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Luís Lázaro Matos: Waves and Whirlpools

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José Marmeleira

As pinturas são as canções e as canções são as pinturas

 

Na Galeria Municipal do Porto, Luís Lázaro Matos dá largas ao gozo de trabalhar em murais e obras de grande formato, mergulhando o espectador numa cenografia onírica e lírica. Feita de desenhos que, inspirados na fantasia, na vida quotidiana e na música pop punk, fazem nascer histórias sobre a nossa realidade confusa.

 

José Marmeleira (JM): Leio no press release que a exposição foi inspirada nas sete canções do disco Waves and Whirlpools. Presumo que o disco tenha aparecido primeiro e, só depois, o trabalho pictórico. Como descreverias essa tradução do musical para o pictórico? É recorrente no teu trabalho?

Luís Lázaro Matos (LLM): Sim, neste caso específico o trabalho pictórico veio depois de compor e escrever as sete canções. Todos os meus álbuns de música, sob o alter ego Luís da Riviera, são de alguma forma álbuns conceptuais e vão-se relacionando mais ou menos com exposições ou obras específicas. No outro dia, fizeram-me uma pergunta semelhante a esta. Nos últimos tempos, a música tem servido como uma chave que abre portas para outros mundos ou imagens por assim dizer. Em Waves and Whirlpools, tal como em outros projectos que farei no futuro, a base conceptual da instalação vem ou virá de me sentar ao piano, ou agarrar na guitarra primeiro e construir uma canção. Primeiro escrevo uma história e depois essa narrativa desdobra-se naturalmente num resultado visual.

JM: Gravas sempre as canções?

LLM: Nem sempre. Vou fazer um projecto no futuro que surgiu de uma canção e que nunca há de ser lançada. A canção em si não é boa, no entanto o poema sobreviveu e tornou-se numa ideia para uma instalação. Há um aspecto meio ilustrativo nas pinturas mostradas na Galeria Municipal do Porto que não me incomoda. Nas escolas de arte, por onde andei, lembro-me de alguns professores e alunos usarem a palavra ilustrativo
para diminuir um trabalho artístico. Acontecia o mesmo quando referiam o aspecto mais decorativo das obras. Para mim, sempre foram características válidas de um trabalho artístico. Não são sentenças de morte.

JM: As características a que te referes são “ilustrativa” e “decorativa”, certo? Por que não as consideras sentenças de morte?

LLM: Há um certo elitismo dentro das escolas de artes, em relação àquilo que se chamava antigamente de artes menores. Talvez porque um objecto decorativo pode significar e relacionar-se com infinitas coisas. Nem estou a falar da sofisticação incrível de certos elementos de decoração ou ilustração, mas de dois mundos com uma história incrível que não deve ser diminuída enquanto fonte ou vocabulário imaginativo de um artista, muito menos usado para o diminuir. Hoje de manhã, por exemplo, descobri, meio por acaso, que o Napoleão Bonaparte pode ter morrido envenenado por causa de um papel de parede instalado no quarto da sua casa em Santa Helena. Estava na moda tingir tecidos com arsênico para atingir um tom esmeralda. Tecidos esses que causaram também doenças em muitas senhoras vitorianas. Péssima ideia e isso sim uma grande sentença de morte. A próxima vez que vir um papel de parede verde não vou ver só um objecto decorativo, mas imaginar um serial killer. Claro que neste caso, falo da história das artes decorativas enquanto potencial mote para um projecto qualquer. Mas falo também na possibilidade de os artistas plásticos verem o seu trabalho como ilustradores, ou designers, ou artesãos ou qualquer outra coisa que possa servir uma função específica, na condição de trabalho artisticamente sério, que não tem necessariamente de ser considerado um part-time ou um on the side. Pode estar perfeitamente integrado na sua prática em geral.

JM: Quando começaste a desenvolver a tua actividade como músico? Foi paralela à de artista visual?

