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"Carte blanche" to Anne Imhof: Natures Mortes

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João Sousa Cardoso

 

 Os novos românticos

 

O Palais de Tokyo apresenta, nestes dias, uma extraordinária mostra de Anne Imhof (1978), artista alemã que tem causado furor à sua passagem, reivindicada herdeira da tradição maldita dos românticos e galardoada com o Leão de Ouro para a melhor representação nacional na 57ª Bienal de Veneza em 2017. Ocupando o edifício numa obra de arte total de ressonância wagneriana (GesamtkunstwerkI), o projeto de Anne Imhof integra o ciclo de cartas brancas que o Palais de Tokyo tem vindo a dirigir a artistas singulares, disponibilizando o conjunto do espaço expositivo destinado a um projeto específico de grande escala. Iniciado com o suíço Ugo Rondinone em 2007, o ciclo prosseguiu com Philippe Parreno (2013), Tino Sehgal (2016), Camille Henrot (2017) e Tomás Saraceno (2018).

No tempo do triunfo da virtualidade e das mediações tecnológicas, da distância dos fenómenos tornados imagem e do amortecimento da experiência; no tempo da burocratização das relações, da razão pragmática e do utilitarismo que objetifica (mais do que objetiva) todos os sujeitos (e as subjetividades); na inclinação crescente para as ideologias que garantem a segurança e promovem a disciplina nas nossas sociedades acossadas pelo medo da opacidade e pelo horror ao vazio, o trabalho de Anne Imhof propõe uma expansão do campo da experiência estética.

A exposição de Anne Imhof, Natures Mortes, é uma instalação site-specific brutalista, dispondo de uma infinidade de elementos heteróclitos ao longo de um vasto labirinto. Este labirinto de vidros e reflexos cambiantes pela iluminação das horas (em Franz Kafka o labirinto é a matriz das metamorfoses a vir; Gordon Matta-Clark aspirava a construir um labirinto sem muros; e os situacionistas estudavam-no nas práticas da deriva) é uma “narrativa plurilinear” nos termos da artista, cujos espaços imbrincados desorientam a perceção dos sentidos, exploram a transparência e as invisibilidades, voltando repetidamente à figura andrógina de Eliza Douglas, pintora, colaboradora, companheira e musa da artista, que também assina a criação sonora em que submerge a exposição. Reunindo a tenebris do romantismo alemão às expressões transgressivas da streetculture dos subúrbios de Nova Iorque (Anne Imhof vive entre Berlim e Nova Iorque), Natures Mortes propõe ao espectador uma relação eminentemente física com a matéria, o espaço e a condensação dos tempos. O universo de Anne Imhof é materialista, atmosférico, alimentado por uma praxis especulativa sem teorização, sensualista, espiritualmente revoltoso e necessariamente político.

O risco desta carta branca — um risco calculado pelas curadoras Emma Lavigne e Victoria Matarrese, posto que Anne Imhof obteve formação na prestigiada Städelschule, em Frankfurt; expôs no MoMA PS1 em Nova Iorque em 2015; e coproduziu Sex, com a Tate Modern (Londres, 2019), o Art Institute (Chicago, 2019) e o Castello di Rivoli (Turim, 2020-2021) —, o risco  é manifesto pelo posicionamento de crítica institucional e cultural que a violência da obra comporta, convocando práticas sociais e estéticas disruptivas e uma proposta insubordinada de atualização dos romantismos no que sempre os ligou às paixões vitais, ao impulso revolucionário e ao funesto.

