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Prémio Paulo Cunha e Silva 2ª Edição

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Gabriela Vaz-Pinheiro

Future cancelled, future(s) present

We do not lack communication. On the contrary, we have too much of it. We lack creation.

We lack resistance to the present[1]    

 

Percorrer a exposição do Prémio PCS fez-me querer falar do tempo. Das formas como o presente importa enquanto entendimento de uma cronologia, claramente já não linear, mas na qual a descontinuidade serve como mote para aquele mesmo entendimento. Tentarei explicar. Primeiro um pouco de contexto.

A descrição oficial diz-nos que, e passo a citar, o “Prémio Paulo Cunha e Silva foi criado em 2015, pela Câmara Municipal do Porto, como homenagem ao antigo vereador da cultura Paulo Cunha e Silva, direcionando-se a artistas com menos de 40 anos. O júri da segunda edição do prémio — Isabel Lewis, John Akomfrah, Margarida Mendes e Shumon Basar — analisou os portefólios de 48 artistas selecionados por um conjunto de 16 curadores por eles indicados.” A descrição acrescenta ainda que “(…) os quatro jurados selecionaram seis finalistas, provenientes de diferentes geografias culturais e com práticas artísticas bastante distintas, cujas vozes, na sua opinião, articulam o momento atual e o que está por vir.” Terminando por se manifestar “(…) comovido pela sua beleza, ternura, especulação política ou simplesmente pela sua magia.” [2]

A metodologia que o júri teve que adoptar bem como a sua decisão para a escolha do vencedor, entretanto anunciada [3], contribuem para a tese dupla que pretendo desenvolver neste pequeno texto: por um lado, a ideia de suspensão que acima apontei e por outro a ideia de mediação da experiência que compõe, de forma progressivamente marcante, o modo como vivemos e construímos conhecimento.

Somam-se, neste prémio, por um lado a continuidade em celebrar alguém que foi tão importante para a cidade e para a defesa da criação artística, alguém cujo abrupto desaparecimento, como se sabe, deixou em choque uma cidade que se encontrava em franco processo de auto-afirmação e optimismo: Paulo Cunha e Silva. Por outro lado, este prémio cumpre os objectivos de abertura e internacionalização da actividade cultural da cidade, objectivos que também faziam parte da agenda de PCS, sendo de louvar o alargamento do âmbito das escolhas, a contaminação que este prémio tem trazido com artistas de idade inferior a 40 anos, e de origens, línguas e linguagens muito diversas.

Falarei do tempo como forma de pensar não só a sua continuidade (ou descontinuidade) mas a sua suspensão. Vivemos dias em que muitas das lutas levadas a cabo pelo menos nos últimos 60 anos se encontram perigosamente revertidas ou pelo menos em suspenso. Pensar a fragilidade das conquistas que, tanto para quem viveu o Maio de 68 como para quem nasceu e cresceu na sua herança (e na herança da Revolução de 74 no caso português), é hoje crucial. De repente, as ideias de colectivo, de partilha, de crítica, de liberdade, de público… a própria ideia de futuro, parecem canceladas, como se uma conspiração gigantesca (seja pela acção insensível de políticos seja por uma incontrolável disseminação vírica) se tivesse erguido para demonstrar precisamente a fragilidade do que acreditáramos estabelecido. E, neste processo, a produção artística e cultural parecem ser, a par da luta pela justiça social e pela ecologia (profundamente relacionadas como se sabe), parecem ser, dizia, dois dos elos mais ameaçados. Contradição profunda também, porque, enquanto criadores e/ou produtores de pensamento, acreditámos que a arte servia para trazer alguma luz, ainda que também para dar sentido(s) à escuridão.

Falo num plural que acredito existe. Um plural que é uma ‘simultaneidade de singularidades’, consciente de que, se aquela simultaneidade é ameaçada, são as singularidades que arriscam sucumbir [4]. Por isso, o tempo precisa de ser entendido na sua traição à progressão cronológica para que o passado, o presente e o futuro coexistam na consciência de que o contributo que podemos continuar a dar se baseia no passar de mãos dessa mesma consciência. Da arte esperemos nem redenção nem ilusão. À arte atribuamos apenas (não menos) do que o papel de abrir propostas sobre a nossa condição humana, sem universalismos nem relativismos, antes com um reconhecimento de inclusividade.

A história e o tempo, seu ilusório aliado, baseiam-se na continuidade por forma a estabelecerem o seu projecto historicista: é a ideia de uma história global e universal. Esta ideia destina-se a consolidar a (dita) ilusão de controle tanto do tempo como das suas narrativas. Diz Foucault que este “projecto de história global (…) é o que procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização, o princípio — material ou espiritual — de uma sociedade, a significação comum a todos os fenómenos de um período, a lei que explica sua coesão — o que se chama metaforicamente o ‘rosto’ de uma época” [5]. Mas isto, como Foucault refere mais à frente, é apenas uma suposição! Primeiro porque não podemos em completa consciência imaginar um ponto de vista histórico único ou apaziguado, depois porque a ideia de coesão é rapidamente desmontada pela cegueira do excesso de narrativas, ou seja, de comunicação que a citação com que abri este texto aponta.

