zuassa nas margens do Lago Maggiore”[4], nos alpes italianos junto à fronteira com a Suíça, uma das experiências estéticas fundadoras; o artista desenvolveu-se contra os preconceitos enraizados, a reprovação familiar e a castração das suas brincadeiras durante a infância. Como contra o vermelho de fúria que viu no rosto do pai, envergonhado e exaltado, no dia em que o pequeno Derek decidiu pintar as unhas com verniz vermelho. Descreve a memória desse desencontro entre pai e filho em Chroma, o extraordinário ensaio dedicado ao estudo das cores numa meditação transhistórica, transcultural e poética, íntima e universal, parcialmente redigido na condição de acamado, nos longos períodos de hospitalização, numa fase avançada da doença, em 1993. “Tive de escrever rapidamente porque o meu olho direito apagou-se em agosto “à vista do psico-megalo-virus”... depois começou a corrida-perseguição com a obscuridade. E a obscuridade chega sempre depois da luz.”[9] Nos períodos agudos da doença, a escrita era obrigatoriamente interrompida. “Estava como um prisioneiro em regime de isolamento celular. Durante dois meses, não podia mais ler nem escrever. Tive de interromper o meu trabalho neste livro [Chroma]. O eczema vermelho estende-se por todo o meu rosto. “Onde esteve em férias?” perguntava alguém de passagem. Uma breve estação no inferno.”[5]

 

 

A primeira sala de Dead Souls Whisper é ocupada por dezassete pinturas de grande formato da série Queer Paintings (1992), o produto intempestivo de estados de revolta mas também de arrebatamento e bravura, ao mesmo tempo que traduzem a frontalidade e a capacidade assertiva de um grito de protesto quase audível, palpável, que permanece gravado nos corpos. As telas, recobertas por fotocópias das primeiras páginas do Daily Mirror, do News of the World e de outros tabloides, exibindo notícias alarmantes diabolizando a pandemia da SIDA e, com furor homofóbico, encontrando na comunidade gay o bode expiatório de todos os fantasmas (“The AIDS nightmare spreads”) para gáudio popular, formam depois a superfície onde se acumula uma pintura matérica, de qualidade táctil pelo empastelamento da tinta, sobreposta com violência à violência da comunicação boçal daquela imprensa. Na explosão cromática e na palavras riscadas na tela (“40% of british women take it up the arse/ you called it morder/ but I called it love/spread the plague” ou “to have and to hold for richer for poorer in sickness and in health”, “queer”, “dizzy bitch”, “positive”, “fuck me blind”, “infection”, “sick”, “tragedy”, “death”, “dead angles”, “AIDS isle”, “AIDS BLOOD/ACT UP”), estas pinturas que Jarman executou usando as mãos, facas, colheres, apoiado por assistentes, e pinturas que qualificava de “pobres”, comportam a ressonância viva da atitude punk. A expressão é gráfica — sharpbold, in your face — eliminando qualquer espaço à alusão ou à intencionalidade romântica. A premência em firmar uma oposição à avalanche das injúrias, denunciar as formas de ignorância alimentadas por campanhas de desinformação e pelo egoísmo dos poderes (Queen and CapitalLetter to the Minister...) impõe-se ao artista volvido ativista. A posição política e a formulação estética coincidem perfeitamente. Como é exemplo eloquente o tríptico LoveSex e Death. E o clamor destas pinturas, realizadas rapidamente no breve hiato de duas semanas, num estado de crescente debilidade física e de perda gradual da visão, conserva — decorridas três décadas —, a mesma vibração da sede de justiça, com a coragem que se atravessa, de lâmina cortante, ao alinhamento cinzento (“Tudo o que aparece luminoso, não parece cinzento”,  lembra Jarman, citando Wittgenstein) e ao conformismo de uma época. “I painted this pictures with no hope and wild laughter”[6], recorda, ainda. 

A montagem das obras nesta primeira sala organiza-se, num clin d'œil à exposição Queer de Derek Jarman no Filmmuseum de Postdam, em 1993, com várias pinturas suspensas no espaço, sustentadas por estruturas de metal, numa disposição em que cada pintura se encontra de costas voltadas contra o avesso de outra pintura, sugerindo uma pintura de dupla face ou um díptico dissociado no espaço. A acompanhar a série, exibe-se a curta-metragem Death Dance (1973), onde assistimos à deambulação de quatro jovens nus num pátio, manipulando graciosamente pequenos espelhos expostos à luz do sol. E à aparição de uma figura com a máscara da morte envolta numa mortalha, um a um, todos cairão, como numa dança macabra, formando uma roda cerimonial de cadáveres. 