Os românticos do novo tempo devolvem aos fundamentos duma experiência incontrolada as forças que o capitalismo e a sociedade do consumo procuram insidiosamente enquadrar e neutralizam. Se o próprio percurso da artista encerra a contradição do enquadramento institucional, a obra resiste numa tensão ética e estética surpreendente que se tem saldado produtiva. Os novos romantismos assumem o funambulismo da antinomia e parecem fazer convergir todos os afluentes, do temperamento gótico ao punk e à disseminada sensibilidade antissistema, sob o reclamado ascendente de Goethe, Baudelaire (“o universo sem o homem”) e Rimbaud. E procuram resgatar as forças da natura no avesso desencantado da cultura, admirar a destruição das formas pelo curso do tempo ou pelo vandalismo, as pulsões primárias e o noturno astrológico, o oculto dos fenómenos, as atividades improdutivas e a impureza, a ocupação das passagens, de espaços devolutos e dos desmoronamentos no tecido urbano, as formas escritas de demarcação territorial como o graffiti (o tag, o stencil, o throw-up, etc...), ordens de razão conflituais, impercetíveis mas presentes no mundo diurno, capazes de desestabilizarem a ordem social e relativizarem os poderes estabelecidos.

Aliás a primeira instância de auctoritas que a exposição de Anne Imhof desdramatiza é justamente a da individualidade do artista moderno, o criador ou o autodeterminado demiurgo com valor de assinatura. Natures Mortes de Anne Imhof é uma exposição de muito artistas: vivos e mortos, contemporâneos, modernos, dada, barrocos, nomes da história da arte e jovens artistas. Nem individual nem coletiva, é uma mostra colaborativa, agregadora, a assembleia de uma comunidade. Anne Imhof canta as afinidades eletivas nesta ópera-sem-ópera e chama a si os seus, presentes ou ausentes, todos atuais e atuantes, num sistema com leis próprias de captação das forças subtis. “Espero que a porosidade do dispositivo da exposição possa abrigar todas as formas de fluxo de pensamento, de modo aberto. Como o edifício que a acolhe, a exposição existe no seu estado de inacabamento.”[1]

 

 

Anne Imhof ocupa o Palais de Tokyo como uma ruína modernista ao mesmo tempo que no título Natures Mortes cita uma imagem de Francis Picabia, incluída no primeiro número da revista dada Cannibale, em 1920, incluída na exposição. Natures Mortes: Portrait de Cézanne, Portrait de Renoir, Portrait de Rembrandt de Picabia mostra um macaco em peluche, objeto infantil gasto pelo uso. E rima com outra obra exposta, Ahh... Youth! (1991-2008) de Mike Kelly, série fotográfica de velhos peluches que acompanham um retrato do artista com o acne própria da adolescência.

Mas Natures Mortes assenta, evidentemente, na tradição do género em pintura que celebra a abundância das colheitas, da pesca e da caça e fixa no tempo a fortuna familiar e a corruptibilidade dos elementos. A natureza morta remonta à pré-história, desde os murais votivos nos monumentos funerários do antigo Egipto à xenia que adornava as câmaras dos banquetes romanos, ressurgindo mais tarde como tema profano e barroco na Flandres protestante, numa elegia ao “instante que passa”, interrompendo a cronologia e celebrando o esplendor da efemeridade terrena.

À semelhança de projetos anteriores de Anne Imhof, como Faust no Pavilhão da Alemanha em Veneza (2017), toda a experiência radica na fricção entre o contacto imediato com os objetos e o acontecimento em diferido. Enquanto site-specific, Natures Mortes é, antes de mais, uma portentosa arquitetura cenográfica que responde ao desenho da arquitetura, aos elementos pré-existentes e aos itinerários estabelecidos, à evolução da iluminação no interior do edifício (“de midi à minuit”, das 12h às 24h é o horário de abertura), ao movimento quotidiano no entorno (os transeuntes e os skaters que circulam na esplanada estendida até ao Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris), ao testemunho histórico do lugar. A este propósito, Anne Imhof recorda a vocação primitiva do pavilhão construído para a exposição universal de 1937 e resgata a má memória da transformação das caves do Palais de Tokyo, durante a segunda guerra mundial, em depósito dos bens confiscados aos judeus e aos milhares de deportados, sob a ocupação nazi.