As formas como o “agora” e o “novo”, ou o “actual” e o “contemporâneo”, se inscrevem nos discursos sobre e a partir da história da arte (recente) dizem-nos muito sobre a importância da linha de tempo para aqueles discursos.

Já Rosalind Krauss, no seu seminal Sculpture in the Expandid Field, (1979) se refere às limitações da legitimação puramente historicista, apesar de tudo reconhecendo e debatendo-se com a dificuldade de justificar tal legitimação fora de um precendente histórico. Ela refere como “o novo se torna confortável por se tornar familiar”. A verdade é que, num tempo em que o familiar se tornou indissociável de uma condição de exaustão, os processos de legitimação precisam claramente de ser revistos.

Quanto ao contemporâneo, muito se fala da sua falência quanto mais não seja, precisamente, pelo inapelável problema que lhe coloca a passagem do tempo...! Que o contemporâneo é um modo e não um tempo sempre foi muito claro para mim. Mas a noção de contemporâneo pende igualmente para um sentido de diversidade (apropriada tanto pelos que clamam como pelos que criticam o “anything goes”) e para um outro de suposta exclusividade que deixa de fora muitos artistas que desejam diferenciar-se radicalmente de formatos institucionalmente aceites como o “main stream” de um sistema em funcionamento endógeno. O outro problema é que o ‘contemporâneo’ se ‘historicizou’, tornou-se objecto de estudo académico, não tendo sido capaz de justificar a raiz marcadamente temporal da sua própria designação. Os modos documental, educativo e colaborativo têm apresentado formas de operar de que os artistas se servem e que em rigor até poderiam ser consideradas como contradizendo a noção de autonomia cara aos limites do contemporâneo. Por isso, a noção de contemporâneo parece frágil enquanto noção que dê conta do que está a acontecer na arte, mas também parece óbvio que a designação “actual” não resistirá à passagem do tempo senão por um constante e imparável “turn over” que arrisca a não se consolidar como história!

Assim sendo, quando falamos de um “agora” podemos pensar que se trata de não mais do que um conceito, uma delimitação subjectiva e instantânea que parece ter mais que ver com a percepção do significado (semântico) da palavra “agora” do que com o tempo ou com a sua duração (isto é, a sua impermanência). Mas sabemos que as práticas que identificamos como estando a ter lugar, digamos, na última década, podem ser consideradas como pertencendo a um “agora” da arte, se pensarmos que este “agora”, para além da dimensão temporal, contém a potência de um cruzamento que finalmente parece ser possível atingir, noção que poderia designar por “cross-contexts” [6].

Na senda do mais ferranho discurso crítico moderno, que os discursos pós-modernos não conseguiram sacudir, a noção de universalidade da arte parecia garantida. Ouvimos tantas vezes, em particular na academia, que a arte é universal, que parecia que, por via desse universalismo, por um lado a arte induziria uma experiência que só podia também ser universal e por outro, contraditoriamente, estabeleceria um conjunto de critérios e respectivos discursos que seriam (teriam que ser) inquestionáveis.

O que me parece que esta exposição consegue demonstrar é precisamente que se há alguma coisa de “universal” na arte no presente é o potencial de cruzamento de contextos que desmontam a noção de uma hegemonia discursiva e linear temporal. E portanto aquela ideia do “novo” tão cara ao passado século afigura-se como redundante para a nossa experiência das obras na exposição, fazendo apelo, pelo contrário, precisamente, à ideia de simultaneidade e sobreposição no tempo, no espaço e a partir dos diferentes contextos de produção.

É assim que Basir Mahmood (Paquistão), piscando o olho à etnografia, faz-nos questionar a validade do género de documentário enquanto deslocaliza a autoridade do processo criativo para as equipas e participantes que chama para consigo colaborarem. Firenze Lai (Hong Kong), contribui para uma pintura que é menos de imagens do que é de espaços, de um espaço que tem tanto de claustrofobia social como de solidão partilhada. Lebohang Kganye (África do Sul) apresenta-nos uma cenografia em que a herança de William Kentridge está bem presente, pela forma e pelo conteúdo. Shaikha Al Mazrou (Emirados Árabes Unidos), nas suas esculturas de reverberação pop propõe uma playfulness sedutora. Song Ta (China) elabora um comentário político sobre a demografia, entre diversa e artificial, de um pais totalitário. Steffani Jemison (Estados Unidos da América) fala-nos de poder e de fragilidade, fala-nos também através de signos em cujo sentido podemos projectar o potencial de uma linguagem ancestral.

O processo de selecção, montagem e atribuição final do prémio esteve este ano sujeito a condições muito particulares que a situação pandémica impôs. Não só os artistas não puderam proceder à montagem in loco das suas obras, como posteriormente o júri não teve oportunidade de visitar a exposição para a atribuição do prémio. O acompanhamento de ambos os processos foi feito à distância com o que se afigura como um contributo extra da equipa da Galeria Municipal, cujo empenho conheço bem, para procurar colmatar a impossibilidade de presença física tanto dos artistas como dos membros do júri. E estas condições são-nos cada vez mais familiares. Supõem uma mediação constantemente actualizada dos processos vivenciais apoiados numa dependência das tecnologias que frequentemente nos é apresentada como substituto da experiência física mas que é importante demarcar como seu complemento.