Na segunda sala da exposição encontramos as pinturas de menor formato da série Black Paintings(1989/1991), em composições de elaboração confidencial (“São quase como cartões postais. Não são grandiosas, mas podem comportar intensões grandiosas”[7]), que se relacionam de certo modo com a alquimia e as suas quatro fases: melanosis (enegrecimento), leucosis (branqueamento), xanthosis (amarelecimento) e iosis (ruborescimento) [8]. Mas também revelam uma aspiração ao sagrado (irónica mas não só), revisitando autores que admira como William Blake. A série explora as combinatórias entre a matéria negra e o dourado, sendo que Jarman considerava o negro como “o vazio infinito” e sonhava que, depois da morte, as suas cinzas fossem misturadas em tinta preta e distribuídas por doze telas. Assim, reconhecia no negro a substância capaz da revelação dos fenómenos invisíveis, “se considerarmos o negro como o negativo. É o que fazia o Pasolini: mostrar o negativo.”[9]

A execução destas pinturas corresponde ao momento da mudança de Jarman para Prospect Cottage, a modesta propriedade na costa de Kent, no sul de Inglaterra, que havia descoberto acidentalmente num passeio com o seu companheiro Keith Collins e a atriz Tilda Swinton. Neste lugar inóspito onde existe um dos faróis mais altos de Inglaterra, uma linha de comboio que conduz à praia (das mais curtas linhas ferroviárias do mundo) e na proximidade da central nuclear de Dungeness, Jarman reabilitou uma cabana vitoriana de pescadores, em estilo vernacular, de madeira, que impermeabilizou com alcatrão de acordo com os costumes locais. Numa das faces da cabana gravou na madeira um excerto do poema The Sun Rising de John Donne. E aqui criará o seu jardim, feito de destroços trazidos da praia, plantas autóctones que resistem à hostilidade do vento frio marítimo e ao salitre, enterradas no cascalho e protegidas por pedras dispostas em círculo.

Derek Jarman tinha presente a etimologia da palavra “jardim” (do persa, “paraíso”) e relembrava o culto do verde, celebrado nas colunas com motivos de flor de lótus nos templos egípcios pintados em verde Osíris e nas colunas ornadas de folhas de acanto do templo de Júpiter em Roma. O artista tornava-se agora presença vigilante e cuidadora como um bom jardineiro (“Like all true gardeners, I’m an optimist.”[10]) e o jardim cumpriria doravante a função de exercício terapêutico, ensaio ecológico em resposta às crises ambientais desencadeadas pelo progresso tecnocientífico (outrora o vento era um deus animista, “Pan sacudia as folhas das árvores rindo”[11] e podia condenar os humanos transformando-os em loureiros ou roseiras) e uma extraordinária metáfora da resiliência no combate pelo quotidiano, fazendo surgir novas formas de vida e uma composição orquestral de cores onde, anteriormente, dominava a desolação. O artista avisava que “na Antiguidade, a cor (chroma) era considerada como um medicamento (pharmakon)”, resgatando a história da “chromoterapia[12] que mantinha os sentidos despertos e equilibrados.

Prospect Cottage transformar-se-ia num lugar mítico e de romagem para muitos admiradores do artista. Jarman repetiu em várias ocasiões, invocando por vezes o The Unicorn in Captivity das tapeçarias francesas na coleção do The Cloisters de Nova Iorque, que o jardim de Prospect Cottage não era um hortus conclusus mas um lugar de refúgio, redenção e regeneração, a que chamou os “ciclos ressurreicionais”. Em 1990 filmaria The Garden. E ao mesmo tempo este jardim cultivado numa paisagem lunar não podia deixar de carregar a memória do jardim exuberante de Claude Monet, em Giverny, na Normandia, palco da aventura impressionista no que tem de observação imparcial das ocorrências naturais como da influência cultural das estampas japonesas, e que Jarman visitou com entusiasmo: “Artistic revolutions turn in domestic spaces.”[13] Com o desaparecimento de Jarman, sucederam-se as ameaças de destruição de Prospect Cottage ao longo dos anos, e só uma campanha de crowdfunding mobilizada, entre outras associações, pela Tate, garantiu in extremis a sua salvaguarda, em 2020.

