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Fernão Cruz: Morder o Pó

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Luisa Salvador

 

Tombar num buraco

 

 

“O buraco tinha cerca de oitenta centímetros de diâmetro e uma profundidade idêntica. Mas no fundo dele abria-se um buraco mais pequeno, por onde era possível atirar uma pedra que demorava muito a terminar a sua queda. Ravidat alargou o orifício e foi o primeiro a entrar, com a cabeça para baixo. Caiu no cone de uma derrocada. Acendeu a lanterna e chamou os outros, que foram ter com ele. Exploraram então a caverna, onde não tardaram a descobrir riscos e figuras de animais.” 

[1]

 

A gruta de Lascaux foi descoberta numa quinta-feira por quatro rapazes. Havia um buraco criado por uma árvore que, numa data afastada, tinha ficado com as raízes à mostra. Uma velha terá enterrado um burro ali, e falava-se de ser uma passagem secreta para o castelo de Lascaux. Quando os quatro rapazes desceram e viram o que os rodeava, perante a descoberta, dançaram que nem primitivos. Sabiam que tinham encontrado uma gruta pré-histórica. Esperaram por peritos. Chamaram um quinto rapaz para ir ver a gruta no dia seguinte. Passada uma semana, já quinze pessoas lá tinham ido. Dois daqueles rapazes acamparam ao lado do buraco, “ninguém lá entrou sem ser acompanhado por eles; e se centenas de visitantes de Montignac e dos seus arredores não saquearam nesses dias a gruta, isto deve-se à sua dedicação.” [2]

Foi numa quinta-feira. Umas boas semanas antes, tínhamo-nos encontrado, sem aviso, numa tarde de sábado à porta da Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa. Foi a instituição onde ambos nos formámos. O Fernão Cruz tinha acabado de inaugurar a sua exposição individual Morder o Pó na Fundação Calouste Gulbenkian, e eu ainda não a tinha visitado. Nessa quinta-feira, esse era o propósito. Encontrámo-nos previamente na cafetaria e, enquanto falávamos, o Sol de Outono iluminava-nos as caras. Ainda não sabia, mas esperava-me também a entrada num novo lugar.

George Bataille considerou que, nas grutas de Lascaux, se encetava a aurora da espécie humana. Ali nasceu a Arte. “Qualquer começo pressupõe aquilo que o antecede, mas é ponto assente que o dia nasce da noite, e a luz que nos chega de Lascaux é a aurora da espécie humana. É a respeito do ‘homem de Lascaux’ que podemos afirmar, pela primeira vez e com certeza, que ao fazer obra de arte se parecia connosco, era evidentemente parecido connosco.” [3]

A premissa é belíssima. A aurora do que é ser humano, começou numa gruta. E a sua descoberta, a 12 de Setembro de 1940, começou quando se acedeu a um buraco. Do escuro emergiu a claridade. E pudemos ver, aos olhos do agora, o que eram aqueles tempos. Muito mais luminosos do que imaginávamos.

Um outro buraco famoso debaixo de uma árvore, igualmente improvável, é o ponto de partida para as aventuras de Alice no País das Maravilhas. Há aqui material — a suspeita de que deveríamos averiguar mais passagens destas, para aceder a mundos maravilhosos e descobertas ímpares.

Estávamos na primeira sala da exposição. Parece que fui a primeira pessoa a reparar que havia buracos em todas aquelas pinturas. Pelo menos assim me disse o Fernão. Há um corpo que cai, vindo do tecto técnico de um palco; há um olho que observa tudo através de um suposto óculo atrás de uma paisagem azul; há um trovão que provém de uma nuvem cartoonesca; há uma cadeira e um banco que emergem por entre duas aberturas de um muro de alvenaria que foi ainda entaipado com betão. Há uns braços que surgem para tensionar um galho; há jiboias que entram e saem por entre uma parede de tijolos. Há um foco de luz que ilumina uma ausência na estrada. Há muito escuro de buraco. Ver buracos é, como quem diz, distinguir camadas e saber que há coisas que se deixam lá atrás e outras que se decide ser o momento de virem para a frente. É a tarefa de quem produz. Sempre. O buraco é a escolha, na medida em que tornamos ausentes partes fundamentais, para construir as fundações do que queremos mostrar. E por isso, como falámos nessa tarde, é perfeitamente óbvio que se vejam as laterais das pinturas dos outros. O que ficou para trás. Também por isso, se vê sempre a textura das pinceladas, se a tinta seca de dentro para fora ou o inverso, se ainda podemos raspar uma última vez. Tentamos perceber a escolha. Não é apenas processo. É pensamento puro. 

A exposição Morder o Pó de Fernão Cruz, na Fundação Calouste Gulbenkian, é constituída por duas salas interligadas por uma passagem. A passagem é tão parte da exposição quanto as obras que a constituem, na medida em que a sua presença é cénica. Está lá para nos transportar para um estado de espírito, para nos recolocar. Há visitantes que não chegam a visitar a segunda sala pois, de um certo ângulo, a passagem com abertura oblíqua parece ser o limite do primeiro espaço expositivo. Quem segue nessa direcção e chega à dita passagem, depara-se com um espaço estreito, escuro e uma lâmpada incandescente a meio do percurso. A lâmpada incandescente não será um pormenor, na medida em que tem havido uma transição faseada para lâmpadas LED e fluorescentes. Esta lâmpada, com filamento arcaico e de temperatura quente, está lá para conferir a ambiência de espaço antigo. Para Fernão Cruz, algo semelhante a aceder a um sótão antigo. Também poderia ser um corredor de uma mina. Transição e mudança de envolvência. 