A par da dimensão presente, concreta e tangível, a exposição entretece-se em duas temporalidades de diferido que enraizam a exposição no lugar e impõem o distanciamento: o vivido e o devir. Diversas estruturas em alumínio e vidro (“passagem ou barricada, segundo o ponto de vista” avisa Imhof) e as séries de telas numa pintura em múltiplas camadas obtendo um efeito particular de sfumato (“Estava interessada no claro-escuro, na mediação entre a luz e a obscuridade. Procurei que as pinturas não tivessem um ar limpo, mas que conservassem uma qualidade instável, suja, por vezes envenenada.”[2]) conservam manchas e sinais, que reenviam para o lastro deixado por ações anteriores, revelando uma condição indicial. Por vezes, riscos como os de uma chave que arranha longamente a superfície cromada de um automóvel novo.

Ao mesmo tempo, muitas das estruturas e dos elementos dispersos nas galerias (colchões, guitarras, uma bateria, microfones, amplificadores) apresentam-se num estado de suspensão, como os elementos perecíveis fixados no tempo numa natureza-morta (still life), aguardando pelo momento excecional em que serão ativados pela intervenção dos participantes na performance duracional, prevista para outubro no Palais de Tokyo, atualizando as suas possibilidades de leitura. “Até ao momento, são apenas imagens, de potencialidades à espreita. Imagens de vozes, da multidão, da escolha, do silêncio, da glória, do fracasso.”[3] A força da exposição resulta, assim, do intrépido conflito entre dois tempos negativos e opostos: o já não e o ainda não. E as estruturas ressaltam no atributo dúplice e antinómico, simultaneamente, de vestígio e dado antecipatório (ou propiciatório na linguagem da magia).

Esta natureza morta é uma pintura desmultiplicada num fluxo políptico, num continuum sinestésico entre as curvas e os desníveis das galerias, ilusionista, vertiginosa e crepuscular. O estudo da luz é, para a artista alemã, primordial, reclamando a filiação em Caravaggio que pintava sob encomenda calculando a instalação da tela no espaço concreto e as fontes de iluminação local (a proximidade de janelas, as velas, as superfícies refletoras), trabalhando “a partir do lugar”. A pintura expandida que ocupa o Palais de Tokyo é uma extensa vanitas, um memento mori num lugar preciso que versa sobre a transitoriedade, o fantasmático e as sobrevivências.

Donde, a conversa mantida com outros artistas, desaparecidos e trazidos à nossa convivência. Um dos primeiros trabalhos é o travelling de um cão a correr, Finite Infinite de Sturtevant, a americana radicada em Paris que desde os anos 60 que explorou o apropriacionismo e a circularidade numa perspetiva crítica sobre a história da arte e a noção romântica de originalidade (reflexão de acrescida pertinência na era cibernética que esboroa os direitos de autor). Cady Noland recupera a relação entre ideologia, trauma e o inconsciente coletivo com Tanya as a Bandit, na imagem de Patricia Hearst, herdeira do emporium mediático, raptada pelo grupo extremista Symbionese Liberation Army, a que acabou por aderir, mudando o nome para Tanya e tomando parte em assaltos a bancos. As fotografias dos frequentadores das docas abandonadas junto ao rio Hudson, no sul de Manhattan, lugar de engate gay nos anos 70 e 80, antes da eclosão da SIDA, onde Alvin Baltrop documenta a espera, o recontro sexual na clandestinidade, o repouso ao sol, descrevem a coabitação da devastação e do desejo. E há ainda o políptico de Joan Mitchell, entre a forma e o informe do dripping, a exuberância da cor e a efemeridade dos girassóis, em aceso diálogo com Van Gogh.