 

 

 

Foi em Prospect Cottage que Jarman voltou a pintar. O tempo destas pinturas é outro e nasce da recolha de detritos, elementos vegetais e ossos, dados à costa, achados na praia, colados às pinturas. As matérias são premeditadamente perecíveis como a pasta do alcatrão que os pescadores usavam no isolamento dos barcos e das casas (e tornam a superfície dos quadros tóxica) ou a folha e o pó de ouro que embaciam. Não por acaso, Derek Jarman não partilha do temperamento cálido de David Hockney (de quem era próximo desde a universidade, sendo Hockney apenas cinco anos mais velho) nem da vocação lúdica das combine paintings de Robert Rauschenberg; antes reivindica Francisco de Goya como o seu mestre de ofício e guia espiritual, o gravurista dos mais dramáticos chiaroscuro na história das artes, cronista de um realismo imperturbável das atrocidades suas contemporâneas, desferidas pela mão humana. Estes quadros mais confidenciais a que Jarman chama “meditativos” e em que reconhece uma “qualidade ressurrecional”, transmutam a doença em representação, combinando termómetros, ícones do catolicismo e preservativos, num momento em que a Igreja condenava todos os contracetivos, indiferente à propagação do HIV e esquecendo que Cristo se dirigiu pelo próprio pé aos proscritos da sociedade judaica e aos leprosos. As composições são barrocas, instáveis, numa teatralidade de oratórios e relicários de pequenas ossadas, em composições de um declarado kitcsh.

Numa tela, projetam-se alternadamente dois filmes em Super 8, Sloane Square: A Room of One’s Own (1974-1976) e At Low Tide (The Siren and the Sailor) (1972), breves filmes mudos. O primeiro, aludindo com humor ao título A Room of One’s Own (1929), a tese de Virginia Woolf sobre a emancipação feminina, foi rodado no apartamento londrino do amigo Anthony Hardwood onde Jarman vivia e trabalhava. Numa colagem de sequências de imagens sobre a passagem dos dias, acompanhamos a deambulação dos habitantes e a sucessão das visitas, a convivência improvisada e feliz entre uma comunidade amorosa que rodeava Jarman, no apartamento que teriam de abandonar, sob ordem de expulsão. Montado em velocidade acelerada (tornando percetível a evolução das horas pela luz cambiante) e a preto e branco, o filme ganha cor à medida que o apartamento surge vazio e — depois de uma festa de despedida — com as paredes grafitadas a tinta de spray com motivos florais e frases libertárias. O segundo filme, At Low Tide (The Siren and the Sailor) é uma fantasia rodada na ilha de Purbeck, onde Jarman passou parte da infância, numa alegoria envolvendo três personagens míticas: um marinheiro naufragado e abandonado num rochedo deixado a descoberto pela maré baixa; uma sereia que lança barcos de papel prateado ao mar e socorre o marinheiro; e uma divindade mascarada e neptuniana que vem ao encontro da sereia, a beija ternamente, desaparecendo juntas, no horizonte. Muitas destas curtas-metragens eram filmadas numa espécie de registo impressionista, em montagem direta, ligando e desligando sucessivamente o botão de record da câmara.

O cinema permitiu a Jarman o alargamento das experiências colaborativas e um benigno contraponto à pintura. Das curtas, passará às longas-metragens com Sebastiane (1976), um dos primeiros filmes britânicos apresentando imagens gay explícitas, num manifesto queer com todo o texto em latim; Jubilee (1978) que contou com figuras do punk como Jayne County dos Wayne County & the Electric Chairs, Jordan, Toyah Willcox e Adam and the Ants; The Tempest (1979); Imagining October (1984) sobe a criação, a censura e a revolução; The Angelic Conversation (1985) com os sonetos de Shakespeare na voz de Judi Dench desviados para uma versão gayCaravaggio (1986), projeto cinematográfico há muito sonhado (Jarman afirmou ter reescrito o guião dezassete vezes) e talvez o filme mais visto; The Last of England (1987); War Requiem (1989), com a derradeira aparição em cinema de Sir Laurence Olivier, a música de Benjamin Britten e a poesia de Wilfred Owen; e The Garden (1990). Filmaria ainda Edward II (1991) e Wittgenstein (1993) antes do testamento em que se tornou Blue.

Além da encomenda de bandas sonoras a Brian Eno e Simon Fisher Turner para os seus filmes, Jarman criou videoclips para Marianne Faithfull, Throbbing Gristle, The Smiths, Annie Lennox ou Patti Smith e assinou a direção artística da tournée da banda britânica Pet Shop Boys, em 1989. O mercado da música pop garantia o retorno financeiro que a obra marginal de Jarman jamais conheceria. 

A par da pintura e do cinema, Derek Jarman escreveu incansavelmente, assinando vários livros, incluindo a autobiografia Dancing Ledge (1984) onde discorre sobre a aceitação da própria homossexualidade aos 16 anos e descreve com crueza a vida gay em Londres nas décadas de 60 e 70, ou as dificuldades financeiras na produção dos seus filmes. Deixou ainda uma obra de poesia, A Finger in the Fishes Mouth (1972) num título tomado de empréstimo ao fotógrafo alemão Wilhelm von Gloeden; dois diários Modern Nature (1991) e Smiling In Slow Motion (2001); além de dois tratados sobre as cores e as artes com Chroma (1993) e Kicking the Pricks (1997), respetivamente.