LLM: A primeira vez que compus uma música tinha oito anos. Ainda a sei tocar. Estudei piano quase dez anos no conservatório, o que foi equivalente a cinco anos porque não estudava nada. Fui perdendo o interesse. Talvez por falta de companhia, não conhecia ninguém em Évora que tocasse numa banda ou que, pelo menos, tocasse dentro do meu gosto musical, o pop punk. O ensino clássico da música talvez tenha sido demasiado rígido para o meu tipo de personalidade, apesar de estar grato por ter feito esses anos de estudo. Aprendi a tocar guitarra de forma autodidacta quando era adolescente, mas nessa altura havia desistido da ideia de estudar arquitectura. Aos 16 anos, queria ser artista plástico. Passei verões inteiros em casa dos meus avós a brincar com instrumentos musicais. O meu avô não tocava nada, mas viajava muito e trazia imensos instrumentos. Brincava com os casiotones que ele tinha trazido do Japão, com os instrumentos de percussão que tinha trazido do Brasil e um acordeão incrível que trouxe da União Soviética. Intercalava o meu tempo a desenhar e a brincar com os instrumentos. Só muito tempo depois, trouxe o meu interesse pela arquitectura e música para dentro das artes visuais. Comecei a tocar aos 29 anos. Passei numa loja e comprei uma guitarra acústica cor-de-rosa, dois dias depois comprei uma eléctrica, duas semanas depois comprei o material que uso para gravar em casa. Fechei-me quase a sete chaves e compus o primeiro álbum nos meses seguintes. Fui continuando a fazer as minhas exposições, e as duas coisas foram-se integrando naturalmente.

JM: A propósito de exposições, como surgiu o interesse pela mitologia do mar nesta exposição?

LLM: Tenho feito várias exposições que envolvem ambiente aquáticos, seja em piscinas ou no mar. Foi assim na primeira exposição em Lisboa, na Kunsthalle Lissabon [KL]. O mural era quase uma apropriação directa de uma pintura que o David Hockney fez numa piscina em Los Angeles. Isso inspirou o João Mourão e o Luís Silva [da KL] a convidarem-me para pintar a piscina onde fiz o meu primeiro concerto nos Açores, aquando da curadoria deles no Walk & Talk. Voltando ao Waves and Whirlpools, encontrava-me numa viagem de férias e de pesquisa na ilha Maurícia, pouco antes de entregar a primeira proposta ao Joaquim Guilherme Blanc [diretor artístico da Galeria Municipal do Porto]. Adoro fazer praia e trabalhar à volta da ideia de praia, assim nunca sinto que estou a trabalhar. Foi lá que concebi o tema da exposição. Comecei a conceber a possibilidade da própria estrutura da sala de exposições ser um triângulo e pensei no triângulo das Bermudas onde as coisas desaparecem misteriosamente. Lembrei-me do meu avô e na sua casa, junto à praia, onde passava férias. Tenho um sonho recorrente da casa ser engolida por um tsunami. Pensei também na frase que ele repetia quando eu era miúdo: “Nunca vires as costas ao mar”. É um ditado de surfista sobre os perigos do mar. Ficou-me a ecoar na cabeça, fez-me pensar sobre os meus medos em enfrentar sentimentos mais difíceis. Raiva, tristeza, desilusão. Daí, recordei-me do mito das ondas se formarem na costa em grupos de sete. E decidi que, quando voltasse a Lisboa, iria compor um álbum com sete músicas, todas sobre ondas ou mar. A canção Red Sea tem a sua origem no facto do meu avô ser de origem judia, e mencionar várias vezes a ideia do êxodo do Egipto. Já a Laika Surfing Cosmic Waves é sobre uma cadela minha. Imaginei-a a surfar ondas gravitacionais com os “amigos dela”. O mar aparece de várias formas. É um lugar onde as coisas desaparecem, que pode servir de barreira e que nos amedronta, mas que nos pode embalar e proteger dos pássaros que nos querem devorar, como acontece na música Sea Turtle.

JM: Podemos concluir que cada canção e cada pintura escondem uma narrativa, uma história?