 

 

Na cave do Palais de Tokyo, tornada cripta ou câmara mortuária o que outrora foi a cinemateca francesa de Henri Langlois, encontramos a série de sete telas impermanentes de Sigmar Polke, compostas por matérias oxidantes ou fotossensíveis, reagentes ao ar e à luz, realizadas entre 2005 e 2007; a pintura vibrante e sumária de Cy Twombly, Achilles Mourning the Death of Patroclus (1962), citando o episódio mitológico do luto de Aquiles pela morte do amigo na guerra de Troia, relatado por Homero na Ilíada, reunindo duas manchas de vermelho contra uma ténue linha de horizonte desenhada a grafite (e outras garatujas); e ainda uma outra obra — atípica — de Cy Towmbly, a fotografia de uma cama desfeita encimada por uma cabeça romana em gesso. Um outro objeto estranho é La Corazza de Michelangelo (1963) de Paul Thek, escultura inspirada no torso de Giuliano de Medicis (1526) de Michelangelo Buonarroti, numa indeterminação entre o metal da armadura e a carne. O trabalho de Thek é próximo da visita com o fotógrafo e seu companheiro Peter Hujar[4] às Catacumbas dos Capuchinhos, em Palermo, numa tradução exultante do visceral e na extravagância camp que respondia à contenção do minimalismo. A mesma oposição às correntes do formalismo encontramos num pequeno desenho a grafite e guache de Eva Hesse, numa composição proteiforme, emocionalmente carregada, aludindo às pulsões do corpo e à intimidade da memória. E que estabelecem ressonâncias com os desenhos anatómicos de Théodore Géricault (incluindo esquiços preparatórios para Le Radeau de la Meduse) que Anne Imhof recupera nos seus próprios desenhos a grafite aqui expostos. Géricault observa crânios, membros e outros restos mortais cedidos pelos hospitais de Paris, procurando compreender nestes estudos científicos acompanhados de anotações, nas formas inertes dos ossos, músculos e tendões os princípios combinatórios que os animam de movimento e vida. E por fim, entre as imagens dos artistas mortos, as várias fantasias arquitetónicas na gravura de Piranesi, que transformam em visões enfáticas os destroços da grandeza romana. No final da exposição, nas últimas escadas de acesso, ressurge Sturtevant e a versão de Nu descendant l’escalier de Marcel Duchamp (1968-1996) reinterpretada pela artista e lembrando a ancoragem de Duchamp na cronofotografia de Eadweard Muybridge que, entre 1872 e 1885, decompôs o movimento humano (boxeurs, bailarinas....) e a locomoção animal (cavalo a galope, aves em voo...), também ele presente em Natures Mortes.

As obras dos artistas desaparecidos vão colocando em perspetiva as propostas dos artistas contemporâneos — consagrados ou não — vivos: a pintura gasosa, superficial e desconcertante da perceção, entre céu e mar, de Trisha Donnley; as imagens de Wolfgang Tillmans (testemunha da geração post-punk dos anos 90, dos movimentos de libertação LGBTQI e antirracistas, da realidade dos refugiados na Europa, expondo a condição precária dos corpos no capitalismo), aqui representado por imagens noturnas, céus estrelados, flores e naturezas mortas ou a fotografia Capodimonte (1999) retrato duma flagelação de Cristo de Caravaggio exposta no Museu de Capodimonte, em Nápoles, complexificando os jogos de olhares e o hiato ontológico da imagem, confirmados por uma baia e a presença de uma câmara de vigilância voltada sobre o fotógrafo (e o espectador); o pano de limpeza do chão e as esfregonas industriais utilizados nos liceus norte-americanos transformados em bandeira e mastro pela texana Bunny Rogers; outra bandeira, vermelha sobre fundo vermelho, na pintura monocromática e contra-histórica de Jutta Koether, autora associada ao punk e à new wave; a mesma evocação da carne em Shutter (2010) de Rosemarie Trockel, uma cerâmica de parede, num vermelho febril, que recorda a carne dependurada no talho na pintura de Rembrandt, o motivo modernista da grelha, as costelas da figura humana ou simplesmente uma peça de carne no churrasco, num hábil trompe l’oeil entre a  moleza aparente e a rigidez do barro cozido e vidrado; a série Rinascimento do argentino Adrián Villar Rojas, ilustrando a relação entre a sociedade da abundância, a cultura do desperdício e o nojo através de imagens de alimentos em putrefação no interior de congeladores, numa vanitas de supermercado; o vídeo Bodies of Society (2006) da sueca Klara Lidén onde, no interior de um quarto vazio, a artista acaricia uma bicicleta que depois destrói com um bastão de ferro, num acesso de violência inexplicável, enquanto escutamos numa canção doce “I dont wanna talk about it”. Este último trabalho ressoa no filme Waves de Anne Imhof onde Eliza Douglas na orla do mar, em tronco nu, estala o chicote contra cada vaga que se forma e aproxima, invocando o niilismo, a sexualidade e necessariamente o Caminhante sobre o mar de névoa [Der Wanderer über dem Nebelmeer] de Caspar David Friedrich, o ícone popular do romantismo alemão.