Na terceira sala, encontramos as pinturas sobrecarregadas de objets trouvés (pedaços de metal, jornais, tecidos, flores secas, preservativos, cartuchos de revólver, antigas fotografias), fragmentos de vidros e espelhos partidos (que faziam Jarman definir-se em paródia como “o único pintor a fechar os olhos no momento de execução da obra”) e as assemblages que surgem como sabotagens iconoclastas de estatuetas de protagonistas incensados da cultura ocidental — Molière, Haendel, Nelson e Mozart — com calhaus e pedaços de madeira, como meteoros aterrados, no lugar da cabeça. 

O percurso da exposição termina no Crédakino, uma sala de projeção onde nos instalamos em cadeiras de cinema para assistimos no ecrã ao plano monocromático de Blue (1993), num azul profundo, inalterado, clínico, evocativo da memória de Yves Klein que, como Jarman, investigou pelas vias esotéricas as possibilidades de desmaterialização da pintura. O artista conhecia o “poder benéfico do azul contra a bílis negra”[15], o Saturno melancólico, a tristeza. Durante os longos 74 minutos, o filme realizado em 35mm pelo artista praticamente cego, convida à escuta atenta, numa extraordinária composição sonora entre os ruídos, as vozes dos amigos de sempre que recitam o diário íntimo de Jarman (Tilda Swinton, John Quentin, Nigel Terry), com a banda sonora de Simon Fisher Turner e a música original de Coil, numa imbrincada arquitetura entre os trânsitos numa ampla paisagem com profundidade de campo, a intimidade e o misticismo.

Blue foi ainda apresentado na Bienal de Veneza de 1993 na presença de Jarman e cedo ingressou nas coleções do MoMA, da Tate, do Walker Art Institute e do Centro Georges Pompidou. Eu assisti a Blue pela primeira vez (em 1994? 1996?), numa exposição coletiva na Casa de Serralves, no Porto. E todos compreendemos o encontro com uma das obras maiores — e arrepiantes — do século. 

Dead Souls Whisper, é um memorial, emocional sem sentimentalismo, rudemente poético e de uma perturbadora atualidade política. Derek Jarman era ateu. E anotava: “O Muro de Berlim talvez tenha sido destruído, mas ele mantém-se erguido entre nós e as instituições.”[16] Derek Jarman é um esteta no mais alto grau da palavra e lega-nos uma aprendizagem elementar sobre os riscos do medo, a precariedade do presente e o segredo prático da vida.

 

Derek Jarman 

Le Crédac

Festival d’Automne à Paris

 

João Sousa Cardoso.  Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes (Sorbonne). Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement (1967–2007), orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas(prefácio de António Guerreiro) e A Espanha das Espanhas (prefácio de Jacques Lemière) pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.

 

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Derek Jarman: Dead Souls Whisper (1986 – 1993). Vistas gerais da exposição Le Crédac, Ivry-sur-Seine, França. Fotos: Marc Domage | Le Crédac. Cortesia de Le Crédac. 


Notas:

 

[1] Dead Souls Whisper (1986 – 1993) de Derek Jarman, de 25 de setembro a 19 de dezembro de 2021, Le Crédac – Centre d’Art Contemporain d’Ivry, em Ivry-sur-Seine (Paris). 

[2] Derek Jarman cita Wassily Kandisnky em Do Espiritual na Arte: “O cinzento não conhece ressonância, o cinzento é a imobilidade sem esperança.”, Derek Jarman, “Matéria Cinzenta”, Chroma, Paris: Éditions de l’Éclat, 2019, p. 76. 

[3] Ibid, p. 59. 

[4] Ibid, 95.

[5] Ibid, p. 68. 

[6] Ibid, p. 65. 

[7] Cit. Stuart Morgan, “The Writing on the Wall”, Queer Paintings by Derek Jarman, catálogo da exposição, Manchester City Art Galleries, 1992. 

[8] Derek Jarman, introdução no catálogo da exposição do seu trabalho no contexto da retrospetiva dos seus filmes no cinema L’Accattone, Paris, 1989. 

[9] Cf. Derek Jarman, Chroma, Paris: Éditions de l’Éclat, 2019, p. 62.

[10] Derek Jarman – A portrait, realização de Mark Kidel, BBC 2 Arena, 1990. 

[11] Derek Jarman, Kicking the Pricks, Londres: Vintage, 1996, p. 151.

[12] Derek Jarman, Chroma, Paris: Éditions de l’Éclat, 2019, p. 91. 

[13] Ibid, p. 62. 

[14] Derek Jarman, Kicking the Pricks, Londres: Vintage, 1996, p. 148.

[15] Derek Jarman, Chroma, Paris: Éditions de l’Éclat, 2019, p. 89.

[16] Ibid, p. 81.

 

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