LLM: Sim, mas as pinturas trazem coisas que a música, na sua natureza não consegue: as imagens. Não são correspondências literais das canções. Há imensos peixes voadores e raias ou mantas nas pinturas. Vi umas imagens da National Geographic destes animais a planar sobre a água do oceano. Perguntei-me se estavam simplesmente a brincar ou se queriam sair do estado líquido que a sua natureza lhes impôs. Quando escrevi a canção Tsunami onde digo “Lá tenho eu a tendência de levar tudo à frente de mim como um Tsunami”, escrevi a pensar na minha tendência para me irritar com coisas que, depois percebo, não valem assim tanto a pena. Muito depois de pintar as raias e os peixes voadores a sobrevoarem a água, pensei se essa escolha não seria eu a tentar sair de certos padrões comportamentais. Mas já estou a especular demasiado. É um mistério.

JM: As tuas pinturas aparecem na forma de instalações, murais, quase painéis. Pensei até em azulejos. Por que razão te agrada esta escala e esta expansão?

LLM: Tenho um gozo especial pelo processo de execução de murais e pinturas de grande formato. Gosto de sentir o meu corpo todo a mexer enquanto trabalho. Os murais têm servido para criar um contexto imersivo e cenográfico nas exposições. Quando estudava em Londres fui a uma exposição sobre os Ballets Russos no Victoria & Albert Museum e a outra sobre pós-modernismo, meses depois, no mesmo espaço. Ambas foram fulcrais em fomentar a minha recusa pelo espaço branco ou neutro da galeria. As peças são instaladas no espaço quase como se se tratassem de actores posicionados num palco. É uma estratégia de imersão do observador e das obras nas histórias que quero contar. Neste caso específico, o tamanho das telas ajudou a evidenciar a ideia de um mar onde o observador “se perde” por entre as telas. Sempre adorei a imagem de Moisés a atravessar o mar vermelho, naquele corredor por entre paredes de água. É tão over-dramatic. O álbum é uma espécie de êxodo pessoal, fez sentido pôr as pessoas a circular entre “paredes de água”. Ah, e, também, faz sentido que penses em azulejos. É um tipo de comissão que adoraria fazer, principalmente se viesse “atrelada a uma estação de metro”.

JM: Cada díptico pode ser considerado ou corresponderá a uma canção?

LLM: Sim. Foi com a ajuda da Martha Kirszenbaum que percebi a disposição das pinturas. Cada díptico abre-se perante o espectador num ângulo de 160º, quase como um livro, a contar as histórias que aparecem nas canções. Perguntaram-me muitas vezes se eu era músico ou artista plástico, quase como se isso criasse uma confusão tremenda. Sou os dois. Aliás sou um, um artista e ponto. As canções são as pinturas e as pinturas são as canções, mesmo que se vendam à parte e em plataformas diferentes. 

JM: Prevês continuar a adoptar esse processo de trabalho? Ou já te imaginas a fazer algo diferente, por exemplo a separar os dois domínios?

LLM: Não me imagino a separar nada. Sem saber o amanhã, creio que me vou querer mexer sempre da maneira como tenho feito com as artes visuais. É um mundo que me oferece a independência suficiente nos temas e nas formas como quero trabalhar. O que me dá prazer é fazer exposições em galerias ou espaços institucionais. Os álbuns também têm sido importantes, mas estou a gostar demasiado de pintar e ainda quero fazer escultura. Se puder, vou fazendo uns concertos, mas só de vez em quando. Já tenho o tema para o próximo álbum definido e para um EP inteiro. Ambos são projectos que se vão desdobrar visualmente, aliás até nasceram desta vez ao contrário. Começaram pelo desenho e depois pelo som. Mas em relação à música, vejo a vida dos músicos que se mexem nessa indústria e não fico particularmente excitado. Nada contra, mas não serve para mim. Adoro lançar álbuns, mesmo que fiquem só na internet.

JM: O teu desenho tem sido muito figurativo, embora não necessariamente narrativo. O que te permite a figuração?