O pathos do romantismo prolonga-se nos artistas mais jovens: o filme Phat Free de David Hammons (o título joga com “pretty, hot and thick” que significa cool ou sexy no jargão afro-americano dos anos 80 e 90, o free jazz e o aviso fat free recorrente na publicidade alimentar), rodado em baixa resolução (saturando as cores quentes da iluminação pública) e acompanhando o artista pelas ruas noturnas de Nova Iorque, enquanto pontapeia um balde de metal, numa atitude de provocação face ao silêncio e ao descanso dos habitantes; a pintura rasurada, cumulativa, fauve do colombiano Oscar Murillo realizada durante o período de quarentena imposto pela Covid-19; o conjunto de polaroids de Cyprien Gaillard, fixando em cores esmaecidas as garrafas vazias abandonadas às portas do metro e nas ruas de Berlim durante a pandemia, evocando a festa, a perda e o esquecimento; Horse Day (2015) de Mohamed Bourouissa, o resultado de oito meses a seguir um clube de cowboys negros de Filadélfia que reivindicam um papel para os afrodescendentes na mítica conquista do Oeste americano e The Ride (2017) associando a figura do cavalo (motivo romântico em Delacroix e Géricault) ao automóvel, ambos símbolos da grande liberdade territorial americana. A exposição conta ainda com colaborações de outros artistas da comunidade cúmplice de Anne Imhof. Na cave mais profunda, as telas de Eliza Douglas penduradas nos pilares de betão, replicam os motivos de t-shirts amarrotadas com slogans punk, personagens manga ou ilustrações de bandas de death metal. All shall fall lemos numa delas.

 

 

Por toda a exposição, os amplificadores são esculturas sonoras suspensas e em deslocação sobre rails instalados no teto (“colunas nómadas” chama-lhes Eliza Douglas), em conflito sonoro com as forças mecânicas que as sustêm e circulam nas galerias como “as máquinas de uma utilidade obscura possuindo uma lógica interna” (Kafka), “num movimento sem causa nem destino”, visto do exterior como absurdo. “Sempre desejei poder sentar-se com Kafka e debater com ele. Há uma inevitabilidade na sua maneira de criar que, a meu ver, está ligada ao sentimento de impossibilidade” resume Imhof. Mas existem outras colunas distribuídas pelo labirinto que, em breve, na performance anunciada para o Palais de Tokyo, serão transportadas pelos corpos em trânsito no espaço e entre o público, de modo a dissociarem, fazerem convergir, recomporem e dissiparem de novo, desterritorializando as vozes (as melopeias, os gritos, o riso da artista ou a sua leitura de velhos poemas, a voz doutros performers, samples distorcidos) e as linhas melódicas segmentadas de uma única composição.

A dimensão performativa do som, aliada aos elementos expectantes, o espaço preparado para acolher os visitantes e os atores futuros adensam o ambiente eletrizado desta obra multidimensional. Anne Imhof recontextualiza em Natures Mortes registos das performances decorridas em criações anteriores, reinterpretando estas estruturas e os seus objetos: Angst (Hamburger Bahnhof, Berlim, 2016), Faust (Pavilhão da Alemanha, Veneza, 2017) e Sex (Tate Modern, Londres, 2019), todas com música de Eliza Douglas. Numa estratégia de circularidade e sedimentação, reconhecemos agora vários elementos que foram migrando entre as várias criações na mesma esfera de uma liturgia cerimonial.

