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Gonçalo Pena: Metafísica

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José Marmeleira

 

Na Galeria Zé dos Bois, com curadoria de João Maria Gusmão e Natxo Checa, Gonçalo Pena dá-nos a ver o estado em que se encontra a sua pintura. Isto é, o estado da sua relação com a pintura e com aquilo que lhe é exterior: a história, nomeadamente a do século XX, de outras artes, da imagem em movimento, das condições da modernidade. Há muito que a arte de Gonçalo Pena se encontra num devir constante. É verdade que o mesmo se poderia dizer de outros artistas, mas este é um devir convulso, exposto.  Exposição a exposição, vai perdendo peles, enfrentando crises, ensaiando momentos de iconoclastia e de iconofilia. É metapintura e pintura debruçada sobre o mundo.

Em Metafísica, os trabalhos, inéditos, são representativos de um momento particular numa produção pictórica. Para trás, por enquanto, ficaram as pinturas em grande formato, cheia de personagens e cenas, embriagadas em óleo, a citar a tradição do quadro. E diminuíram a influência do universo da pintura figurativa de tradição ocidental e o virtuosismo generoso da pintura a óleo, patente em exposições anteriores, nomeadamente em Atol, também na Galeria Zé dois Bois, em 2012. Diminuíram, sublinhe-se, não se extinguiram.

Embora a pintura de Gonçalo devora e expulsa, na sua voracidade omnívora, muitas imagens, tradições e universos pictóricos, continua a observar a história — social, cultural, estética — da pintura.

Dito de outro modo, é como se o artista, enquanto pinta, não cessasse de olhar, de um miradouro, o passado. Em Metafísica, esse passado é o da arte ou mais rigorosamente o da modernidade, portanto num sentido que transcende o domínio artístico. Gonçalo Pena recolhe nele não apenas elementos visuais, mas também estratégias e mundivisões, comenta-o, em simultâneo, convoco-a para o interior da sua poesis.

Nesta exposição, o modo como o faz é pela pintura, mas uma pintura que parece uma extensão do desenho. Deste, retira a impetuosidade leve e musical, a rapidez (e nesse sentido, é pertinente fazer analogias com o pensamento), a energia da sua simplicidade desinteressada. E ainda assim, Gonçalo Pena não renuncia ou não pode renunciar a um laço com o exterior, com aquilo que esteve ou está fora da tela. Esse exterior aparece em alusões a movimento políticos e estéticos, sempre mediado pelo poético, aqui entendido enquanto fazer e produto singular, visível e sensível. Nesta relação, Gonçalo Pena abre um tempo e um espaço pictórico — que é o dele — em que aparecem imagens provenientes da pré-história do cinema, do modernismo português, da história das ideias, das utopias e dos regimes políticos que marcaram o século XX.

Nas pinturas, de tamanhos diferentes, há menções visuais ao praxinoscópio, aos salões de pintura, ao suprematismo e ao cubismo, às Tiller Girls, à velocidade. O artista vai destilando uma reflexão visual e conceptual da qual o humor e o ridículo são componentes incontornáveis. Vemos um espectro “munchiano” a fazer uma saudação romana, quadros suprematistas como desenhos animados, um comboio a sair de duas nádegas, um pato estúpido, correntes que prendem uma montanha, uma multidão de homúnculos admirados diante da pintura de uma porca (a peça de ferro!). Gonçalo Pena emprega a paródia oblíqua, o gag elíptico, o trocadilho, o jogo fonético de palavras. Não introduz apenas o desenho na pintura (ou vice-versa), mas, com “duchampiana” elegância, acrescente um elemento dissonante que subtilmente desvia, revira, torce o sentido do que é representado ou, mediante a sua presença, faz entrechocar palavras e imagens. A dialética que estas sugerem não é um mero jogo. Com as suas consoantes e vogais, as palavras nas pinturas de Gonçalo Pena estão lá para ser ditas e escutadas (“Libe” e “Ral”) e, por meio da intervenção do artista, adquirem um sentido tão desconcertante quanto indecifrável (“Le çadisme aux sinema”).

Gonçalo Pena comenta visualmente a produção e a recepção das imagens, mas sem nos conduzir a uma interpretação unívoca das próprias imagens. O seu método é o de um sincretismo visual e conceptual em que cabem o gag, a colagem cubista (dentro da pintura), o surrealismo, as táticas da arte conceptual e, a montante, um pensamento sobre o trágico, o trauma e a experiência dos acontecimentos. 

Arte e mundo animam-se mutuamente e, por isso, algumas das pinturas podem ser vistas como perguntas acerca da idolatria da arte, da origem do humano ou da história política do século passado.

E no, entanto, mais uma vez, Gonçalo Pena insiste na liberdade das reticências, antes de escapar para o interior da própria pintura. Com efeito, alguns trabalhos comentam, sobretudo, o pictórico. Desconstruindo-o com humor (o rolo de tinta que pinta e deforma uma forma abonecada), diluindo o seu carácter mimético (os lutadores de sumo numa gestualidade tremida e frágil) ou citando genealogias (o retrato do samurai, a evocar um desenho de Almada Negreiros). Nesses movimentos, a representação da figura humana recua, quase desaparece. No seu lugar, estão agora homúnculos, sujeitos humanoides, objectos, instrumentos, formas geométricas. A pintura de Gonçalo Pena parece expandir-se, inclusive, na direcção de uma abstracção, que é ora lírica e onírica, ora orgânica e bruta. Obedece a um desejo, experimentando hesitações e avanços entre o pintar e não pintar, o desenho e a pintura, o virtuosismo e o traço quase automático, a metapintura e o gag visual. O artista envolve-se na deriva própria da matéria sobre as superfícies, mas sempre consciente das ilusões do pictórico, da sua relação tensa com a verdade histórica e humana. A última pintura na exposição é disso exemplar: ao falar de si mesma, sempre ao leme do riso, a pintura fala, inevitavelmente, do humano.

 

Gonçalo Pena

ZDB: Galeria Zé dos Bois

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Gonçalo Pena: Metafísica. Vistas gerais da exposição na ZDB. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e ZDB: Galeria Zé dos Bois.

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