Na segunda sala da exposição, o ambiente é propositadamente contrastante. São inúmeras esculturas, algumas são peças de parede, outras pontuam o espaço, permitindo a circulação e o seu visionamento global. A maioria é de bronze. A técnica é de molde perdido e, o que se perdeu para dar origem ao bronze, foi o cartão. As esculturas têm a textura do cartão canelado, do corte e recorte. Há um fazer muito manual que contrasta com a rigidez e o toque metálico. Fernão Cruz pintou-as, o que as torna mais híbridas na sua compreensão. A sala é respeitosamente escura e percebe-se que ali se trabalha a ausência. Porque são composições com representações de objectos utilitários, aos quais faltam o seu utilizador, como o espelho de casa de banho com copo e escova de dentes, ou as três canecas unidas por um cordel, ou o cabide de madeira com pés instáveis, ou as solas de sapatos viradas ao contrário. Mas também porque há um relógio de parede que parou a uma hora específica, porque há um roupão a ser levado pelo cisne de gesso, porque há uma seta de São Sebastião que se desviou e não acertou no mártir, porque há fumo parado no tempo, porque há explosões estelares que ficaram na sua versão arquetípica. Há uma corda de saltar com luvas deixadas no chão, há um plinto que nos suplica para olharmos para ele. E há, claro, uma coroa depositada cujo embasamento tem o nome e data de nascimento do artista. Detém-se o olhar nas maquetes feitas de caixas de cartão, que tornam rememorativos os lugares que representam, o que se pretende cristalizar e perpetuar. A ausência está em tudo, o próprio fazer destas esculturas deriva de corpos cartonados que deixaram de existir para dar lugar à sua versão perdurável em bronze. A ausência é a do corpo vivo de Fernão Cruz, nas peças serem sobre si e feitas a partir de si. À saída, lá está a placa a dizer-nos “AUSGANG”, como se não soubéssemos já. Estamos a ser convidados a sair...

Escavar é recordar, dizia Walter Benjamin. É um manifesto para trazermos connosco. A arqueologia retira o pó e traz à luz o que ficou velado pelo tempo. Man Ray fotografou o estúdio de Duchamp coberto de pó. O pó tem a particularidade de transformar toda a matéria em opaco. Não trespassa luz, não há transparência, não há cor. O pó é a matéria que se sobrepõe a tudo. E, bem vistas as coisas, se deixarmos que o pó permaneça, acumula-se, solidifica e até petrifica. E o processo será de permanente contínuo, qual acção que não pára por nada, a não ser que haja intervenção. Ora morder o pó é aceder com as nossas vias respiratórias e gustativas à acumulação do tempo. Nós mesmos já pertenceremos ao outro lado, onde o tempo nos parou. Mas também podemos morder o pó como os arqueólogos, soprado, usar um pincel para limpar, contribuir para que se entreveja o que ali está escondido. E que bom será, nesse momento, recordarmos. Encontrar fragmentos que nos indicam mais uma possibilidade de todo. 

Saímos por onde entrámos, e há algo que se desperta. As pinturas da primeira sala foram feitas depois das esculturas. Portanto, é pertinente que saiamos por onde entrámos. É que é nas pinturas que se percebe que actua o pensamento vívido de Fernão Cruz, as interrogações sobre os outros corpos, que não o seu. As pinturas têm camadas, porque o pensamento nunca nos surge claro. Nem como queremos. Ao olhá-las novamente, percebe-se então que ainda há muito por vir. Há escuro de buraco, mas há cor que rebenta com esse sombrio. E por isso, por muito que seja sobre a morte e a ausência, a exposição Morder o Pó é ainda mais sobre a vida. Só sabendo da morte podemos viver em pleno. E foi quando se acedeu ao buraco que deu passagem às grutas de Lascaux, que enfim se percebeu que nos nossos antepassados havia já a certeza que o que registavam naquelas paredes, persistiria muito além deles próprios. O resto da História tem vindo a provar-nos isso. Há arte além da vida.

 

Fernão Cruz

CAM: Fundação Calouste Gulbenkian

 

Luísa Salvador (Lisboa, 1988) é artista visual e investigadora. É doutoranda em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, tendo sido bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (2015 2019). Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH (2012) e Licenciatura em Escultura da FBAUL (2009). Expõe regularmente desde 2012. Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas. A par da sua prática artística desenvolve também uma actividade escrita, entre textos teóricos e crónicas. Sob o pseudónimo Luísa Montanha e Vale, fundou em 2018 a publicação trimestral Almanaque —Reportório de Arte e Esoterismo da qual é editora. É co-fundadora do podcast Debaixo das Estrelas. Vive e trabalha em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Morder o Pó-12
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Morder o Pó-10
Morder o Pó-11
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Imagens: Fernão Cruz. Várias obras do artista em ambiente de atelier e vistas gerais da exposição Morder o Pó no CAM Fundação Calouste Gulbenkian. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e CAM Fundação Calouste Gulbenkian.


 

Notas:

 

[1] BATAILLE, Georges (2015) O Nascimento da Arte. Tradução: Aníbal Fernandes. Lisboa: Sistema Solar, p. 13-14.

[2] Idem, p. 14.

[3] Idem, p. 15.

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