Os jurados decidiram que, não estando “reunidas as condições ideais para a atribuição do vencedor da segunda edição do prémio” [7] de uma forma singular, ele fosse repartido pelos seis artistas na exposição. E já conhecemos este fenómeno desde o Turner Prize de 2019. É significativo que a opção de dividir um prémio institucional tenha sido, como se sabe, primeiro tomada em 2019 pelos próprios artistas nomeados para o Turner Prize desse ano que por inciativa própria e como “statement of solidarity” o propuseram ao júri que a aceitou unanimemente. E sabemos que o júri do ano seguinte também a seguiu. [8]

A solução de atribuição do prémio em divisão equitativa pelos seis artistas, justificada no texto oficial nas condições de impossibilidade de acompanhamento presencial, ficaria por isso, julgo, bem melhor enquadrada (pelo menos adicionalmente) no contributo para desmontar uma hierarquia de valor (que a atribuição de um prémio sempre supõe) saindo reforçada no contributo intencional para uma ‘horizontalização’ de oportunidades que poderia corresponder a uma maior e mais justa distribuição dos valores tanto monetário como de critério estético.

Se esta ‘horizontalização’ (passe o termo forçado) poderia abrir espaço para uma espécie de estética da indeterminação (a que a herança modernista resistiria), ela poderia também permitir uma actualização da noção de inclusividade e abrangência que a própria metodologia do Prémio PCS também corrobora. A partição da autoridade, passando de mão a responsabilidade das escolhas permite, creio, reforçar o potencial político das obras de arte, enquanto o seu potencial poético fica assegurado por um, por vezes inquieto por vezes misterioso, mergulho na beleza das formas e na crueza do real. A inscrição medial dos trabalhos finalistas, da imagem em movimento à pintura e à escultura, passando por um formato de imagem fotográfica e desenho instalados, reforça aquela abrangência.

Assim, a impermanência e a suspensão do tempo e da experiência, dão lugar a uma permanente sobreposição de um presente constante que navegamos de olhos bem abertos. Como poderemos caminhar sem esta consciência? Como poderemos construir futuro sem perceber nessa sobreposição o potencial da história que fazemos hoje, permanentemente? Do Prémio PCS queremos essa permanência contribuindo para o passar de mãos do tempo que vivemos e da arte que vai sendo feita.

 

Prémio Paulo Cunha e Silva

Galeria Municipal do Porto

 

Gabriela Vaz-Pinheiro é formada em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Possui o Mestrado Europeu em Cenografia pelo Central St. Martins College e Utrecht School of the Arts; o Mestrado em Teoria e Prática da Arte Pública e Design pelo Chelsea College of Art & Design e o Doutoramento por projecto pelo Chelsea College. Leccionou na Central St. Martins College of Art & Design, em Londres, entre 1998 e 2006. Responsável pelo Programa de Arte e Arquitectura para Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. É atualmente Directora do Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público e Professora Auxiliar desde 2006 na FBAUP. É Membro Integrado do i2ads, Instituto de Investigação em Arte Design e Sociedade. 

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico.

 

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Prémio Paulo Cunha e Silva 2ª Edição. Vistas gerais da exposição na Galeria Municipal do Porto. Fotos: Dinis Santos. Cortesia da Galeria Municipal do Porto. 

 


 

Notas:

 

[1] Gilles Deleuze and Félix Guattari, What is Philosophy?, trans. H. Tomlinson and G. Burchell (New York: Columbia University Press, 1994), p.108.

[2] Excerto do texto em (Última consulta em 09/11/2020)

[3] O anúncio da atribuição do prémio foi feito simbolicamente no dia do quinto aniversário do desparecimento de Paulo Cunha e Silva.

[4] Apontamento in progress: deixo aqui apenas apontado o conceito que tenho designado como ‘simultaneidade de singularidades’ como contributo para abordar questões identitárias (e a sua relação com contextos de sobrevivência e ecologia) com vista a propor formas de discutir tais questões à luz dos modos de co-existência a partir de Bruno Latour.

[5] Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, (1969) 2008, Trad. Luís Felipe Baeta Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro. (p.10).

[6] Seria talvez interessante debater uma espécie de formulação de uma arte contextual meta-específica, mas o espaço editorial deste texto não o contempla.

[7] Do texto de comunicação dos resultados do Prémio, consultável em  (Última consulta 11/11/2020).

[8] Faço um parêntises sobre o critério da idade presente no Prémio PCS. Foi também um Turner Prize que, em 2017, fez correr tinta mediática ao atribuir o prémio esse ano a Lubaina Himid pela opção não só da valorização de uma dimensão política pós-colonial, como pela atribuição do prémio a uma artista menos jovem.

 

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