LLM: A figuração permite-me bordar uma imagem daquilo que quero contar, mesmo que a narrativa não seja linear. Há tanta complexidade psicológica nas coisas com que lidamos todos os dias, na paisagem política e nas relações que temos uns com os outros dentro dessa paisagem. Às vezes sinto-me engolido por uma realidade muito confusa e tudo me parece desprendido — dividido em retalhos. Acho que a figuração me ajuda a montar o puzzle das coisas, é uma forma de agir, porque caso contrário entrego-me à letargia ou no pior dos casos à depressão.

JM: Creio — corrige-me se estou enganado — que na maior parte dos dípticos há autorretratos teus. É algo que introduzes, com regularidade, nos teus trabalhos?

LLM: Não estás enganado, as figuras são de facto muito parecidas comigo. Não é hábito meu colocar figuras assim. Dado o lado mais confessional desta exposição, fez sentido manter uma unidade nas pinturas, trazendo sempre à tona a mesma personagem. No entanto, vejo sempre os meus trabalhos como retratos meus, mesmo quando se trata de representações de mulheres, animais ou até mesmo edifícios. Há sempre um lado que é nosso, até nas personagens mais perversas que criamos. O artista que recusar isto está provavelmente a mentir aos outros ou a si próprio.

JM: Falemos de referências importantes, em termos de desenho. Na folha de sala, há uma menção à Paula Rego, mas penso, também, no Pedro Proença, no Picasso, no Matisse...

LLM: A Paula Rego aparece como referência porque o documentário do filho Nick Willing [Paula Rego – Histórias e Segredos] foi fundamental para fazer uma mudança num sentido mais confessional na minha prática, de deixar de ter medo de lidar com o lado mais obscuro das coisas. A outra razão é a personagem da palmeira, com óculos escuros que aparece em vários momentos da exposição, ter sido literalmente roubada de uma pintura da Paula Rego dos anos 80. A personagem da pintura dela é estranhíssima. Mas é curioso que te refiras aos desenhos do Pedro Proença. Não são uma referência directa, mas adoro os que estão na coleção da Gulbenkian, pelo seu lado mais surrealista e aos quais, por essa razão me apego, mais facilmente. O Picasso é um dos meus artistas favoritos. Foi o trabalho dele que me fez ver que deveria ser artista plástico, quando aos dezasseis anos fui ver uma exposição a Málaga. Agora que estou mais focado na pintura, tenho voltado a olhar para pintores com uma pincelada enérgica. Por isso é que adoro o Hockney, o Picasso e o Van Gogh. São os meus santinhos, por assim dizer. No entanto, quase me esquecia de uma das referências que me fez pensar há muito tempo que um dia gostava de fazer uma exposição sobre ondas — os desenhos do Raymond Pettibon, que ainda por cima é um artista que se associou à banda que mais ouvi a minha vida inteira, os Sonic Youth.

JM: Os Sonic Youth também foram importantes para a tua produção visual?

LLM: Nesta exposição especificamente sim, mas de maneira geral não. Aquilo que faço acaba quase sempre por ser mais colorido, mais humorístico e mais “pop” no sentido mais exuberante da palavra. Os Sonic Youth acabam por ser mais sóbrios. O Raymond Pettibon tem aquela coisa da cultura D.I.Y do Punk, as fanzines que, por acaso, nunca fiz. E não posso negar toda as referências mais queer a que fui exposto, que naturalmente me identifiquei como homem gay, circulando dentro dessa comunidade. Falo da relação dos meus primeiros murais, com aquela flatness meio Keith Haring. Ou da minha preocupação em alguns projectos da elegância da linha do desenho, que é uma coisa que fui buscar ao Cocteau. Uma linha quase decorativa por vezes, arrisco dizendo que até é abichanada.

 

Luís Lázaro Matos

Luís da Riviera

Galeria Municipal do Porto

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

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Luís Lázaro Matos: Waves and Whirlpools. Vistas da exposição na Galeria Municipal do Porto. Fotos: Filipe Braga. Cortesia do artista e Galeria Municipal do Porto. 

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