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Ad Minoliti: Nave Vermelhe

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José Marmeleira

 

Questionar modelos e categorias é um exercício bastante comum e predilecto de muitos artistas, sobretudo desde a modernidade. Acontece que o seu foco se deslocou. Os modelos e categorias são, cada vez mais, externos ao domínio da arte: não são apenas, em sentido estrito, sociais ou políticos, são, também sexuais e biológicos. Ou dito de outra maneira, a arte, ou pelo menos uma parte importante da arte, sem deixar de se observar a si mesma, tem vindo a observar o que é ser humano.

Munidos de enquadramentos teóricos provenientes de certas áreas disciplinares e, amiúde, inspirados em experiências pessoais, os artistas têm vindo a expandir o conceito, anulando pelo caminho a distância que o separava de outros conceitos. Com maior ou menor veemência, é posto em causa aquilo que distingue o (ser) humano do animal, da máquina, do vegetal ou, mais recentemente, do digital (entendido enquanto pós-vida). Daqui resulta que as condições sociais e biológicas podem ser transcendidas, alteradas, transformadas. Nada do humano é determinado à nascença, tudo no humano pode, pelo menos em termos orgânicos e físicos, ser modificado. O género sexual, entendido como múltipla corporização não reificada do ser humano é um dos objectos dessa modificação, que tem, em certa medida, implícita uma ideia de plasticidade, plasticidade essa por sua vez familiar aos artistas. É no quadro destas possibilidades — e do debate que elas instigam — que surge Nave Vermelhe, exposição de Ad Minoliti na Kunsthalle Lissabon (KL). Esta artista argentina (Buenos Aires, 1980), fundadora do colectivo feminista PintorAs, tem construído uma linguagem pictórica à luz das teorias queer e feminista, que, precisamente, desconcerta categorias e dicotomias ditas normativas.

Com diferentes formatos e media, Ad Minoliti faz confluir a vida e a prática artística, colocando no mesmo plano a história da arte e da pintura e os horizontes futuros de uma condição que será pós-humana e não centrada no humano.

Passado e futuro sobrepõem-se e, interpretados pela imaginação e teoria, produzem obras ou teatros (na forma de uma instalação) como aquele que recebe o espectador na galeria lisboeta. O título indicia aquilo que a exposição pretende representar: uma nave espacial ou, antes, o interior de uma nave espacial (em certa medida, a KL é uma escala, um local de paragem provisória, uma plataforma móvel).

Antes de entrar nesta nave, o visitante pode explorar uma série de volumes sob a vigilância de um inanimado ser felpudo. Os primeiros são coloridos, radiantes e encerram no seu interior outras formas geométricas: triângulos, quadrados, círculos. Desenhados, parecem aguardar o momento da sua libertação dos objectos, a sua corporalização. Entretanto, pelo desenho, a geometria e a cor, a beleza organizada das peças manifesta-se com uma intensidade pop, quase decorativa, mas nunca totalmente estável. O espaço torna-se o palco de uma imagem compósita que é ora bidimensional, ora tridimensional, sem ser autorreferencial ou inexpressiva. Percorre-se um ambiente, pressente-se a presença de corpos que se relacionam entre (ainda que um inerte e outro vivo) e sobre um dos volumes, repousa, inusitado, um capacete de plástico. A ficção visual espreita e adensa-se.

O ser felpudo — um gato bípede ou um modelo de uma figura humana que a artista vestiu de felino — permanece imóvel, exibindo os seus olhos de plástico, a sua forragem de tecido rosa, creme e branco. O desconforto que provoca não provém da sombra ou da silhueta fugidia, e sim do facto de sabermos que, enquanto vestuário, foi ou pode vir ser animado por um corpo vivo, humano. Ad Minoliti cita a cultura furry (também conhecida como furry fandom), mas evita o seu escapismo. Se se apropria do seu universo faz-de-conta é para pensar e celebrar a liberdade na metamorfose de papeis e identidades que ele promove. Com ou sem capacete, introduzido a tal universo, o visitante pode entrar de imediato na nave-exposição ou, antes, espreitar para o seu interior por meio de uma abertura circular que a artista fez na parede. O mais correcto talvez seja designar essa abertura de uma janela geométrica para o interior da nave: bidimensionalidade e tridimensionalidade voltam a confundir-se fazendo com que a realidade se transforme numa superfície, numa imagem.

No interior, o visitante recebe uma profusão de cores, formas abstractas e geométricas que reproduzem os instrumentos e a tecnologia da nave. Aqui parece estar o centro de comando, ali os painéis de controlo, em cima, talvez os ecrãs que deixam ver ser estranhos seres no espaço. A estética é da ficção científica mais retro (reminiscente da série televisiva O Caminho das Estrelas), com as suas fantasias vibrantes e a produção ficcional de outros mundos, mas não se vêem humanos. Há, sim, outros seres: círculos de olhos tímidos ou suplicantes retirados de personagens da manga, seres biformes e ciclópicos, híbridos de plantas, girinos e vulvas. O efeito, provocado pelas cores quentes, quase tropicais, é duplo. Desperta um sentimento de empatia que nos permite acolher a alteridade representada no desenho das formas, com a sua abstracção curvilínea, sensual; e produz um efeito de distanciamento, que permite ter consciência dos determinismos sociais e culturais que existem no exterior da nave. Exuberância visual e crítica coexistem, mas a segunda na condição de um exercício especulativo, quase pop, sentimentalmente ligado à cultura manga, à ficção científica (em termos visuais, estéticos e ficcionais) e à experiência da idade infantil e da pré-adolescência enquanto projecção e expansão de outras identidades e corpos. Ao trazer e ao recombinar estas e outras referências, Ad Minoliti transforma o interior da sua nave num caleidoscópio de formas geométricas e objectos concretos, pintura e desenho, cor e abstracção, representações do humano e do não-humano, puro sentimento artístico e exercício crítico, jogo e desejo. E diante dela, o visitante pode fazer descolar a nave, levando-a a outras destinos visuais, sociais e políticos.

 

Ad Minoliti 

Kunsthalle Lissabon

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Ad Minoliti: Nave Vermelhe. Vistas gerais da exposição na Kunsthalle Lissabon (KL). Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Kunsthalle Lissabon (KL).

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