Mas é o filme Sex (de Jean-René Etienne e Lola Raban-Oliva) registo da performance na Tate Modern, agora projetado num ecrã de grande escala, com som imersivo, ocupando uma galeria onde nos instalamos, que funciona como o coração pulsante, a síntese e a tese de toda a exposição. A montagem alterna sequências com e sem a presença de público, num ambiente tenso e num tempo equívoco, nem diurno nem noturno (mesmo que a instalação fosse visitável de dia e as cinco versões da performance decorressem à noite) no nervosismo da iluminação estroboscópica que anima as figuras isoladas e o surgimento de sucessivos duos em sugestões ambíguas, da aproximação erótica ao assalto, da valsa à luta greco-romana, confundindo papeis de dominação e submissão. Os efeitos de flash induzem a sensação da perceção de movimento mesmo em figuras estáticas e impassíveis; ao mesmo tempo que fragmentam e decompõem, os corpos em transe; as silhuetas transformam-se em efígies desmaterializadas ou numa massa orgânica. A composição sonora, explorando o batimento cardíaco, os graves e os acordes em carrilhões (na reminiscência do convite à oração da comunidade), conforta a adesão táctil, háptica, a narcose dos sentidos, o afundamento sem defesa na experiência fusional.

O fumo ou o nevoeiro, as velas acesas ou consumidas, os estados de perceção alterados (Lotte Eisner definia no célebre estudo The haunted screen[5]: “O expressionismo alemão não vê. Tem visões!”) das anteriores performances prolongam-se em Sex nas pranchas, nos trampolins ou nas high beds (um texto de Kafka relaciona a impossibilidade de nadar pela incapacidade de esquecer a idade em que não sabia nadar) como micro-cenas, sobreelevadas e excessivamente estreitas, onde alguns intérpretes se alongam, aguardam, comungam à distância com a massa humana. Em Natures Mortes, qualquer espaço é materialista e semântico: o palco com o microfone traz a memória cinematográfica do ditador que discursa ao povo; o saco de boxe ilustra o campo de treino e o corpo em combate; os mosh pits evocam a psicologia gregária no turbilhão da multidão eufórica.

Anne Imhof prepara as performances mas evita os ensaios: “Fazemos tudo diante do público” (43). Sem palco ou espaço cénico delimitado, procura fomentar a consciência da co-presença entre os performers e o público. Desdobra as ações, os movimentos repetitivos, as deambulações, numa interação em intimidade física com os espectadores, incitando-os a repartir a atenção em todas as direções e desafiando-os — na sobreexcitação do acontecimento — a gerirem a ansiedade suscitada pelo fear of missing out. Nas performances, “o ajuntamento dos performers e do público no espaço não é agradável, nem bonito, nem delicado, não durante a performance. Não existe alívio nem sorriso.” (43) explica a artista que prevê a performance no Palais de Tokyo, como uma procissão que “desfila, sem nunca voltar atrás.” (43). E passado o rito da hebritas coletiva, os objetos regressarão ao estado de latência, potentes, observando-nos na passagem de mortais.

O engendramento deste campo de energia é profundamente informado pela vivência das chamadas zonas, que a finalidade da vida prática e a intolerância da lei da cidade não alcançam e que Anne Imhof sempre procurou habitar. Sex traz o lastro da intensidade destas zonas — ocasionais ou geográficas — mantidas fora dos mapas. Sejam as barricadas e as montras cobertas por tábuas de madeira, protegendo a propriedade da fúria solta pelo movimento de insurreição Black Lives Matter, em Madison em 2020... provando a fragilidade do capitalismo; ou zonas como a petite ceinture, em Paris, uma linha de caminho-de-ferro construída em 1852 que circunda a cidade, com os seus túneis e passagens, destinada ao transporte de mercadorias, desativada desde 1990, que excita a efabulação psicogeográfica. Os inúmeros espaços intersticiais na descontinuidade do tecido urbano são frequentados por grupos investidos na experiência recreativa das margens, comunidades dessincronizadas, descolonizadas, concentradas na contemplação, em comunhão neo-romântica, no ângulo morto do tempo produtivo, na fruição da insuperável precariedade humana acolhida numa ecoesfera exclusiva que guarda a sua parte maldita (Georges Bataille), a perigosidade animal, a incandescência fundadora.

Anne Imhof é uma artista que congrega as disciplinas artísticas, resiste a definições clássicas e surge em Natures Mortes na figura xamânica que atrai uma comunidade transhistórica de espíritos sobressaltados dispersos na floresta das temporalidades. Enquanto se afirma como uma encenadora de objetos, uma coreógrafa de lugares e de corpos, uma tonante compositora de tableaux vivants, insuflando às paisagens minerais o ânimo do orgânico. E à conformidade institucional a força do instituinte. “Nós sabemos como nos deslocar rapidamente, como sobreviver, como nos juntarmos, nos associarmos e tornarmos mais fortes, como nos movimentarmos sem sermos vistos, como nos prepararmos para a sombra. Nós conhecemos a sujidade, o caos, a poesia. Nós entoamos a nossas canções na cara daqueles que fazem as regras, que nos oprimem. As nossas canções são velhas melodias, aprendemo-las por amor, assobiamo-las ainda e sempre. É graças a elas que nos encontramos na obscuridade.”[6]

Natures Mortes é a resposta invertida ao mundo das realidades positivas e da vontade de poder, mostrando como o “presente dilatado” da vida na web desvirtua a exterioridade e retrai o desejo até ao estado inanimado do convalescente, tornando palpável a angústia arrastada dos melancólicos e inflamando a sede da revolução. O sentimento generalizado de um mundo em descida agravada no tempo e o convite a enterramos a imaginação na flor da idade parecem ter em Anne Imhof a resposta terminante de lançarmos fogo à civilização fundada nos combustíveis fósseis e movida a políticas da exploração como alude a imagem de Eliza Douglas, novamente em tronco nu como a encarnação da república, empunhando um ramo de rosas secas, mergulhadas em petróleo, a arderem no escuro. Existe na experiência desta obra dúbia e perturbante uma aliança subtil entre a capacidade subterrânea da resistência, a atenção dispensada aos ecos e a fecundidade da ressonância. É a marcha trágica e desprendida dos novos românticos que vão segregando uma nova cultura, insondável e obrigatoriamente imprevisível. Anne Imhof, sonhando com a obra de arte total, não excede o sintoma.

 

Anne Imhof

Palais de Tokyo

 

João Sousa Cardoso. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes (Sorbonne). Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement (1967–2007), orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas (prefácio de António Guerreiro) e A Espanha das Espanhas (prefácio de Jacques Lemière) pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.

 





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AI_134
AI_026
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Notas:

 

[1] “Anne Imhof entrevistada por Vittoria Matarrese”, in Natures Mortes/Anne Imhof, Magazine du Palais de Tokyo, nº 31, Paris: Palais de Tokyo, p. 43. 

[2] Idem, p. 42. 

[3] Idem, p. 43. 

[4] João Sousa Cardoso, “Peter Hujar: Eros, thanatos e silêncio na revolução sexual”, in Público, 5 de janeiro de 2020, pp. 18-23.

[5] Lotte Eisner, The haunted screen; expressionism in the German cinema and the influence of Max Reinhardt, Berkeley: University of California Press. 1969.

[6] Idem, p. 44.


 

 

Imagens: "Carte blanche" to Anne Imhof: Natures Mortes. Vistas gerais da exposição. Fotos: Aurélien Mole. Cortesia das artistas, Palais de Tokyo, Galerie Buchholz e Sprüth Magers.

 

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